O túmulo perdido de Copacabana

O túmulo perdido de Copacabana No início da quarentena, tive a ideia de comprar comida para pássaros e deixá-la no parapeito da minha janela. Talvez achasse que iria atrair as aves e fazer descobertas e me sentir menos só, assim. Mas me enganei, e acabei encomendando pela internet mais comida do que aquela que imaginava, e fiquei com quilos de pacotes de mistura para beija-flor, papagaio, e alpiste comum. Nenhum pássaro apareceu. Como choveu passado uns dias, a comida empapou sobre o mármore branco, e assim continua esperando que alguma alma da floresta da Tijuca se lembre de alcançar esta janela do 14º andar do Shopping Cidade para me dizer olá.

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03.05.2020 | por Rita Brás

A tristeza da terra e a voz das imagens

A tristeza da terra e a voz das imagens Nas obras artísticas da pós-memória, são comuns os casos em que o artista revisita o passado colonial fazendo apelo a uma reinterpretação dos arquivos históricos marcantes, muitos deles silenciados ou esquecidos pelas gerações seguintes. Um dos eventos que tem dado lugar a uma série de fecundas representações artísticas é o das mãos cortadas, um dos episódios mais medonhos do período colonial da Bélgica no Congo, em que os colonizadores cortaram as mãos dos africanos, especialmente as crianças, como castigo e exemplo de autoridade.

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02.05.2020 | por Felipe Cammaert

Contra-memórias do 25 de abril: silêncios, reparações e justiça

Contra-memórias do 25 de abril: silêncios, reparações e justiça As independências não foram uma concessão deliberada e solidária do novo regime, foram uma conquista que resultou da coragem e determinação de homens e mulheres que lutaram pela libertação e soberania territorial dos seus países e enfraqueceram o regime colonial português até ao limite das suas possibilidades humanas e militares. Além disso, o movimento anti-colonial nunca foi assumido e articulado pelas agendas políticas portuguesas do novo regime (tanto as de esquerda como as de direita) de uma forma assertiva e consequente, e essa negligência histórica tem repercussões e continuidades até aos dias de hoje, no que diz respeito à segregação, exclusão e obliteração racial em Portugal.

Mukanda

26.04.2020 | por Núcleo Antirracista de Coimbra (NAC)

Paulo Faria: a luta continua (cinco excertos)

Paulo Faria: a luta continua (cinco excertos) Escrevi o meu romance sobre a guerra para desapossar o meu pai do exclusivo da narrativa bélica, para o destronar, para escrever o livro que ele próprio não foi capaz de escrever. Para reescrever as histórias de guerra dele, para as extirpar da mentira posterior. Para o enobrecer. Fi-lo à custa dos outros veteranos, que viram as suas narrativas reformuladas, subordinadas à infelicidade do meu pai, por mim usurpada. Escrevi o meu romance para, com o engodo da guerra colonial, contar aos veteranos uma outra guerra, a minha. Quem vai à procura da guerra tem já uma guerra dentro de si.

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24.04.2020 | por Paulo Faria

Dias rotos

Dias rotos O meu maior luxo neste tempo foi escrever este texto e ontem à uma da manhã sentar-me durante meia hora, a revisitar as gravações que fiz no pátio interior do hotel Barbas, a 80 Kms da fronteira com a Mauritânia, no Sahara Ocidental, enquanto uma televisão fazia o relato do jogo da bola em árabe, sempre tão enfáticos nos seus relatos, e um grupo de senegaleses chegava em caravana para comer um thiebou djenne feito pelo cozinheiro do hotel, ele também

Mukanda

22.04.2020 | por Ricardo Falcão

Milagres da Carochinha

Milagres da Carochinha Marcelo estabelece uma ponte entre as seguintes ideias: “eles dizem que fizemos um milagre” + “estamos a fazer o milagre”. E avança a explicação oportuna: estamos a fazer o milagre porque Portugal é um milagre há 900 anos! Com o cansaço derivado de quatro semanas de isolamento, quem então ouviu os telejornais deve-se ter rido dessa ideia um pouco disparatada, ou pode ter pensado que se tratava de um excesso de entusiasmo do Presidente. Mas, conscientes ou não do que estava a acontecer neste discurso, os portugueses foram atingidos por um torpedo silencioso, em directo do Palácio de Belém para suas casas. O milagre explodiu no DNA cultural dos portugueses.

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21.04.2020 | por Ana Pais

Diálogos artísticos, transdisciplinares e intergeracionais: práticas artísticas contemporâneas e o imaginário de Ruy Duarte de Carvalho

Diálogos artísticos, transdisciplinares e intergeracionais: práticas artísticas contemporâneas e o imaginário de Ruy Duarte de Carvalho Que seja então levada a sério – com o mesmo espírito crítico e exigente com que foi realizada – a obra multifacetada de Ruy Duarte de Carvalho, assim como a das gerações artísticas que lhe sucederam, em Angola e na diáspora, e que, sem terem necessariamente pensado muito no que ele fazia, comungam, “por caminhos tão diversos mas também tão convergentes”, duma mesma prática e duma mesma busca.

Ruy Duarte de Carvalho

20.04.2020 | por Ana Balona de Oliveira

A pós-memória e a condição da vítima

A pós-memória e a condição da vítima O sujeito da pós-memória pode, no limite, construir para si uma identidade de “pós-vítima” e satisfazer-se com esse estatuto ou pode empreender o esforço de construir uma identidade inteiramente baseada na recusa dessa identidade e na busca de uma articulação muito mais complexa com a inevitável ambivalência da relação entre a geração da memória e a da pós-memória. É entre estas duas posições extremas que se situa a substância empírica da vida concreta de homens e mulheres confrontados/as com a violência da História.

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17.04.2020 | por António Sousa Ribeiro

Covil e chuva é a gente da nossa terra

Covil e chuva é a gente da nossa terra O barco custa a amarrar. Fico sem sonhos nem energias vivas. Ando por aqui a inventar tarefas e vou procurando trabalho online com outros milhões, agora. O futuro chegou mesmo depressa demais e nada me preparou a mim nem a ninguém para tudo isto. Condições ou doenças mentais, fábricas de comunicação, teletrabalho, hospitais de campanha, 15min de fama a enfermeiros portugueses, presidentes mediáticos, vazios de gente e ruído, concelhos fechados em si, lojas de vidro higiénico e empregados de luvas, filas para tirar senha para o supermercado, desinfetantes tantos quanto precisos e a estranha importância do papel higiénico. Tudo ao mais pequeno pormenor noticiado, como se a vida em si se transformasse num Hiatos e agora Home.

Mukanda

16.04.2020 | por Adin Manuel

Ler adorno em tempo de crise: da responsabilidade dos intelectuais

Ler adorno em tempo de crise: da responsabilidade dos intelectuais Ora, que este estado de coisas ande de par em par com o regresso das formas mais xenófobas de nacionalismo e de movimentos de extrema-direita, não deve surpreender ninguém. Pode dizer-se que a cultura do medo propagada até por políticos ainda alinhados a um centro convencional um pouco por todo o lado, e a suspeita em relação a intelectuais, peritos e profissionais em geral, são responsáveis, em parte, por gerar as condições necessárias para a afirmação do sentimento de desamparo que vivemos atualmente. É a esta luz que faz sentido hoje, talvez mais que nunca, ler Adorno.

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16.04.2020 | por Paulo de Medeiros

O Renascimento do Harlem: uma nova identidade afro-americana

O Renascimento do Harlem: uma nova identidade afro-americana No auge do movimento, o Harlem foi o epicentro da cultura americana. O bairro fervilhava com editoras e jornais afro-americanos, companhias de música, teatros, casas noturnas e cabarés. A literatura, a música e a moda criaram uma cultura definida e “cool” para negros e brancos, tanto na América quanto no mundo.

Cidade

15.04.2020 | por vários

José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem

José Craveirinha e o Renascimento Negro de Harlem O filósofo Severino Ngoenha questiona em que momento teria surgido a arte e literatura moderna moçambicana e sugere influências do Movimento do Renascimento Negro. Este artigo dá seguimento a este exercício a partir da obra de José Craveirinha.

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15.04.2020 | por Leonel Matusse Jr.

“Os cantos de Maldoror”: cinema de libertação da “realizadora-romancista”

 “Os cantos de Maldoror”: cinema de libertação da “realizadora-romancista” No contexto da produção internacional de um cinema político, engagé, Sarah Maldoror criou e manteve - desde Monangambé a Sambizanga, sobre a luta anticolonial em Angola, passando por Des fusils pour Banta, filmado entre os guerrilheiros da Guiné-Bissau - uma prática singular. Compôs um cinema político, servido por um olhar esteticamente cuidado, e em que, através de elementos ficcionais - e não através das opções documentais e do recurso ao cinema direto então característicos do cinema militante -, a ação não é tão central quanto a composição psicológica das personagens.

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14.04.2020 | por Maria do Carmo Piçarra

Sarah Maldoror e o cinema africano

Sarah Maldoror e o cinema africano 'Sambizanga' foi filmado durante sete semanas em Brazzaville, no Congo. Abordando a guerra colonial/de libertação, no período 1961-1974, tornou-se um dos mais importantes filmes sobre a resistência africana. A história centra-se na procura de uma jovem mulher pelo seu marido preso e culmina num conto de separação e brutalidade que, através da perícia de Maldoror, torna-se muito afirmativo.

Afroscreen

13.04.2020 | por Marta Lança

Piratas das Caraíbas, a frota dos EUA ao largo da Venezuela

Piratas das Caraíbas, a frota dos EUA ao largo da Venezuela Nas águas quentes das Venezuela, lançaram âncora navios de guerra norte-americanos. Prontos para desmantelar a rota de cocaína que sai deste país para os EUA, via ilhas caribenhas. Os piratas ou cowboys do século XXI, como lhes chamou Nicolás Maduro, cercam de mansinho o regime venezuelano. Distraído, confinado e monotemático, o mundo quase nem deu por isso.

Mukanda

11.04.2020 | por Pedro Cardoso

Pourquoi les poissons s’envolent

Pourquoi les poissons s’envolent A ideia de que os peixes fogem das águas do Delta do Saloum por causa do ruído não é minha. É a ideia usada por Lamine, um piroguier, para me explicar parte das mudanças em curso nesta zona costeira do Senegal. O ruído a que se refere é sobretudo o dos motores das pirogas, dos muitos pescadores que acorrem para tentar a sua sorte aqui. Mas há mais ruído. Esta paisagem sonora começa às 5 da manhã, onde a insónia é alimentada pelo forte rumorejar das águas, num pequeno hotel à beira do rio, os melhores registos sonoros parecem acontecer sempre às cinco da manhã.

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11.04.2020 | por Ricardo Falcão

Vítima do próprio sucesso? Lugares comuns do pós-colonial

Vítima do próprio sucesso? Lugares comuns do pós-colonial Será que a teoria pós-colonial mantém a capacidade auto-reflexiva que a define como teoria crítica ou, pelo contrário, tornou-se vítima do próprio sucesso? Será que os lugares comuns da teoria se mantêm produtivos como ponto de encontro vital, como lugares de diálogo e confronto crítico ou, pelo contrário, na acepção negativa do sintagma, já não são senão estereótipos, simulacros de pensamento? “When was the postcolonial?”, “Quando é que se deu o pós-colonial?”, interrogava-se já Stuart Hall num texto da segunda metade dos anos 90.

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09.04.2020 | por António Sousa Ribeiro

Menos dois

Menos dois A Carla diz que tenho de deixar o cabelo seguir o seu caminho, pois sabe exactamente o que tem de fazer e como se deve enrolar até chegar a cada conjunto de caracóis. Ela admoesta-me de cada vez que me ponho a enrolar e a desenrolar nervosamente com os dedos o que de si é já enrolado. Não sei se isto me ajuda a pensar ou dificulta a função. Parece que a minha paciência não dá, afinal, para tudo. Ou então, o meu cabelo tornou-se uma novidade; se calhar tento, apenas, perceber o que há de tão especial nisto. Quando sou eu que o toco, porém, o outro não sou eu e sim o meu cabelo, que já foi outro. É, vários graus de enrolamento.

Corpo

09.04.2020 | por Gisela Casimiro

O direito universal à respiração

O direito universal à respiração O processo foi mil vezes intentado. Podemos recitar de olhos fechados as principais acusações. Seja a destruição da biosfera, o resgate das mentes pela tecnociência, a desintegração das resistências, os reiterados ataques contra a razão, a crescente cretinice das mentalidades, ou a ascensão dos determinismos (genéticos, neural, biológico, ambiental), as ameaças à humanidade são cada vez mais existenciais.

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09.04.2020 | por Achille Mbembe

Tiago Gomes: lá vai ele e a sua solidão por aquele caminho serpenteante outra vez

Tiago Gomes: lá vai ele e a sua solidão por aquele caminho serpenteante outra vez Da Lisboa conhece os podres, os esquemas, o pessoal: músicos, bêbados, jornalistas, noiteabundos e lunáticos. E há a cidade sem solidariedade, povoada de sacanas, onde os cigarros arranham mais mas, por outro lado, o fado, o bitoque, a tasca, o rissol e o tremoço sabem mais familiares. O poeta diagnostica a superficialidade — “essa capa fina e invisível” — das pessoas giras, a cultura de plástico, o espectáculo e fetichismo do mercado que nos toldam como animais inofensivos e desejantes, atravessando-lhe o sarcasmo pós-moderno que se auto-satiriza. As estrelas caem de cadentes, roucas de tanto gritar.

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06.04.2020 | por Marta Lança