Diário de um etnólogo guineense na Europa (2)

18 de maio – conquistando

Epá, eu adoro os tugas. Acho os tugas muito fixes, muito boa gente, cinco estrelas. Gosto de todo o mundo, não faço distinção. Tirando que estão sempre de cara fechada, os tugas adoram indicar o caminho. Acho que isso vem da sua mania de grandeza, porque os tugas, pelos menos aqueles de Portugal, acham que descobriram todo o mundo.

O tio Paulo Bano já me tinha falado disso, disse que os tugas pensam que até o Cristo Bom Codjon, aquele homem que pensava que estava a ir para a Índia, mas foi parar à América… sabem?… Acho que o nome dele em espanhol é Cristóban Colón… Hahaha… o pai dele não devia gostar mesmo dele: cólon, colón, codjon, não sei qual é o pior… o facto é que era mesmo um colono… Bem, estava a dizer, os tugas dizem que até esse tal Codjon é também tuga de Portugal, e não tuga de Itália, isso para poderem dizer que foram eles que descobriram o mundo inteiro. E estão tão convencidos de terem descoberto o mundo que disseram que vão fazer agora um museu de descobridagem… bom, eu disse descobridagem, porque eles ainda estão incertos entre “descoberta” e “descobrimento”, acham que são diferentes… hahahaha, esses tugas matam-me com graça… parece que nem sabem a própria língua, terei de escrever-lhes também uma gramática?

Ai, eu divago muito. Voltando ao assunto, acho que essa coisa de pensarem que são descobridores ou descobertadores deve ter metido uma mania de grandeza qualquer na cabeça dos tugas, porque acham tudo pequenino, diminuem quase tudo, menos a sua própria importância. Por exemplo, o tuga, de manhazinha, quando sai da caminha, toma um cafezinho e vai para o trabalho. Ah, o trabalho eles não diminuem, acham sempre que é muito. Olha só, o tuga passa horas a regar um vaso na sua varanda e depois fica muito cansado porque trabalhou muito… epá, ainda bem que não vivem na minha tabanca, senão morríamos todos à fome, não haveria lavoura. O tuga saí da casinha, desce umas escadinhas e, se encontrar a vizinha, cumprimenta-a com um beijinho. Sabem, beijinho ainda até entendo, mas quando o tuga me manda um “beijinho grande”, aí fico completamente embaralhado… qual é o tamanho de um “beijinho grande”? é igual ao de um “beijo”, então por que não mandou logo um beijo?, se é maior que o “beijo”, então por que não um “beijão”?

Enfim, mas o tuga e essa coisa de que é grande é muito complicado, é a única coisa que não gosto muito nos tugas, pelo menos os de Portugal. Por exemplo, os tugas de Portugal dizem que o português deles é que é, porque 10 milhões deles o falam, e nem querem saber que no Brasil são 200 milhões. E sentem-se muito orgulhosos quando eu falo kriol, acham que o kriol é menos importante, porque tem uma origem portuguesa… coitados, não sabem que o português foi também um crioulo do latim. Alguns tugas ainda me fazem mais graça, pois nem sabem onde se situa a Guiné-Bissau e que língua falamos, ficam bastante surpresos quando digo que falamos também purtuguiss. Eu divirto-me imenso, eles são tão ingénuos, acham que são grandes descobertadores, mas não sabem o quê supostamente descobertaram. Mas eles têm esta cantiga que até já ganhou prémio:

“Já fui ao Brasil

Praia e Bissau

Angola Moçambique

Goa e Macau

Ai, fui até Timor

Já fui conquistador

 

Era todo um povo

Guiado pelos céus

Espalhou-se pelo mundo

Seguindo os seus heróis

E levaram a luz da cultura

Semearam laços de ternura

Foram mil epopeias

Vidas tão cheias

Foram oceanos de amor”

 

Quando voltar à Guiné-Bissau, vou fazer um museu para mim mesmo. Claro que não fui o primeiro a ir à terra-branco, por isso não posso falar propriamente de ter sido eu a descobri-lo, mas descobri muitas coisas sobre os tugas, sou um conquistador de verdades sobre os tugas.

Por exemplo, pensava que os tugas tinham só uma raça, pois é isso que eles escrevem nos livros, e na sua Constituição, até descobrir que eles têm outras também, por exemplo, uma raça que eles chamam de ciganos, eles não gostam nada desses ciganos. Eu fico, tipo: Kumekié, caralho!? N’tão!, vocês vão lá para a Guiné com os vossos padres e as vossas ONGs a falar que devemos nos juntar e mamar como irmãos, e vocês aqui não gostam uns dos outros! Caralho!

Ah, os tugas gostam de dizer caralho. Quando estão contentes é caralho, quando estão tristes é caralho, quando não estão nada é caralho, só para praticar. Uma dica: se quiseres falar como um tuga tuga mesmo tens de dizer muito caralhos, fodasses, merdas, porras e tal. Tem aquela outra raça dos tugas, chamados tripeiros, uiiii, esses são caralhentos pa caralho, não dizem um caralho sem dizer caralho.

Voltando aos ciganos, os tugas não gostam nada dessa raça. Eu pensava que os tugas não gostavam de pretos, mas já falei com muitos e me disseram assim: Epá, eu adoro os africanos. Acho os pretos muito fixes, muito boa gente, cinco estrelas. Eu gosto de todo o mundo, não faço distinção, tirando os ciganos… pois esses…

por Marinho de Pina
Mukanda | 13 Junho 2020 | etnografia, Guiné Bissau