Ler adorno em tempo de crise: da responsabilidade dos intelectuais

série Reflexão | 2019 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo)série Reflexão | 2019 | Nuno Simão Gonçalves (cortesia do fotógrafo)

It was the worst of times, it was the worst of times. Again.
Ali Smith, Autumn (London, Hamish Hamilton, 2016)

Quando Adorno1 morreu, em 1969, a Europa, assim como outras partes do mundo, atravessava um período de crise e de mudança profundas. Claro que essa crise era bem diferente da que estamos a viver hoje. Enquanto 1968 deu azo a um manancial de protestos sociais radicais contra o Estado e outras instituições, a crise atual, mesmo que venha a ocasionar mudanças ainda mais profundas a nível global, parece, à primeira vista, ser bem diferente, devido à ameaça imediata da saúde de todos, à possibilidade mais do que real de um nível de mortalidade sem par em tempo de paz e ao choque inevitável do sistema económico mundial. No entanto, não é necessário refletir muito para se compreender que, de certo modo, os níveis de falta de preparação para se poder resistir à pandemia a que assistimos, assim como as várias medidas tomadas pelos diversos governos, também indicam um enfraquecimento profundo e sistémico da nossa capacidade  de resistência devido a décadas de medidas de austeridade que nos foram impostas, e que têm colocado vastos recursos nas mãos de uma pequena minoria, deixando quase todos os outros vulneráveis no meio de uma infraestrutura pós-industrial em desmoronamento. Ora, que este estado de coisas ande de par em par com o regresso das formas mais xenófobas de nacionalismo e de movimentos de extrema-direita, não deve surpreender ninguém. Pode dizer-se que a cultura do medo propagada até por políticos ainda alinhados a um centro convencional um pouco por todo o lado, e a suspeita em relação a intelectuais, peritos e profissionais em geral, são responsáveis, em parte, por gerar as condições necessárias para a afirmação do sentimento de desamparo que vivemos atualmente. É a esta luz que faz sentido hoje, talvez mais que nunca, ler Adorno.
 
Partindo dessa perspetiva, um ponto crucial para iniciar uma releitura de Adorno é o texto recém-publicado da sua palestra aos estudantes da Universidade de Viena, em 1967, com o título, Aspekte des neuen Rechtsradikalismus (Aspectos do novo radicalismo de direita). Embora estivesse acessível há muito tempo em formato áudio, era praticamente desconhecido até à sua publicação em 2019, no âmbito do projeto sistemático de publicação da obra completa de Adorno nas edições Suhrkamp. É de esperar que seja traduzido rapidamente para uma grande quantidade de línguas em muitos países, tendo em conta a lista de direitos já adquiridos tal como anunciado pela editora (1).
 
A receção crítica tem sido considerável e muito positiva, sendo que um dos pontos comuns é o foco na atualidade da análise feita por Adorno. Na verdade, a sua palestra não parece ter sido escrita há meio século, mas sim hoje, de tal modo aborda a crise política nos termos em que a enfrentamos hoje. Por um lado, mesmo hoje, nas democracias liberais ocidentais, em geral consolidadas e com tradição, a ameaça imediata colocada pela epidemia atual revela até que ponto as nossas sociedades têm vindo a ser enfraquecidas por investidas ideológicas, resultado de décadas de cortes brutais na infraestrutura, nos sistemas de saúde e segurança pública, assim como na sabotagem corrosiva do conceito de coletividade. Por outro lado – e não por coincidência –, esta epidemia também traz à luz e contribui para o rápido deslizar para uma política de exclusão, ódio, e medo de tudo o que possa ser rotulado como estrangeiro ou meramente diferente e ‘outro’. A extrema-direita tem vindo a semear o medo generalizado nas populações, especialmente em relação a supostas ‘vagas’ de refugiados. Ao mesmo tempo, não cessa de exaltar ideias de uma suposta grandeza imperial passada. E, num movimento de pinça concertado, clama por uma renovada ‘soberania’ desligada de qualquer significado que esse conceito mantenha no mundo de hoje. Ora, os métodos destes ataques simultâneos são paralelos, se é que não são até os mesmos.
 
Evitemos mal-entendidos: a situação de hoje não é a mesma de 1967, nem a de 1933. As ameaças atuais contra os princípios elementares da democracia, assim como contra os direitos conquistados e estabelecidos, deriva, como sempre, da monstruosa desigualdade. Mas isso por si só não significa que se possa simplesmente olhar para o passado e imaginar que sabemos qual era o problema e, a partir daí, imaginar a solução a dar aos problemas de hoje. Assim como o mundo tem passado por mudanças imensas através da aceleração da interdependência a nível global e da ascensão do capitalismo financeiro, a atualidade de Adorno não reside em nenhuma bola de cristal, mas sim numa visão aguda, lúcida e, acima de tudo, tanto crítica como autocrítica, das forças sociais. A visão de Adorno era uma visão ‘deformada, como não poderia deixar de ser, devido ao extremo abjeto do passado imediato, que trouxera a quase completa destruição da Europa e de outras partes do mundo. Tal como  Adorno exprime em Minima Moralia: Reflexões sobre a Vida Deformada: ‘a farpa no teu olho é a melhor lupa’2. Não é por já termos mais de meio século de distância entre nós e a vivência dos acontecimentos da segunda metade do século XX que podemos deixar-nos embalar por qualquer tipo de complacência que, afinal, nada mais é do que outra forma de cumplicidade.
 
O alargamento extremo do capitalismo financeiro, através das várias crises do sistema capitalista, também não tem nada de novo. Muitos observadores, como Giovanni Arrighi, Fredric Jameson e Joseph Vogl, para mencionar apenas alguns dos mais importantes, têm dedicado muita atenção às sinuosidades do capitalismo financeiro e dos modos como este se alimenta das nossas sociedades, ao mesmo tempo que as corrompe. Jameson, por exemplo, chega mesmo a comparar, e não por acaso, as operações do capitalismo financeiro com as de uma epidemia: ‘Portanto, o sistema deve ser visto antes como uma espécie de vírus (Arrighi não usa esta metáfora), e o seu desenvolvimento assemelha-se a uma epidemia (melhor dizendo, a uma série de epidemias, uma epidemia de epidemias). O sistema tem a sua própria lógica, que corrompe seriamente e destrói a lógica de sociedades mais tradicionais ou pré-capitalistas’3. Mais recentemente, Vogl sugere ainda que se veja o capitalismo financeiro como espectral, isto é, para além da materialidade do consumo: ‘a nossa tarefa é compreender como a economia financeira moderna está a tentar lidar com o mundo que criou à sua própria imagem. É um mundo em que o “espectro do capital” aparece como uma escrita secreta das forças que geram as normas pelas quais o nosso presente se constitui’4.
 
Adorno explicitou, com razão, que o retorno fantasmático do nacionalismo de modo algum seria travado pelo aumento da globalização e pelos limites impostos à autonomia das várias nações. Hoje, mais do que nunca, temos a prova disso. E, com Adorno, também podemos confirmar que a globalização acaba por inflamar o elemento demoníaco inerente a qualquer construção ideológica: ‘frequentemente as convicções e as ideologias assumem o seu carácter demoníaco, verdadeiramente destrutivo, quando, perante uma situação concreta, já deixaram de ser substanciais’5. Assim como Adorno sabia, em 1967, que os tipos de fascismo e de grupos fascistas que tinham reaparecido num novo período de crise não deviam ser simplesmente confundidos com formas anteriores de fascismo, também nós, hoje, deveríamos compenetrar-nos de que as ameaças ao nosso sistema democrático, cada vez mais evidentes pelo menos desde a crise financeira (e política) de 2008 – com a queda inexorável de um número cada vez mais elevado de trabalhadores para posições de completa precariedade, e o medo constantemente renovado dos estrangeiros – receberão um novo ímpeto com a atual epidemia. Obviamente que a preocupação em nos protegermos como indivíduos, como seres humanos e como cidadãos, assume prioridade quando nos vemos confrontados com uma crise cujas dimensões ainda nem sequer compreendemos bem. Mas temos de manter-nos vigilantes; não podemos abandonar o poder da Razão tal como Adorno nos lembrava, de modo a sustentar a verdade, a verdade sem ideologia, tal como Adorno o dizia, contra as mentiras do radicalismo de direita contemporâneo. Pois essa, como Adorno também nos lembra, é a responsabilidade dos intelectuais.

 

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Theodor W. Adorno. (2019). Aspekte des neuen Rechtsradikalismus: Ein Vortrag. Frankfurt a.M.: Suhrkamp. Aspects of the New Right-Wing Extremism. Transl. by Wieland Hoban. London: Polity, Forthcoming. Uma tradução para inglês, da autoria de Wieland Hoban, está prevista já para a primavera de 2020 na Polity Press. Estão previstas em língua portuguesa a edição brasileira (UNESP) e a portuguesa (Edições 70).
  • 2. ‘Der Splitter in deinem Auge ist das beste Vergrößerungsglas’. Theodor W. Adorno. [1951] (2003). Minima Moralia. Reflexionen aus dem beschädigten Leben. Gesammelte Schriften. Ed. Rolf Tiedemann. Bd. 4. Frankfurt a.M.: Suhrkamp. 55.
  • 3. ‘Thus, the system is better seen as a kind of virus (not Arrighi’s figure), and its development is something like an epidemic (better still, a rash of epidemics, an epidemic of epidemics). The system has its own logic, which powerfully undermines and destroys the logic of more traditional or precapitalist societies and economies’. Fredric Jameson. (1997). ‘Culture and Financial Capital’. Critical Inquiry 24.1. 246-265, 249. Giovanni Arrighi. (1994). The Long Twentieth Century: Money, Power and the Origins of Our Time. London and New York: Verso.
  • 4. our task is to understand how the modern finance economy is attempting to come to grips with the world it has created in its image. It is a world in which “the specter of capital” appears as a cipher for those powers from which our present takes its laws’. Joseph Vogl. (2015). The Specter of Capital. Transl. by Joachim Redner and Robert Savage. Stanford: Stanford University Press.
  • 5. Adorno, 13: ‘es ist ja sehr oft so, dass Überzeugungen und Ideologien gerade dann, wenn sie eigentlich durch die objektive Situation nicht mehr recht substantiell sind, ihr Dämonisches, ihr wahrhaft Zerstörerisches annehmen’.

por Paulo de Medeiros
A ler | 16 Abril 2020 | crise. Adorno, Memoirs