Diário de um etnólogo guineense na Europa (dia 11)

15 de dezembro - Os Lusitropicalíadas

O Tio Paulo Bano disse-me uma vez que os tugas têm um grande poeta, que respeitam tanto chamado Camones. Um pobre pobre que morreu pobre e que agora é usado para fazer dinheiro e também como marca dos tugas na terra-branco. Quando finalmente conheci o tal Camones, a minha admiração foi ver que ele tinha previsto algumas manhas e movimentações na Tugalândia. Camones, nacionalista da pesada, sabia que a tugalidade haveria de conquistar terras e lusotropicalizar gentes.

Inspirado no Camones, fiz a introdução para a epopeia que vou publicar num livro chamado “Os Lusitropicalíadas”. Vão aqui os primeiros cantos. Bem, eu sei que nem todos os tugas leram Camones e percebem essa coisa de poesia, por isso tenho de esclacer que canto aqui não é aquela coisa de futebol. Está bem? Segue:

“As farpas dos cabrões assinalados

que da acidental ideia salazariana,

por bares nunca antes misturados

passaram a vida além da lusotropicana,

com peritos e tretas esforçados

e mais brancura em mente africana,

então com gente idiota reedeficaram

Lusotropicanismo que tanto publicitaram.

 **

E também as memórias odiosas

daqueles fiéis que foram dilatando

o Tugoso Império e manhas viciosas

na África e na Ásia que andaram devastando;

e aqueles que hoje de formas pomposas

se vão dessas leis se entranhando,

lusotropicando espalham por toda parte,

dizendo-se ajudar de engenho e arte.”

 

Eu sei que não tenho o génio da lâmpada de Aladin do Camones, mas a minha epopeia “Os Lusotropicalíadas” vai ter mais brilho, sem dizer que eu sei escrever português melhor do que ele, o gajo nem Lusíadas sabia escrever, punha “Lvsiadas“, com V, com V, trocava os Vs com os Us, e tinha problema com os Ss sibilantes.

Por mares nunca de antes navegados

Paſſaram, ainda alem da Taprobana  

(…)

E entre gente remota edificarão

Nouo Reino, que tanto ſublimarão.

Os últimos dois versos mostram a genialidade do Camones. Ele escreveu “edificarão Novo Reino”, edificarão, sabia que iriam edificar e edificaram mesmo.

É essa também a semente para hoje se celebrar o DIA DO PRETUGUÊS, instituído a 15 de dezembro de 2021. A data é um resultado desse projeto de expansão do tempo do Camones, no entanto, com objetivo de democratizar o processo, revertê-lo e e tirá-lo da sombra imperial da Tugalândia. Mas vamos por partes, por enquanto só o resumo. 

Há muito anos, um gajo chamado Gilbert Mon Freire andava por aí a fazer fretes na ideia de que os portugueses eram bons colonizadores. Pegou no fenómeno da miscigenação que acontecia a rédeas soltas, resultado natural de interação entre humanos e cunhou um termo, lusotropicalismo, com ideia de ser uma coisa controlável pelo império… pelo estado, estado. O Santo António Salazar gostou tanto da ideia que adoptou o Gil como o seu menino de ouro para vender por aí que a colonização portuguesa era de qualidade excelsa. Se calhar foi por isso que chamaram ao boneco da Expo 98 de Gil… ou esse foi por causa do navegante do mar? Não importa.

Lusotropicalismo seria uma solução para a questão do “fardo do homem branco”, como se diz no poema do pai daquele menino criado por lobos chamado Mogli. Desta maneira, os coitadinhos dos brancos obrigados a se sacrificarem nas Áfricas, a fazer voluntariados e a operar oenegês para ajudar a civilizar os africanos, podiam dessa forma emprenhar as negras e lixiviar a raça negra, como parte de um projeto político. Assim parava-se com “aquela ‘pouca vergonha’ de uniões entre pretos e brancos que aconteciam por amor genuíno e que ofendiam os costumes e os religiosos, porque as outras relações, as violentas, as fetichistas e as mercantis, nunca foram um problema para essa gente de brandos costumes.

Quando contei isso ao tio Paulo Bano, ele disse que já tinha ouvido algo similar e que talvez seja essa a razão de na Guiné se desejar tanto ter filhos com pessoas de cor, homens e mulheres vermelhos, os sassa-boros.

Naquela altura do Gilbert também tinha um gajo chamado Eduardo Glissanto que falava em outros termos e tinha outros conceitos sobre a coisa da miscigenação, ele chamava à sua de “Crioulização”. O lusotropicalismo seria a ideia de uma miscigenação que teria o branquismo no centro ou a tugalidade, hoje lusofonidade. A crioulização é a ideia de uma miscigenação em constante construção. Raças, culturas, aculturações, transculturações, interculturações, apropriações… muitas dores de cabeça, muitas dores de cabeça. Juro que não entendo isso. Mas que importa? Cá na Tugalândia, seja lusotropicando, seja crioulizando, desde que tudo se faça à volta da tugalidade tá-se bem e o Santo António Salazar fica contente.

O tio Paulo Bano disse-me assim: “Olha só, sobrinho, essa coisa de miscigenação como projeto político é tão idiota, tão idiota e tão artificial. A cor da pele pode variar, mas não é isso que define os pecadores. Nós, como pecadores, e diferentes dos animais, miscigenação é o que temos feito desde o início. Por que achas que quase todas as culturas são contra o incesto?”

Prosseguindo. Primeiro os tugas encheram as suas caravelas e foram para as nossas Áfricas se tropicalizar e nos tugalizar. Quando percebemos o mecanismo da movimentação, começamos a juntar dinheiro, juntamos, juntamos, juntamos e hoje enchemos a sua TAP e vimos cá para a terra reclamar o nosso pedaço da cultura. Com que então querem dançar kizomba e nós ficarmos a olhar? Fogo, não!

O tuga adora o lusotropicalismo, mas só se for lá nas Áfricas, e quando não envolve pessoas tropicais. Dividimos para conquistar, os angolanos tomaram a Amadora, os cabo-verdianos tomaram a Damaia (há mais caboverdianos na Damaia do que em Cabo Verde) e nós tomamos a Arsena e o Rossio… próxima paragem: Brasil.

O grande problema ainda é que esse movimento não é justo. Quando o tuga vai à Guiné compra visto lá no aeroporto mesmo, quando o tuga vai à Guiné compra título de residência no mesmo dia, só precisa de levar duas fotos, mas quando nós queremos vir cá à Tugalândia, nem uma marcação para atendimento na Embaixada Tuga conseguimos, porque eles vendem essa marcação mais cara que o preço do visto e do bilhete de avião juntos. Quando o tuga vai à Guiné, ninguém quer saber se ele vai voltar, mas para virmos cá temos de comprar bilhete de ida e volta, acender velas, fender nozes de cola e prometer que vamos regressar no período estipulado. Os tugas não querem cá africanos não lusotropicados, querem os que sabem falar português e sabem comportar-se como branco, já meio-assimilados, para facilitar o processo. Sabem que esses são os melhores para difundir o império da cultura tuga lá nos trópicos quando voltam. São navegações desequilibradas.

Continuando, “Os Lusotropicalíadas” vai explorar os seguintes temas:

1. A jornada dos navegadores desesperançados que dobram o Mediterrâneo, à procura da terra de boa esperança, mas acabam aflitos no mar, a lutar com o Adamastor chamado União Europeia, porque não são queridos cá na Europa, para não tomarem as suas mulheres e os seus trabalhos e não estragarem a sua cultura europeia tão perfeita.  

2. O tráfico e a relação desigual entre os “tropicanos ou tropicalistas” e os “lusos” atrás referidos, onde a Tugalândia assina acordos de mobilidade para manter o seu luso-braço nas Áfricas, abrindo-as para si, mas fechando-se para elas, dificultando e sabotando os acordos, porque o Adamastor assim impõe, e sob o silêncio patrocinante dos governos que assinam os tais acordos.

3. A odisseia dos nossos navegadores que vieram para a Tugalândia plantar sementes e transformar a cultura tuga ou construir as casas e os passeios de Lisboa.

4. Os saudositas da colonização que, por de repente se verem sem os seus amos, vieram à Tugalândia à procura dos bons velhos tempos.

5. Os navegadores modernos das redes sociais que medem influência pela quantidade de “likes” e que estão a resgatar, dependendo do discurso, ou o lusotropicalismo ou a crioulização, mas à luz da tugalidade moderna, copiando maneirismos brancos, em vez de fazer, como alguns fazem, essa miscigenação de maneira disruptiva.

6. Por fim, os navegadores disruptores, nascidos cá ou que vieram para cá, que queimam os cânones coloniais e abordam as questões do ponto de vista do bem estar coletivo e da subversão do capitalismo e do classismo. Esses tugas pretos ou pretos tugados que dizem aos tugas tugas: “isto é tanto meu como teu, porque quando chove molhamo-nos todos”.

Enfim o “Os Lusotropicalíadas” vai ser sobre isto… Merda, esqueci-me dos ciganos…

Bom, sabem, no fundo, no fundinho, não sou contra a tese central do lusotropicalismo, as ideias de misturas. Sou apenas contra a sua finalidade política e o contexto em que foi usado. É necessário misturar, sim, as culturas ganham com isso. Do que não gosto é do lusotropicalismo tugacêntrico, que fecha algumas Áfricas dentro de Portugal, mas que fecha Portugal às Áfricas ao mesmo tempo que o quer expandir. É aqui que entra a Pretugalização.

Pretugalização é uma proposta que pretende misturar as ideias do lusotropicalismo e da crioulização e torná-las mais digeríveis, aos tugas pretos e pretos na Tugalândia. Uma vez que temos como língua partilhada o tal de português, uma vez que é a língua que promove a comunhão entre os nossos países, vamos primeiro limpar a ideia da pertença que a Tugalândia ainda reclama, pa mode há bué que não é só uma língua dos tugas, é uma bolanha fértil para experimentações. E como a maioria dos falantes é preto, nada mais justo do que desbranquizá-la.

Colocando o pretuguês num campo mais neutro, as negociações poderão começar a ser mais equilibradas, e deixar-se de falar de lusofonia ou de luso-qualquer-disparate para se referir as Áfricas, o luso fica só para os tugas tugas, os tugas pretos e os tugas crioulos.

Na Guiné já vamos mais avançados neste processo de influenciar a cultura tuga, por isso fazemos visitas (e recebemos outras), e ensinamos o Marmelo Rebelde de Sousa a redefinir coisas, como por exemplo, parar com os abraços e começar a andar de mãos dadas, e também a redefinir o seu conhecimento sobre a democracia, fazendo-lhe jogar para o lixo o seu diploma e anos de prática e medalhar-nos. Minha mãe de mim que me pariu!, os tugas estão tramados, não há afetos que os salve.

Enfim, a nossa ideia da pretugalização não era para destruir a noção da democracia de um professor muito afetivo e bem familiarizado com as ditaduras, os estados novos, as colónias e os ministérios coloniais, mas, enfim, a cavalo dado…

A pretugalização é um processo que não vai parar, as culturas têm de se entrelaçar com pesos e valores equitativos para criarem uma nova cultura e mais receptiva, não é preciso forçar nada, é só abrir os espaços.

Viva a Pretugalização e viva a língua Pretuguesa. Viva o 15 de dezembro.

P.S.: Para os brancos que não se sentiram representados pelo termo “preto”, só peço para se lembrarem dos seus ancestrais africanos e se auto-incluirem. Diz-se que a humanidade começou lá, não? E caso não saibam, agora é maningue naiss ter ancestrais africanos ou indígenas. Aproveitem, pá.

por Marinho de Pina
A ler | 17 Dezembro 2023 | Diário de um etnólogo guineense na Europa, Guiné Bissau, lusofonia, tropicalismo, tugas