Caro amigo decolonialista (da humanização)

Caro amigo decolonialista, estive a rever a minha lista, enquanto cartista, e notei, amigo, que não tinha ainda tido contigo um parlatório específico e dirigido apenas a ti, embora muito do que te poderia ter dito está por aí num dos vários escritos já redigido. Não te sintas magoado, no entanto, ou discriminado, porque isso vai aqui ser solucionado. Mas tenho de avisar, no entanto, que vou escrever primeiro para o mano preto.

Caro amigo decolonialista, não é só coro e nem estou no gozo quando mostro que adoro o modo como falas da ancestralidade africana como uma irmandade afortunada, um lugar onde todos são rainhas e reis, com um único viés de acabar com atos cruéis, uma praça onde todo o mundo se abraça e a cabaça passa enquanto se canta aleluias à beira de uma fogueira e uma velha avó conta histórias; um lugar de graça onde o pão grassa e as memórias são todas boas, porque os africanos eram tão boas pessoas, tão puros, tão puros que… viraram burros… e foi por isso que, quase sem esturro, foram dominados pelos brancos. É isso?

Costumas ilustrar a solidariedade africana com exemplos de comunidade e partilha, mas isso não é exclusiva da comunidade africana, vários povos por todo este globo ainda se organizam em comunidade e apoiam-se em reciprocidade, mesmo nas europas. E lá nas áfricas também, quanto maiores as cidades mais as pessoas se voltam para a individualidade. Aliás, se a solidariedade é genética, por que se nota que, ao chegarmos, ou nascermos, nas europas, também perdemos essa ética ou moral inata, procuramos ser a nata e nos tornamos individualistas tanto quanto esses netos de colonialistas?

Caro amigo decolonialista, a ideia quase dogmática de que todas as cenas trágicas e outras maldosas práticas que afetam a humanidade de maneira barbárica, foram criadas pelo branco é um tanto básica, redutora e problemática, porque retira dos colonizados a sua particularidade sociológica, por vezes de insanidade despótica e a sua complexidade histórica, parte da integridade humana. Essa visão ou idealização de povos inaptos da produção do mal é giro e tal, mas de modo paradoxal, é uma forma de desumanização, porque trata os povos colonizados como incapazes de criar e de alimentar sociedades complexas, com suas contradições transgressas, integridades desconexas, dominações expressas, desigualdades imensas e disputas internas, que sempre fazem parte de conjuntos humanos. A natureza humana é, por si, contraditória… isso é um facto. Portanto, se só o povo branco vivia nesse estado de espírito atormentado, logo, só o povo branco era humano.

Repito o dito em outro estilo: quando assumes que os povos africanos eram todos simples simplórios e génios ingénuos que não percebiam a malícia e a sevícia do interesse dos colonizadores e os horrores adjacentes, sendo assim eram gentes inocentes e apenas meras vítimas desses brancos víboras, gentes sem iniciativa própria, acho que estás a fazer cópia da assunção branca e racista de que os pretos não tinham nem alma, nem inteligência (ou tinham um mau carma e má consciência), e precisavam, portanto, da diligência branca para os educar e civilizar; pressupões que eram incapazes de ação e de criar movimentos na história, povos lentos quase escória, uns pacóvios passivos guiados pela batuta europeia.

Caro amigo decolonialista, se a humanidade nasceu na áfrica, o que também afirmo de forma limpa, então a corrupção humana, está visto, começou no mesmo sítio. O capitalismo pode ter nascido na europa como conceito, mas a pulsão de acumulação é um macaco velho, não tem a ver com geografias, freguesias ou concelhos, mas com a sociedade. É preciso reconhecer que impérios e reinos africanos foram também cemitérios e venenos atirados a povos que recusaram o fardo. As nossas gentes também exploraram, guerrearam, chacinaram, genocidaram e acumularam riquezas de forma desigual, com dominação política e dominação espiritual. E foi a ganância e a aceitação dessa condição que fez os líderes da altura se aliarem aos europeus e comercializaram com os europeus, em busca de vantagens egoístas, para si e para os seus, para terem mais poder de subjugação. Fazer essa reflexão e reconhecer essa questão é atribuir humanidade aos nossos ancestrais e tirar-lhes daquele lugar de santificação. Se mesmo crianças conseguem ser maliciosas, imagina sociedades adultas e capciosas.

Vou dizer-te o mesmo que tinha dito ao amigo preto panafricanista, copiando simplesmente o texto, porque, além de ser mais lesto, estou com preguiça para parafrasear a eito:

“Achas, por exemplo, que o império mandinga que tanto glorificas apareceu de uma forma divina? Achas que um império que domina territórios consegue-os sem opressão e sem colonização e sem derramamento de sangue e sem o apagar das culturas e dos povos que lá existiam e sem a imposição da sua religião ou ideologias? Achas que as expansões são feitas sem horrores, mas a distribuir flores? Achas que os grandes templos egípcios foram construídos por empregados com contratos de trabalho e muito bem remunerados e não por escravos tirados das suas terras e aldeias por um poder musculado?”

Caro amigo decolonialista, eis alguns dos impérios africanos (ou reinos, depende de quem descreve): Império do Benim ou Edo. Reino do Daomé. Império do Zimbábue. Império Oyo. Reino de Axum. Reino do Congo. Reino de Lunda. Reino de Buganda. Império de Monomotapa.  Reino do Egipto. Reino de Núbia ou Kush. Reino de Wadai. Reino de Mossi.

Aconselho, no entanto, um exame mais alargado, recomendo, portanto, os trabalhos de Ki-Zerbo, História da África Negra, e também René Pélissier, História da Guiné: Portugueses e Africanos na Senegâmbia. Há mais, muito mais, mas… não os li, só esses e outros avulsos. Contudo, dá para saber como movimentamos a história a pulso. A minha leitura é mais sobre o território da hoje Guiné-Bissau. O que conheço melhor é o império Mandinga, que já referi acima, que começou como Império do Gana, caiu e reconstituiu-se como Mali, e dali virou Songai, e que dominava quase toda a África ocidental. Um dos seus reis, o famoso Mansa Mussá, fez peregrinação à Meca, distribuindo ouro à beça por onde passava. Era um mãos-largas que gastava à brava para mostrar o seu poder. Oferecia o ouro que vinha dos impostos e tirado de outros povos, para assim manifestar a sua soberba em forma de benevolência. Os árabes escreveram sobre essa façanha, que lhe rendeu bastante fama, os europeus leram as cartas e fizeram então a mala, e partiram para essa área onde o ouro grassa. Vários povos foram colonizados pelos mandingas, adoptando a sua língua, a sua religião e forma de vida.

Em resumo, a criação de qualquer império, em qualquer hemisfério, seja branco ou africano, significa submissão de outros povos, lei de um sobre todos, apagamento cultural, domínio militar, derramamento de sangue, progressão estanque, abusos e ataques, extração de riquezas, elitismo e vilezas, escravização e mercantilização de prisioneiros de guerra. Os impérios africanos que tiveram contacto com os europeus (e os árabes) beneficiaram ativamente da escravatura… até que, por desventura, viraram vítimas dessa tortura.

A ideia de que toda a forma de organização baseada na, sei lá, hierarquia, aristocracia, monarquia, teocracia, oligarquia, gerontocracia, patriarquia, tecnocracia, militarquia, meritocracia, intriga, opressão, acumulação e medição é criação colonial, de forma banal nega a história dos próprios africanos, que desenvolveram impérios magnos, teceram largas teias, fizeram coisas feias (e também coisas belas), sem influência europeia. Não se pode definir o mundo a partir da Europa, bolas!

Caro amigo decolonialista, a análise do colonialismo é necessária e legítima, mas ela tem de ser crítica e não uma lista simplista de dizeres quase ingénuos que transformam o colonizado numa figura imberbe e infantilizada, porque essa abordagem reforça a tese racista e “racionalista” de que os pretos não eram pensantes ou que os brancos eram mais inteligentes. Reproduz-se assim a visão europeia paternalista de que africanos precisam de ser cuidados e guiados, porque “são uns nabos que nem conseguem limpar os próprios rabos, e se forem deixados isolados serão dominados por outras potências. E pior, pode ser por potências que só conhecem a violência e não respeitam os direitos humanos… como a China e a Rússia, neste caso”. Repito, amigo, o perigo desta tese é que reduz os nossos antepassados a uma condição de sub-humanos, desconhecedores do bem e do mal. Se o objetivo é tornar o colonizado digno do seu espírito, notável e altivo, então o crivo deve ser de outro tipo: é necessário reconhecê-lo como agente pleno, com sonho complexo, defensor e traidor, herói e cobardeartista e usurpadorsábio e algoz, manso e feroz, justo e injusto, limpo e imundo, como qualquer outro povo do mundo.

Caro amigo decolonialista, sim, concordamos todos que o colonialismo foi algo hediondo e nos trouxe para este alvoroço medonho, todavia, a ideia de “retorno à ancestralidade”, assente num passado africano harmonioso e de solidariedade, ignora que os africanos, antes de tudo são humanos como quaisquer outros gajos. Além disso, até onde vamos retornar? Vamos regressar da era moderna às cavernas? Onde começa e acaba a ancestralidade?

O grande problema da modernidade são as suas colonialidades, e as pessoas que se beneficiam das velhas maldades vestidas de outras trajes, que fomentam as sequelas coloniais que ainda imperam nas nossas terras e como usam isso para manter a continuidade das desigualdades.

Caro amigo decolonialista, estou a dizer tudo isto, porque os nossos países pós-independentes não podem continuar sempre a ficar de fora das análises, principalmente porque não há como curar a opressão do patrão quando o próprio pai anda de chicote na mão. Os nossos próprios líderes, que nos deixam sem víveres, que não são íntegros, mas víboras, e nos oprimem nas nossas próprias mátrias, são pretos. Correto? Não é ser ingénuo e negar o dedo dos velhos-novos colonialistas nesse credo. Acho, portanto, que resolver as questões do presente é mais premente, porque o colonialismo não ficou no passado, mas anda bem globalizado. Não podemos continuar a repetir o mesmo erro de achar que só a Europa é responsavel pelos nossos desaires, mas temos de ter a capacidade de exigir dos nossos pares um “suicídio de classe”, como preconizava Cabral e outros antes.

Caro amigo decolonialista, como não estou certo de teres lido outras cartas já escrito, por isso repito aqui o que já tinha dito numa delas: “a nossa liderança ontem vendeu pessoas como mercadorias, hoje vende recursos naturais todos os dias”. Na prática da escravatura, os nossos líderes também participaram com fervura: minorias a fazer maiorias de mercadorias, aceitando a devastação e a desumanização das populações. Podemos dizer que a escravatura que os nossos líderes antes praticavam nas suas culturas não era da mesma feitura, mas isso não é desculpa, porque qualquer cultura que subjuga ou faz fortuna com o infortúnio de outros, à luz das noções hodiernas é enferma (na altura aceitava-se com candura). E se um escravo tinha a chance de ser liberto um dia, não era só na África que isso acontecia. Eu não traria este tópico se não fosse o facto de que, hoje, nos nossos espaços, os nossos governantes, embora não vendam pessoas (teoricamente), permitem que elas sejam exploradas e escravizadas dentro das próprias casas pelo investimento dito estrangeiro: empresas multinacionais (e até nacionais) continuam a extrair riquezas do continente com o avalo e proteção de governos que priorizam o lucro à dignidade humana, dando ao povo veneno em nome do desenvolvimento e do moderno. Novas táticas para velhas práticas. Líderes africanos que desafiam esses planos, enfrentam sabotagens, chantagens, sanções, seduções, pressões, golpes de estado, atentados, até assassinatos. De Patrice Lumumba, Amílcar Cabral, a Mohamed Kadhafi, a história está marcada por interferências externas que visam manter a hegemonia ocidental disfarçada de cooperação internacional. Quem cozinha é o ocidente, quem executa vem da nossa gente. Enquanto isso, nós ficamos a falar do colonialismo.

Na Guiné-Bissau, por exemplo, o atual governo mobiliza com préstimo forças militares para proteger os lugares dados a uma empresa mineira estrangeira que destrói a praia, polui as águas e complica a vida das pessoas que vivem desses recursos. O lucro e a segurança do investimento estrangeiro valem mais do que a segurança alimentar e ambiental das comunidades desse local. O silêncio diante da destruição traduz-se em cumplicidade. Aqui, como em outros lugares, os povos não são tidos como pares, porque os governantes protegem os contratos e os seus confortos, em vez do povo. Porque para eles o que interessa à sua beira é a sobrevivência política e financeira. A luta pelo bem comum cede ao oportunismo, sobrescrito com falas de patriotismo, enquanto sem tino é vendido o destino de povos como antes foram vendidos os seus corpos.

O colonialismo não terminou, apenas mudou de nome e de métodos e de termos, por exemplo: ontem terceiro mundo, hoje sul global, ontem países primitivos, hoje em desenvolvimento, ontem mundo civilizado, hoje comunidade internacional, ontem raças inferiores, hoje povos vulneráveis, ontem áfrica negra, hoje áfrica subsariana, ontem colónias, hoje ex-colónias, ontem missão civilizadora, hoje cooperação para o desenvolvimento, ontem atraso cultural, hoje falta de capacidade institucional, ontem selvagem e não civilizada, hoje tradicional, informal e não regulamentada. Há mais, muito mais exemplos.

Caro amigo decolonialista, este é um manifesto da minha própria frustração, tem mais a ver comigo do que contigo. Não consigo mais olhar para os nossos governantes aqui na Guiné-Bissau e continuar a acusar o passado pelos nossos problemas, e acho que este esquema de culpar o passado até lhes facilita a vida, porque se enrolam no papel de vítima, e enquanto gritamos, também gritam, fingindo indignação, quando são eles próprios que nos entregam de bandeja à exploração. O que pretendo observar é que reconhecer a violência interna não significa apagar a violência externa, nem justificar a hecatombe. Quero dizer apenas de que devemos estar à perna das nossas lideranças com uma sarna, porque é o povo quem paga e quem passa por desgraças quando um deles se caga. Destarte, não basta falar de uma ancestralidade imaculada, é preciso revolvê-la, questioná-la, para assim, renová-la, quebrar as nostalgias e construir outra poesia para este presente de azia e alergia, onde a manutenção e a vigia da supremacia colonial é feita pelos nossos dias guias. A libertação real não vem de um passado imaginário, mas de um presente incendiário, numa crítica madura que reconhece que a corrupção humana não é branca nem preta, mas universal. Como disse ao preto panafricanista.

“O pan-africanismo não é uma questão da raça preta, Obama era preto quando destruiu a Líbia em benefício dos Estados Unidos, e agora aqueles estão a praticar esclavagismo de novo, vendendo os seus e os de outros povos. Havia soldados pretos na tralha militar americana que invadiu a Somália… Deus, havia soldados pretos, na mata, a nata que mata, nascidos na Guiné, lá dentro, bem no centro, que bateram o pé e se tornaram comandos africanos e lixaram os seus próprios manos.”

Há pouco tempo, um preto, um general americano, acusou o presidente de Burkina Faso de explorar os conterrâneos, fazendo assim planos para invadir aquele estado. Portanto, eu falo, a exploração não é uma questão da cor da pele, as alianças não é uma questão da cor da pele, mas de ideias e de ideais.

Caro amigo decolonista, não me entenda mal, pelamordideus!, não estou a relativizar, nem a aliviar o colonialismo, dizendo que por termos todos o poder de fazer mal, logo é normal aceitar essa carga colonial que nos continua a atrapalhar. Não, não, não. Insisto que temos de trabalhar para fazer dos nossos espaços um lugar que valha a pena partilhar. E não há como curar as feridas coloniais, negando ver que as feridas atuais, as feridas autoinfligidas, as feridas internas, também sangram de maneira aberta. Não há como comunicar as dignidades, se ainda tratamos o nosso povo como pimpolho, incapaz do pecado e facilmente levado ao engano pelos planos engendrados por outros fulanos. Não há como construir a África enquanto criticamos passados, mas continuamos a afirmarmo-nos, por excelência, em modo resiliência, propalando o termo resistência, mas com aparência de quem não tem agência.

Basta de viver em resposta, avancemos propostas, ultrapassemos o outrora e deixemos obra de honra para a história vindoura.

p.s: em Varela, na Guiné Bissau, minera-se areia pesada, o que provoca a destruição da praia, “envenenamento” dos rios (ou braços do mar), das águas dos poços, destruição dos arrozais de onde vem o sustento da população que ali habita. houve uma intervenção de sabotagem por parte da população, uma vez que não têm o governo do seu lado. várias pessoas foram presas. o governo enviou cem polícias para guardar a empresa mineradora, enquanto mantinha mulheres presas sem acusação formal. (as fotos são do blog notabanca)

por Marinho de Pina
A ler | 1 Junho 2025 | decolonialista, Guiné Bissau