Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 14)
22 de maio – colonialismo reverso
A Tugalândia tem andado estranha ultimamente, é tanta mudança que eu já nem consigo entender: Sporting ganhou o campeonato, André Tontura teve azia e houve eleições de novo. (Imagino um serão com o Bostanato, o Trampa e o Tontura, a tomar um drink, olhando o pôr do sol, num resort palestino pós-genocídio, e vai a conversa: “eu levei uma facada, aquele ali um tiro… mas, porra, Tontura, azia!!!… Azia, caralho!? A falta de vergonha também tem limites, porra!” Ao que o Tontura responde: “E depois?! O Sailazar foi fodido por uma cadeira!”)
Enfim, o culpado de tudo é o Luís Mortenegra. Se o gajo não tivesse andado a subsidiar a família, mamando do Estado, nada disto teria acontecido. Mas os tugas, como são muito apegados à família, tirando quando ficam velhos e são mandados para um lar qualquer, ou deixados num apartamento qualquer, a chocar os dentes no inverno, soletrando EDP. Por isso, como os atos do Mortenegra era para beneficiar a família, claro que os tugas solidarizaram, votaram nele de novo. Tem que se honrar a velha máxima do Santo António Sailazar: “Deus, Pátria e Família.”
Luís Montenegra representou a família. Quem ficou com deus foi o Papa Americano e o André Tontura, que também tomou a pátria, rezando um terço a cada terço do seu dia para que a construção da mesquita nas Mercês corra em bons termos, para poder usar isso na sua campanha de semear ódio.
O André Tontura é dos pouco políticos que promove a luta de classes. Só que a dele, longe dos marxismos, é uma espécie de reality show à CMN TV: mete a classe baixa a lutar contra a classe desesperada, enquanto a classe do topo vai fazendo apostas, e a classe assim-assim faz marchas e acena com bandeiras, repetindo mantras antigos: “não passarão! Não passarão!”. Ai, não?, então toma! Passaroco. Fascistas no parlatório. No topo não se toca, nunca se tocou, nem se vai, perguntem ao PREC.
Neste reality show, os imigrantes servem para mover o plot, um mero macguffin, não são eles a questão. Vejam, quem ganha com a imigração são os gajos dos brunches, os empresários, os startapeiros, os herdeiros vestidos à namastê, em retiros de aperfeiçoamento umbilical, amigos do Estado quando há subsídios e ajustes diretos, mas alérgico à palavra imposto, quando mira os seus bolsos, o que lhes faz votar cada vez mais à direita para reduzir o sector público, sem o prejuízo das suas benesses. Esses adoram a imigração, mas só aquela bem pobrezinha, bem cansada, bem caladinha, porque quanto a condições mais miseráveis chegarem, melhor, pois mais dóceis e exploráveis são, e ainda agradecem com um sorriso rasgado e vénia à retaguarda, por causa do enorme privilégio de poder servir o café às sete da manhã e limpar um call-center qualquer depois da meia-noite, com um contrato outsorcisado e sempre a termo, mas contente por não ter de dormir, como o colega, no porta-mala de um uber.
Quando os restaurantes lisboetas servem apenas com funcionários negros ou da ásia meridional, não é porque os donos são inclusivos, mas porque veem neles mãos de obra barata e explorável que pode fazer turnos de 16 horas a 7 dias por semana: gente resiliente e resistente. Mas, neste processo, quem fica sem trabalho é a classe baixa que antes fazia isso.
Efetivamente, os imigrantes estão a tomar o trabalho da malta pobre tuga, mas não estão a tirá-lo. Quem o tira são os patrões e a política direitista que só protege o dinheiro. Como é mais fácil bater no mais fraco… parece que os tugas não querem ter um dedo de testa. A direita diz que não gosta dos imigrantes, mas explora-os. A esquerda põe as costas da mão esquerda na testa e a direita no peito e exclama, com suspiros profundos e lânguidos: “ah!, se não fossem os imigrantes.” Mas conseguem ficar ambas unidas em torno dos imigrantes, porque olham para eles não de forma humanista, mas utilitarista: “olha que têm bons dentes…” ou “a cavalo dado…”.
Não é que o imigrante faz o trabalho que o tuga não quer fazer. O imigrante faz o preço que o tuga não quer fazer. É essa a questão. Quanta gente tuga com diploma não anda por aí a cortar fiambre nos supermercados? O pressuposto de um imigrante é diferente. Quando vem e está só consigo mesmo, aceita tudo e mais alguma coisa. Quando tem família, e se encontra menos vulnerável, já começa a exigir mais, já olha com maus olhos os outros imigrantes e começa a ilhar-se numa individualidade idiota. Que o digam a gente brasileira, a gente cabo-verdiana e a gente guineense, que acusam os sulaziáticos de lhes atirar para a precariedade.
Eu admiro quase religiosamente e acho incrível a arte tuga de unir pessoas, mesmo que com cuspo. É uma cena mesmo ancestral. Por exemplo, quando os ancestrais dos tugas ouviram falar da Pangeia, ficaram consternados, tocados no mais profundo da alma, disseram: “epá, assim não pode ser, pá, a América do Sul estava colada a África, pá, povos irmãos divididos pela geografia, pá, isso é racismo emocional, pá, temos de descolonizar a geografia, pá.” E assim inventaram o colonialismo.
Com a finalidade de colar gentes, foram para África, encheram os barcos e levaram muita malta de lá para as Américas, para visitarem os primos. E, durante o processo, muitos desses africanos foram mandados para o Atlântico, para alimentar os peixes. Agora estão a repetir o truque apanham os africanos e os brasileiros, que já parecem nem saber o que é SEF e o que é SER, e atiram-nos para o meio do Índico… desculpa, do Martim Moniz, para alimentar as urnas, com esta ideia: “Olhem lá, pá, votem aqui no Tontura, pá, ele não odeia os pretos, pá, olha o Lombito, pá, ele só não gosta dos ciganos, pá, e nem é assim tanto, pá, só um poucochinho, pá, ele defende a cultura lusófona-tropicalista, pá, que está a ser sabotada pelos indianos, paquistanianos, bangladeshianos, asiatiquianos, pá, olhem que esses nem conseguem dizer ‘obrigado’ sem sotaque, pá, votem no tontura, pá. Namastê!” E o Mortenegra corre atrás.
Os tugas, os colonialistas, são visionários, pá. Perceberam agora que aquele modelo antigo de start-up marítima, armar barcos, atravessar oceanos, apanhar gentes e trazê-las para cá, dava muitas despesas: corda, chicote, grilhão, arroz, manutenção dos porões… não era rentável a longo prazo. Então mudaram o modelo de negócio. Agora usam a TAP e umas campanhas manhosas: “Venha mudar de vida! Trabalhe em Portugal! Clima ameno, povo acolhedor, mulheres lindas! Salário mínimo que mal dá para o pão, mas vista para o Tejo! Melhor qualidade de servidão de toda a Europa. Somos os racistas mais amorosos do mundo, todos temos amigos pretos”. Agora somos nós que pagamos para vir para a Tugalândia, o voo, o visto, o SEF, o recibo verde, a casa partilhada com outros tantos a competir connosco a mesma posição de escravizado. É genial. Antes iam buscar escravos à força, agora a escravidão foi, sei lá, uberizada. Tudo legal, tudo limpo, tudo europeu. A senzala agora até tem wi-fi e chama-se “quarto interior com beliches, cada cama 500 euros mensais… despesas não incluídas”.
Mas os tugas tugas, tanto os brancos, como os pretos, quanto os idiotas, principalmente os pobres, também colonizados nos seus bairros sociais, não querem dar-se ao trabalho de entender esse processo, porque odiar é mais fácil que amar, e oprimir o mais fraco parece bem mais divertido, então, embarcam… embarcam-se. É uma questão de navegar. Não podes vencê-los, junta-te. E vêm todos, tugas, pretos, brazucas, chineses, indianos, sulaziáticos, numa odiação solidária, partilhada e comparticipada.
Mas o problema, dizem os tugas de bens, são mesmo os sulaziáticos.
O triste é que há quem acredite nessas tretas, tipo alguns cabo-verdianos, doutorados em calçadas, que pensam que são imigrantes diferentes dos “indianos”, como os chamam, porque falam português melhor, e que acham que estes vieram para lhes roubar as pedras, e vêm no Tontura o último defensor da calçada portuguesa, um património imaterial da caboverniadade tuga. Brasileiros no uber a queixarem-se do desemprego e saudosos do Bostanato, namoram com o Tontura. Guineenses habituados a chefe-único, falam de invasão de gente castanha, de precarização instantânea e de falta de habitação, porque “esses indianos, uai, ele nos tiram as casas fep, porque aceitam pagar preços altos tok que nós não conseguimos nan, e nos deixam na merda, bô”. Parece que não notam que por vezes são oito pessoas no mesmo quarto, e que por causa da barreira linguística, os “indianos” têm menos capacidade para negociar por melhores condições. A crise da habitação, que o estado tenta resolver com powerpoints e promessas, que valem tanto como o diploma do José Sócrático, assinado num domingo, são problemas do neoliberalismo, uma espécie de “deixa os adultos falar, pá” ou “cala-te, lá, povo, que o mercado está a falar, pá”! Quando o alojamento local paga menos imposto que uma casa de habitação prolongada, o que se pode esperar?
Mas vendeu-se aos tugas pretos e aos tugas brazucas de que os sulaziáticos são um perigo para os seus empregos, para as suas casas e tudo o mais, só não dizem “para as suas esposas”, porque isso fica ainda para os pretos, e “para os seus maridos” pertence às brasucas. Os sulaziáticos são um perigo porque são exímios em tentar sobreviver? Hein!
“Não faz sentido nenhum”, disse o Tio Paulo Bano quando lhe contei, “isso é como invejar uma pessoa enforcada ao teu lado porque esperneia mais antes de morrer”. Por que é que não se juntam contra quem os atira uns contra os outros, tio Paulo? “Porque isso dá trabalho, sobrinho, mas não paga salários. Se fosse assim tão fácil as pessoas se unirem contra os poderosos que as oprimem, não teríamos a Guiné neste estado de desgraça”.
É, é assim, as pessoas sentem-se encurraladas, os tugas tugas, principalmente os mais jovem, com laivos racistas e machistas, sentem-se com medo, porque durante muito tempo foram ensinados que foram os colonizadores, e agora acham que estão a ser colonizados (na verdade estão, mas não por quem pensam). Anda tudo mal para eles, veem-se em desespero há muito tempo, mas sempre a inventar nomes engraçados para isso: geração rasca, geração à rasca, geração nem-nem, agora, hmmm…. geração kamikaze.
Os filhos não conseguem sair da casa dos pais, a maioridade atinge-se aos 40, rapazes em esteroides machistas com medo da progressão das mulheres, jovens racistas desesperados porque jovens pretos não aceitam mais o discurso de “dar a voz”, usam a sua e fazem-se ouvir, gente a espumar ódio porque alguém quer dizer “todes”, o pimba a ser fundido com o kizomba, ritmos ciganos a ganhar mais notoriedade, não conseguem passar uma semana sem comida asiática, Cristão Ronaldo a jogar na Arábia… foooooooogo!
Os jovens estão assustados e desesperados, resultado: voto no Tontura… e no Mortenegra. É assim que querem curar o desvario de um trauma inventado de colonialismo-reverso. O que é feito da força desse povo que descobriu meio mundo e agora nem consegue descobrir como sair da casa dos pais?, dizem. E culpam o 25 de Abril, sem querer olhar que isto anda mal exatamente porque as pessoas e as ideias que alimentavam o salazarismo voltarem ao poder, crescendo e corroendo lentamente a coesão social ensaida nos últimos 50 anos. Deus, pátria e família: todas aquelas famílias que empobreciam a maioria voltaram para a pátria, em nome de deus.
Mas não me parece que os tugas sejam contra a imigração, porra, não, eles são netos de migrantes, o tio Paulo Bano disse que um dos gajos que eles dizem ser o pai deles, dos tuga-lusos, um tal Viriato, tinha juntado muitos refugiados e imigrantes para lutar contra os romanos, muito anos antes do Avenida Don Afonso Henriques ter descoberto a Tugalândia. Não, os tugas não devem ser contra imigrantes, são apenas contra ser pobres na presença de outros mais pobres ou de ricos não europeus. Se se investe tanto em contruir hotéis e alojamentos locais, não é porque querem gente de fora lá dentro?
Mas também vai em ondas. O tio Paulo Bano disse que houve uma altura em que os tugas da Tugalândia odiavam os tugas da Ucrânia, esses eram os sulaziáticos daquele tempo, mas depois quando o Filha-da-Putin invadiu a Ucrânia, esses se tornaram os melhores imigrantes do mundo. Talvez a solução para curar o ódio na Tugalândia passe por pedir ao Filha-da-Putin para invadir o Sul da Ásia. Mas é preciso ser invadido pela pessoa certa, senão ter-se-á a sorte dos palestinos, por exemplo, ninguém quer saber, porque os seus invasores e genocidiodadores são gente amiga da Eurovisão.
Enfim, o Tontura não inventou o ódio aos imigrantes, ele é apenas um vírus que se alimenta da rede emocional da Tugâlandia (dizer ódio aos emigrantes é bastante simplificativo, porque os ciganos não são imigrantes, e os tugas pretos também não são…. os brazucas?, bem, não sei). O Tontura não tem ideias, tem impulsos, é um algoritmo humano que brinca com os desejos masoquistas da Tugalândia (só gente livre fantasia com ser dominada, amarrada, amordaçada e chicoteada; gente escravizada não sente tesão em ser dobrada num tronco). Os tugas não querem gente imigrante fodida e pobre, querem o turista, porque esse entra e sai e entra e sai e entra e sai. E o Tontura vibra com isso, thumbs up, thumbs down, não importa, surfa ambos. Os tugas querem um dom, como o Avenida, uma mão forte, uma pessoa com chicote, que lhes amestre, lhe tire os direitos e os privilégios que lhe foram dados, porque só assim conseguem se sentir excitados, e o Tontura se apresta para isso… mas eu recomendo olhar para a Guiné, nada de bom vem disso. A Guiné-Bissau é dos países mais pós-liberal do mundo, tudo é privado, até o governo. E o povo, na merda. Também nós estivemos tão fartos que, com ímpeto de autodestruição, pedimos por uma guerra para acabar com todos os enlevecimentos e desrepeitos, mas depois da população ter morrido em vão, percebemos o engano, pois a estrutura da opressão manteve-se intacta, só o povo foi lixado. Pensei que tínhamos aprendido a lição, mas não, porque quase trinta anos depois, estamos outra vez a pedir por uma boa guerrazinha.
Os tugas sentem-se tão encurraladas que estão a roer a própria perna. Hoje nem casas conseguem ter, e há um bom par de gente a pagar para poder trabalhar para os uber e afins, os seus quintais estão a ser invadidos para escavar minérios para multinacionais, a sua agricultura foi tomada pelas cadeias de supermercado (obrigando-os a deitar fora, sei lá, metade da produção, porque não é bonita na foto), as maçãs já só parecem com maçãs, mas sabem a outra coisa, até a serpente fica confusa e desiste de tentar evas. Os tugas são alimentados pela ideia do colonialismo-reverso e não querem perceber que os tugas colonialistas ainda são os mesmos e são também da corja dos que dominam o resto do mundo, e dominar é o que lhes importa.
Os tugas colonizados sentem-se cansados, sentem-se desesperados. Fartos de tentar fugir, agora compram eles mesmo a corda, enrolam ao pescoço e entregam-na ao carrasco. Sentem-se numa espécie de pasmaceira, por isso votam em sociopatas como o Tontura, não porque ele sabe para onde ir, mas porque prometeu atropelar muita gente pelo caminho. Vai haver sangue.
A CMN TV gosta disso.
E nós também.
O tio Paulo Bano disse-me uma vez: “Sobrinho, nunca deves encular um animal que não estás pronto a matar. Se não lhe deres saída, ele fica perigoso e é capaz de roer a própria perna para escapar. E se estiveres no caminho, ai de ti”.
É o que está a acontecer com os… peraí… peraí… calma, não era encular, mas encurralar. Não enculem animais, por favor.