Entre o domínio e o confronto, a língua.
Na dança dialética entre o domínio e o confronto, língua e norma criam e recriam as conjugações dos corpos humanos desde mesmo antes de estarem fadadas às denominações da modernidade. Língua era língua, e havia a minha, a sua, o entendimento e o desentendimento; e havia sua expansão na medida que se expandia um território de um povo e de uma língua.
Eruditos eclesiásticos cagavam as regras nos livrinhos rabiscados à pena que eram inacessíveis – e obviamente ignorados - aos soldados que desenhavam o chão no qual marchavam anunciando o imperador, e sapecavam seu latinzão desregrado e desgrenhado, pedra sobre pedra nestas pedras todas.
Acontecia na península ibérica, cujo latim vulgar macetado pelo império romano impunha-se, ante as línguas ancestrais de cada povoado por onde avançavam, ante as línguas bérberes na mesma medida em que se engalfinhavam com árabes e muçulmanos, e na mesma medida que delas todas bebiam aqui e ali, como quem bebe um azeite, como quem adoça com um azúcar, como quem pinta um azulejo; convívio conflituoso e integrado até a queda do Reino Nacérida de Al-Aldaluz, e até hoje, com árabes postos contra os muros em Martim Moniz por polícias que falam suas duas mil palavras deixadas pelo califado de Córdova.
Mas muito antes disto, e enquanto isso, nas suas extremidades, as normas iam sendo amaciadas por outras normas que ganhava novas normas, e descolavam-se paulatinamente das normas que as fundaram, como a filha que carrega o Adn, mas busca seu caminho autónomo, e por vezes autêntico. E de Roma românica e latina que brilham o catalão, o castelhano, o francês, o galego, o mirandês.
E ora essa, também o Português, mas não esses nossos vários de agora, mas aquele chamado de linguagem, próximo do que, na altura, falava e escrevia o nosso grande porta-voz, um entremeio de latim vulgar com vestígios de galego; uma língua feita em uma festa de cadelas, uma se esfregando na outra nas plebes das cortes onde bailavam os versos que defendemos hoje, eram em Português.
Mas importa lembrar que isso se passará porque que um certo rei, entretanto, aproveitou o estica e puxa de fronteiras e os muito modernos conceitos de territórios que ganhavam notas de país e nação, e nesse toma lá, dá cá, decidiu que era importante politicamente desgarrar-se do galego. Macetou a pena para arriba, assinou um papel que resumidamente decretava trocar um V por um B (e também o contrário), aonde dizia: - que esteja inventado o Português, e dessa linha para baixo agora todo mundo fala português – digo, toda a gent. Quem falar vento com V é meu, quem falar bento trate de subir que está na casa errada.
O problema que ele, o Rei, sequer olhou para a decisão que ele mesmo estava tomando. Seu desejo de domínio disfarçado de autonomia o levou a querer se desgarrar do Galego, que por sua vez já havia se desgarrado do latim vulgar de onde, inclusive, ele arrancou o português. Não era preciso viver muito mais para reparar que não se enjaula um cavalo selvagem. A gramática é sobre poder e domínio; mas língua, meus caros, língua é indomável.
E indomável que é, não está sujeita aos códigos rígidos das escrituras, ao sistema de parâmetros políticos, língua é incontrolável e incontornável, como rio que extrapola seu curso e arrastando consigo o que tiver pela frente e pelas margens nos dias de altas marés. É por isto, senhoras e senhores, que estamos aqui, neste 2025 de agora mesmo, e os povos do norte de Portugal dizem; brmelho, ou bremelho na versão escrita nos grupos de vendas de carros usados do facebook. Não vermelho, como exigiu o Rei, mas brmelho, e quando ligeiro pode ainda ser brmelh.
Agora pensem comigo um português transmontano ou minhoto do tempo onde Portugal já era até um País e assumiu a linha de frente das frotas coloniais europeias. Imaginem um barco cheio deles, quase na sua totalidade ágrafos, atirados ao mar até o sul global com a missão de colonizar e explorar um território.
Ele atravessa o mundo e para o mundo ele diz: vermelho.
Mas não, ele não diz vermelho, diz brmelho.
Seu brmelho, entretanto, encontrar-se-á com fonéticas de outros troncos linguísticos; tupi, bantu, e mais. Os séculos passam, centenas de gramáticas em língua portuguesa foram impressas, o V do rei continuou sendo exigido. E grupos sem fim de seres humanos viventes no nordeste do Brasil, localidade onde já existiam centenas de variações linguísticas nativas, e que foi maioritariamente ocupado por portugueses nortenhos – conhecidos também como ex-galegos -, mas principalmente por uma massa incontável de povos africanos; dizem hoje, neste dia de agora, 2025, vremei, ou vremeio; e outros tantos ou os mesmos dizem também probrema.
E tal e qual os peninsulares da ibéria “mal-falantes” do latim vulgar se apropriaram e profanaram línguas bérberes substituindo o z ou o k pelo ç em azukkar, estes povos cujo som do l era absolutamente desconhecido pela sua fonética bantu, substituiu o r pelo r, e por isso são gozados e hostilizados pelos adoradores da gramática, apontados como ignorantes enquanto vivem a língua na sabedoria ancestral da sua oralidade. É o que lembra Lélia, a Gonzáles, ao cunhar esta perrita vira-lata chamada língua portuguesa de pretuguês, a mesma que é pretíssima, brmelha piranga, bérbere, mirandesa, latina bem vulgar, castelhana e galega de água doce.
A língua, indómita, atravessa as ruas com frutas na mão. Com o sorriso aberto, cela o cavalo, monta, mas deixa-se cavalgar com ele para onde ele deseja. A língua faz-se de si mesma o que bem quer. O curso do Português é ousado, veio a galope com um povo que marchava no chão, longe do imperador, distante dos letrados eclesiásticos, matando a sede nas bocas alheias, resvalando-se no que encontrava pelo caminho. Tornou-se, assim, muitas coisas antes de decretar-se português para tornar-se ainda mais coisas ao despencar do cavalo e montar o atlântico.
É a língua que rege a gramática, e não ao contrário. Os códigos que registem a história do som das palavras povo. O resto, é só domínio, domesticação e poder. E contra isso teremos sempre a invicta e irresistível língua errada do povo, língua certa do povo.