Turistas não, imigrante sim, mas só os pobres

Nos últimos anos, tenho conhecido outras partes do mundo. Sempre que viajo, tento passear pelos arredores, ou visitar, de preferência, alguns marcos arquitetónicos. Porém, como uma pessoa que não vive nessas cidades, não conheço os restaurantes locais, os casais de velhotes que resistem à gentrificação e são adorados pela comunidade, ou os negócios de famílias que passaram gerações a tentar manter vivo o sonho de um antepassado qualquer. Por isso, dou por mim a consumir nos lugares de um mero turista.

No entanto, sempre que converso com as pessoas dessas partes do mundo, normalmente artistas, acabamos por falar da turistificação e da gentrificação. No ano passado estive em Nova Iorque, Milão, Paris e Marselha. Em todas essas cidades, ouvi queixas sobre turistas. E fiquei a pensar:

Mas afinal quem é o turista?

Curiosamente, nunca nos consideramos turistas. Porque vamos para os outros mundos com “propósitos nobres”, levamos cultura, espalhamos arte, vamos em busca de luz, procurando mudar o mundo e cuidar do meio ambiente principalmente através de viagens aéreas. Nós não viajamos para consumir folclore ou atraídos por um produto urbano-mercantil criado por um visionário qualquer, nós não fazemos filas para andar cem metros numa espécie de elevador da Bica ou para provar uma queijada de Belém local. Nem fotografias tiramos para as nossas redes sociais. Nós não somos turistas. Nós levamos mais-valias culturais para outras cidades. 

Ninguém gosta de turistas. A não ser quando é o próprio a turistar.

Até parece a conversa dos meus amigos portugueses que vão a Bissau, alugam casas na Praça a preços dez vezes acima do salário mínimo local, e depois regressam a Lisboa para marchar contra a gentrificação e falar da precariedade.

Nós não somos turistas.

Quantas vezes dizemos que as pessoas “precisam de viajar”? Que têm de conhecer outras realidades, abrir-se para mais culturas e tornar-se melhores pessoas? Ao mesmo tempo, agimos como se essa possibilidade devesse ser só nossa. 

Ninguém gosta de turistas porque os turistas enchem as ruas de tuk-tuks, enchem os elétricos, atrapalham a rotina de quem só quer chegar ao trabalho. Fizeram aumentar o preço do pão de Mafra nos cafés, pagam por um quarto em Lisboa numa semana o que pagaríamos num mês. À noite, então, enchem as ruas com os gritos, os copos, o arrastar das malas nas calçadas, e as bebedeiras, e não nos deixam dormir… Quer dizer, a mim não afeta, porque onde moro não há alojamentos locais. 

O turista que não te deixou dormir hoje com o barulho da mala, não vai estar necessariamente ali amanhã a fazer o mesmo. Pode até ser que esse turista tenha passado dois anos a poupar dinheiro para ter a oportunidade de conhecer outros lugares e arrastar a sua mala na calçada, infelizmente, na hora em que escolheste dormir.

É verdade que os nossos restaurantes favoritos foram fechados para dar lugar a espaços hipster onde o café custa euros e não cêntimos. É verdade que o turismo encarece as coisas. Mas a culpa será mesmo do turista? Ou antes do “empreendedor” que, por alguma razão, decidiu que o turista pode, e deve, pagar mais por algo que custa cinco vezes menos? 

Durante muito tempo, o turismo e as viagens eram coisas de ricos e das elites.  Exclusivo, exclusivo, só entra e sai quem pode. Mas hoje, com os voos low-cost, promoções relâmpagos, alojamento local, uber, airbnb, tinder, internet, a mobilidade facilitada, o turismo tornou-se algo mais… acessível e democratizado(?). Mas ainda assim, até o turista pobre aceita tacitamente o jogo de pagar mais por menos na cidade dos outros e depois vai reclamar na sua que os outros estão a fazer o preço subir.

elétrico 28, foto de mlelétrico 28, foto de ml

Então, volto a fazer a pergunta: Quem é o turista?

Porque é que o nova-iorquino ou o parisiense se queixa do turismo quando vive numas das cidades mais caras do mundo (a seguir a Bissau, é claro)? Em Bissau, os portugueses são os turistas; em Lisboa, são os lá das Europas; em Marselha queixaram-se dos parisienses; já não recordo de quem se queixavam em Paris e Nova Iorque. Mas queixar-se de turistas lembra-me a discussão sobre o humor: pode-se gozar com os ricos, mas não com os pobres. Eu explico.

Quantas vezes não ouvimos por aí discursos progressistas sobre abrir fronteiras, facilitar vistos e integrar os imigrantes? Não é raro vermos essas mesmas pessoas usarem o “volta para a tua terra” em relação aos turistas. Turistas, esses invasores que não respeitam as normas e que agem como donos disto tudo, porque acharam que pagaram; esses invasores que não vêm para cá para se colocarem numa posição de humilhação e assim podermos nos sentir grandes e capazes de lhes estender a solidariedade; esses invasores que estão a marimbar-se para nós e só querem sacar uma foto rápida da nossa cidade, de preferência com alguém a estender a roupa num varal à janela. 

É um tanto curioso dizermos que aceitamos melhor alguém que vem para ficar do que alguém que só quer passar, sei lá, uma semana. Normalmente olhamos de cima a quem vem para ficar, podemos até dizer que lutamos por eles, não têm “visto gold” nem vão encarecer os nossos restaurantes. Muito pelo contrário, os que vêm para ficar, ou tentar ficar, aceitam um salário de merda e dezasseis horas de trabalho diário, e tornam assim esses lugares até mais baratos. Se for alguém fora desse padrão, então é problema.  

Achamos que o turista nos invade, não pertence, distorce a identidade local e levando à sua folclorização. Não é como nós. Supomos que o turista seja rico, e odiamos os ricos por o serem, por estarem na nossa terra e não precisarem de nós e ainda nos usarem como serviçais. Se calhar não suportamos o facto de ver os outros a fazer o que desejaríamos nós fazer: a desfrutar a cidade como descoberta, como prazer; a ter férias quando nós estamos presos ao relógio, às prestações e à renda; a parar para admirar o Mosteiro dos Jerónimos quando passamos por lá todos os dias e nunca nos preocupamos porque no próximo ano ainda lá vai estar. Mas, quanto aos imigrantes… ah, eles são pobres, oh, meu deus, sejam bem-vindos, porque assim podemos brincar à Madre Teresa.

Basicamente, nesse lugar de irritação preconceituosa a diferença entre o turista e o emigrante parece ser o tamanho da mala. Se um vem de maleta ou mochila, porque os low-cost são lixados com os tamanhos, para levar os “suvinires” de cá, o que vem da Guiné traz a sua mala embalada em plástico, cheia de memórias lá da terra. 

Na verdade não gostamos de quem se movimenta em geral, seja para continuar a movimentar-se, seja para ficar. Mas volto à pergunta inicial: quem é, então, o turista?

Somos todos turistas, pobre e ricos, e provavelmente mais os pobres do que os ricos. De quando em vez somos nós o “corpo estranho” a ocupar aquele lugar, aquele espaço, aquela cidade que não é de ninguém mas que, ainda assim, os de lá odeiam ver ocupada pelos de cá, mesmo quando estão sempre a trocar de posição. 

Em resumo, este artigo não é sobre o turista, mas sobre nós. Talvez o problema não seja o turista, mas a falta de espelho e muita serenidade. 

por Marinho de Pina
Cidade | 21 Abril 2025 | imigrantes, preconceito, turismo, viagem, xenofobia