A nossa alegria chegou - pré-publicação

Alguns mamíferos sabem que vão morrer. Estes três sabem que podem morrer hoje.

— O sol tem cores que nunca ninguém viu — diz Ira.

Atrás dele, Ossi abre os olhos. À frente, Aurora, também. De tão colados, a voz vibra nos três.

— Que cores? — pergunta Ossi.

— Cores sem nome, não as conseguimos ver — diz Ira. — Ouvi isto uma vez, lá na cidade.

— Há cores que não conseguimos ver?! — Aurora faz uma pala com a mão.

O sol dá-lhes em cheio. Três corações, seis pulmões, biliões de nervos numa cama de rede, tórax com tórax, boca com nuca, côncavos, recôncavos, convexos. Jovens como a jovem flor do cacto de Alendabar, a praia onde acordam.

Ossi segura o flanco de Ira, que segura o flanco de Aurora. Ela fecha os olhos, flecte o joelho esquerdo. Ira ganha ângulo e entra nela, com Ossi às costas. Primeira vez que acordam juntos, primeiro sexo a três, primeira hora de luz.

Este dia esperou por eles para mudar tudo. Pacto.

Um velho carocha avança na estrada que leva a Alendabar, piso de terra batida, esburacada, assim conservada para afastar estranhos. Toda a região em volta da praia tem um dono cha- mado Rei. Os seus visitantes chegam de helicóptero, tirando isso é raro um forasteiro vir. Além de má, a estrada termina numa vedação, como nas pequenas praias privadas. Nem pequena nem privada, mas só quem está a par rodeia o arame farpado.

Felix salta do carocha, enfim livre. Ainda não pode guiar e já mal cabe no carro, perna longa, juba dourada: cinge-a no alto da cabeça, distendendo os braços. Ao sol, refulge. Quinze anos! Como aconteceu isto?

Ursula, a mãe, sorri, não sabe. Pediu o carocha a amigos nesta parte do mundo, estaciona-o na última sombra antes da vedação. Da primeira vez que aqui veio, era tudo uma selva sem dono. Foi então que conheceu o futuro pai de Felix e hoje traz as cinzas dele. Morreu a muitos fusos horários daqui, onde mãe e filho moram. Felix nunca esteve nesta parte do mundo. Nunca ouvira sequer o nome Alendabar.

— Parece inventado — disse à mãe quando vinham no carocha, contornando os buracos cheios de chuva, espelhos do céu.

Olho na estrada, Ursula respondeu:

— Todos os nomes são inventados.

Aurora sente o vaivém de Ira até à raiz do cabelo, emissão de nervo em nervo, pélvis, vagina, estômago, faringe, cocuruto. Está quase de barriga para baixo, perna direita esticada, perna esquerda flectida, joelho no queixo, já meio fora da rede. Quando fecha os olhos, tudo flutua, aéreo. Quando abre, o sol dá na flor do cacto, mais um botão. A palma da mão de Ira cobre-lhe a nádega, e a cada vinda a pélvis dela contrai, a cada ida a pélvis dela expande: bomba de sódio e potássio, impulso eléctrico, motriz.

Ao mesmo tempo, Ira sente o vaivém de Ossi até à raiz do cabelo, emissão de nervo em nervo, ânus, próstata, estômago, faringe, cocuruto. De olhos fechados, é atirado às feras. De olhos abertos, é o amante do meio, homem atrás, mulher à frente. Quer cada luz deste dia, cada cor desta hora, o azul na flor do cacto: índigo. Floriu no dia em que ele nasceu, dizia a avó. Mas o cacto tinha milhares de anos já, vira o primeiro homem chegar, ou seria mulher? Passou tanto tempo que os equinócios deram a volta, as estrelas estão de novo onde estavam.

As mãos de Ossi estão nas ancas de Ira, bem mais estreitas do que as suas. Ossi é o mais pesado dos três, Ira o mais leve. Ossi nunca sentiu ancas assim, e entre elas tudo tão justo, músculo dando de si. Não vai abrir os olhos.

A qualquer instante, o Rei espera um convidado do Oriente a quem tenciona vender uma pequena parte dos seus domínios, a única que não lhe dá lucro. Antes de marcar a visita consultou o mapa celeste, como costuma fazer. Ouviu dizer que assim faziam os reis outrora, no Oriente, no Ocidente. O equinócio caía numa sexta-feira, calhava bem. Seria o início da nova estação, antes dita da colheita, agora do abate.

Hoje.

— Porquê hoje? — pergunta Felix, a caminho da praia, pulando uma poça. — Era alguma data especial para ti e para o pai?

— Não — diz Ursula, um pouco atrás. — Mas achei que ele gostaria por ser equinócio. Norte e Sul iluminados por igual, o dia com a mesma duração da noite, doze horas de luz… Lem- bras-te disto?

— Sim, não me lembrava que era hoje. Então começa a Primavera.

— Aqui, o Outono.
— Ah, claro. Estamos ao contrário.
Um pássaro pousa adiante, bica uma gota de chuva. Felix 
reconhece-o do álbum que tem desde criança: um poupatuti! Não há dúvida, é o único com este arco-íris na cabeça. Vai mandar uma foto ao pai. Mas mal pensa isso dói tanto que o corpo pula sozinho. Pula e pula, a ver se gasta a dor. Parte de Felix continua a pensar como se o pai estivesse vivo. Se calhar há células que se recusam a saber. Algumas células dele não sabem que o pai morreu.

— E porquê esta praia? — pergunta, pulando uma última vez. — Prometeste contar quando chegássemos.

— Ainda não chegámos — Ursula pára.

Um zumbido de helicóptero enche o ar. Mãe e filho olham para cima, os mesmos olhos amarelos. Olho de bicho, dizia o homem que com eles formava um trio. Antes de ser pai de Felix, antes mesmo de conhecer Ursula, provara cinza humana em Alendabar. Assim se fazia a despedida dos mortos, então. Parte da cinza era misturada com fruta, todos comiam um pouco. Depois caminhavam até à foz para lançar o resto no encontro das águas, doce-salgada.

O futuro pai de Felix contou isso a Ursula nesta praia, no dia seguinte a se conhecerem, e perguntou-lhe se comeria as cinzas dele. Deu uma gargalhada para não parecer dramático. Detestava parecer dramático.

Tinha várias vidas, já. Ela, vinte anos. 

 

A Nossa Alegria Chegou  (nas livrarias a 18 de Setembro)
de Alexandra Lucas Coelho
Companhia das Letras
ISBN 978-989-665-652-2
192 páginas
PVP c/IVA 16,50€

Sobre o livro:

Três jovens amigos, Ira, Ossi e Aurora, juntam-se num pacto: fazer uma revolução em Alendabar, o lugar onde moram, no primeiro dia do Outono. Nesse dia, uma mulher do outro lado do mundo chega a Alendabar com as cinzas do marido, trazendo o filho de ambos. E, no mesmo dia ainda, o dono de todas as terras em volta, conhecido como Rei, recebe um convidado do Oriente. O destino de todos vai cruzar-se ao longo das doze horas de luz deste equinócio. 

Em A nossa alegria chegou, Alexandra Lucas Coelho cria pela primeira vez um lugar, com a sua fauna, a sua flora e o que sobra de uma língua perdida. Há deuses antigos, servos, pirâmides. Também há helicópteros, mortes em série, inteligência artificial. Não sabemos em que ano a história acontece, nem em que parte da Terra. O mal de toda a parte está em Alendabar, o mal de Alendabar está em toda a parte. Mas Ira, Ossi e Aurora acreditam que o bem está na luta.

por Alexandra Lucas Coelho
Mukanda | 12 Setembro 2018 | A nossa alegria chegou, Alexandra Lucas Colho, romance