A literatura, uma arte triunfal. Entrevista a Lídia Jorge

Lídia Jorge (1946-) é uma das escritoras mais representativas da geração pós-revolucionária em Portugal. Os seus livros (ficção, teatro, literatura infantil, ensaio e poesia) estão traduzidos em mais de vinte idiomas e publicado em diversos países. A escritora já foi galardoada com variados prémios literários nacionais e internacionais, incluindo o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas 2020, uma das distinções literárias mais importantes da América Latina.

Esta entrevista foi gentilmente concedida pela autora a 4 de abril de 2022, no dia em que oficialmente foi inaugurada a Cátedra Lídia Jorge na Universidade de Massachusetts, Amherst, EUA.

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Margara: Desde a sua primeira publicação, O dia dos Prodígios (1980), até hoje, o registo ficcional da história social e política de Portugal constitui um tema recorrente na sua obra. Quais são os pontos de viragem que a marcam? Existem mudanças temáticas e textuais significativas ao longo do tempo no seu trabalho?

Lídia Jorge: Há uma linha de continuidade e, naturalmente, algumas ruturas. Uma parte de nós é filha do tempo, a outra cria um tempo próprio. Como autora, situo-me entre os escritores europeus que têm construído a sua narrativa em torno do fim dos impérios. No meu caso, o fim do império português foi traumático por tardio e por ter terminado com uma guerra colonial que durou mais de uma década e colheu muitas vidas. A minha geração interpretou esse momento e assistiu, por outro lado, à Revolução do 25 de abril de 1974, que ficou para a história como a Revolução dos Cravos, que não só permitiu o fim da guerra como nos legou a democracia. Podemos dizer que aquele dia inaugurou uma sociedade nova, mas também um tempo novo na literatura portuguesa.

Margara: E no seu caso particular como se situa, enquanto observadora ativa e como escritora que tem dado conta dessa mudança?

Lídia Jorge: Enquanto escritora sinto-me uma construtora da vida marginal, ou mais propriamente uma espécie de testemunha do tempo que passa. No plano da mudança social, o facto de nos termos integrado na Europa, depois da Revolução, colocou em estado de stress um país que mantinha demasiados traços arcaicos, e o percurso rápido que precisou de fazer pôs em evidência conflitos profundos da sociedade portuguesa. Foi necessário um esforço estoico por parte da população. Em situações desse tipo, as questões ontológicas colocam-se com grande agudeza. Faço parte do grupo dos escritores que tornaram essa mudança social e histórica literariamente visível, mas a partir do palco interior das personagens, a partir de um olhar individual transfigurado. Se precisasse de criar uma epígrafe que englobasse numa única frase o conjunto do que escrevi até agora, diria: Estes livros falam de um tempo em que uma ideia de império morreu e se levantou uma sociedade livre.

Margara: No entanto, regista inflexões.

Lídia Jorge: Sim, claro que encarei outras perspetivas, como seja a transformação da família e dentro dela o papel das mulheres, como elas enfrentaram a mudança portuguesa e a mudança europeia e global. Nos anos sessenta, em três mulheres portuguesas, uma era analfabeta, o que diz muito sobre uma sociedade. Mas sobre esse passado de pouca instrução e com fortes traços arcaicos, muitas mulheres portuguesas mostraram querer ser livres e donas de si mesmas. Outras, talvez demasiadas, ficaram prisioneiras de heranças difíceis. Não quero confundir estes aspetos sociológicos com o plano literário, mas ainda assim, não posso deixar de dizer que esta é uma temática à qual as escritoras portuguesas têm dedicado milhares de páginas. É impossível ser-se indiferente às franjas mais desfavorecidas da sociedade onde os traumas e o legado dos oprimidos mais se faz sentir e mais afeta as mulheres. A escrita é uma corrente sanguínea que passa de corpo a corpo.

Patrícia: Com efeito, em vários de seus contos e romances, as personagens femininas parecem dotadas de uma lucidez particular sobre o que está acontecendo no mundo. Muitas vezes eles retificam ou contam de outra forma a suposta proeza da História ou atendem com irónica distância as versões veiculadas por diferentes emissores masculinos. Poderia falar sobre o papel e o significado das personagens femininas no seu trabalho?

Lídia Jorge: Com naturalidade. Basta que o ponto de vista das mulheres seja autêntico. Quando uma escritora segue o ponto de vista das mulheres, sabe que está a escrever dentro da historicidade. Porque as mulheres, tal como os homens, são seres da sociedade e da história. Atribuir-lhes um olhar próprio é enriquecer a História com maiúscula, escrever a outra parte que faltava. É também escrever os seus sentimentos, anseios, desejos e buscas de sentido que lhe são próprios. Eva Lopo de A Costa dos Murmúrios tem um olhar sobre a Guerra de África que as personagens masculinas de Lobo Antunes ou João de Melo não têm. O mesmo sucede com a narrativa da viúva de Charlie 8 sobre a Revolução. O seu olhar é diferente e por isso revela, creio, uma outra dimensão desse acontecimento que de outro modo não emergiria. Quem escreve sabe que procura atingir pela multiplicidade das vozes um saber múltiplo que afasta do texto o ponto de vista único. Cada voz feminina, enquanto personagem, empresta um novo ângulo de observação do mundo. Não importa que seja vencida na teia da trama, o que interessa é o seu ponto de vista seja triunfante, que ela interprete o triunfo de uma perspetiva válida que preste tributo à clarividência.

Patrícia: Eva Lopo de A Costa dos Murmúrios (1988) ou Ana Maria Machado de Os Memoráveis (2014) ou mais ainda, Milene de O Vento Assobiando nas Gruas (2002), são figuras vencidas, ou pelo menos diminuídas. No entanto, elas transmitem uma sensação de glória, uma glória invisível…

Lídia Jorge: Gosto da designação de vencidos não medíocres atribuída a esse tipo figuras. As minhas personagens femininas poderiam ser consideradas, contraditoriamente, como perdedoras excelentes. Este tema levou-me a ter trocas de impressões muito interessantes com Agustina Bessa Luís, por oposição. Eu não me sinto inclinada a escrever sobre mulheres poderosas, prefiro escrever sobre figuras que têm um poder de olhar desmistificador. Podem ser vítimas, podem interpretar atos sacrificiais, podem desejar trocar as suas vidas pela obtenção de um bem para os seus, ou por uma causa, como a velha Ana Mata, em O Vento Assobiando nas Gruas, que oferece a sua vida ao mar, numa atitude de superstição primitiva, para salvar os seus. Não o faço deliberadamente, mas porque a escrita me conduz a essas figuras, porque delas ressalta um conhecimento de que eu própria necessito. Ao construir esse tipo de personagens, eu não as concebo enquanto vítimas, mesmo que no código comum o possam parecer. Elas apenas perpassam por instrumentos de definição que lhes conferem o poder de vencer a vida. Isso é muito importante porque resgata alguma coisa que as mulheres escondem, a ideia de uma oferta generosa e absoluta que não está suficientemente escrita.

Além disso, naturalmente, o que faço inscreve-se na perspetiva da desmistificação da história oficial e masculina, mas também na convicção de que o triunfo da perspetiva poética é um passo para a justiça. Acredito que há um plano na poética, na criação da fábula, que reclama uma justiça e que só ela pode reclamar. Um equilíbrio que acontece fora da perspetiva banal do happy ending.  Na verdade, não é preciso existir qualquer final feliz porque a fábula labora sobre o oxímoro: ao apresentar um insucesso, reclama por oposição, um sucesso. E depois existe o desejo na Literatura como em qualquer Arte, a ambição de alcançar uma totalidade de experiências, ser tudo e todos em toda a parte: velhos, novos, o lobo, o arvoredo, o mar, ou até a parede de uma casa, que vê passar gerações, e ela ali a observar a passagem do tempo. Por isso, sendo mulher, imagino como é ser homem, e também quero ser garoto e adolescente, mas conheço melhor as mulheres do que os homens, sobretudo por afinidade de corpo, e o corpo é a centelha densa do espírito. Assim, há uma simpatia biológica que promove a sintonia, e uma condição histórica que promove a compaixão e a demanda da justiça.

Margara: Mas, como levar essa justiça poética, essa promessa de arte, à vida de todos os dias? Como se relacionam as vidas ficcionais com as condições reais das mulheres em Portugal?

Lídia Jorge: A Literatura é um desafio contra a lógica do mundo. Mostrar vidas e relatar as suas batalhas de uma forma diferente daquela que é real, promove a esperança e a liberdade. Esse é o grande desafio da arte da linguagem poética e narrativa. Em Portugal, um número minoritário de raparigas e mulheres autonomizou-se e compete numa posição de quase paridade com os homens, mas a maior parte segue vivendo em estado de submissão, sofre de violência, não encontra mecanismos para se defender publicamente e ainda é menorizada como cidadã. Portanto, há um descompasso entre as que conseguem ultrapassar uma determinada fasquia cultural e educacional e as outras que permanecem ainda numa de grande fragilidade.

Nesse domínio, creio que muitos dos livros das escritoras portuguesas, de forma direta, ou mais indiretamente, acabam por inspirar o desejo de mudança e o espírito de insubmissão junto do grupo maioritário que ainda não foi capaz de atingir o patamar de liberdade e de uma cidadania adulta e que está ainda numa fase de conquista da sua própria voz. A arte labora no domínio da subjetividade, mas em última instância atinge as estruturas do poder económica e sociológica. Reparem que Portugal foi um país pobre e a lembrança da míngua demora muito tempo a passar. A lembrança da fome traz timidez e não cria oposição. Trata-se de uma sociedade que ainda vive com muitos traumas escondidos. Crê-se que à superfície as coisas estão em harmonia, mas se arranharmos a película mansa com a ponta de uma unha, percebemos como por baixo escorrem lágrimas. A literatura tem esse papel de arranhar, de pôr a nu o que está escondido.

Patrícia: Mas isso não acontece sobretudo pela desigualdade de acesso a oportunidades económicas?

Lídia Jorge: Sim, e isso é óbvio, mas também pela questão da descrença na justiça, a justiça dos tribunais que ainda não incorporou as soluções adequadas face aos desafios sociais de hoje. É ainda muito frequente a ideia de que é melhor um bom acordo do que uma má demanda. Nas disputas da parentalidade, é frequente ouvir mulheres dizer que preferem ficar com muito pouco, ou até nenhum dinheiro, para os filhos, mas ficar em paz do que criar um conflito e ter o homem à porta pronto para matá-la. Então, aceita-se a menor compensação para salvar o possível e isso é ainda muito típico nas mulheres portuguesas, ainda que nos últimos tempos se fale mais de reivindicação e demanda de justiça e de proteção. Em Portugal, como em Espanha, em Inglaterra, enfim, um pouco por toda a Europa muitos homens matam muitas mulheres. Quando se pensava que, à medida que elas fossem mais cultas, a cultura iria tornar o diálogo mais plausível, o que acontece é que há homens que não aceitam um diálogo de igual para igual, não aceitam que a mulher argumente e contraponha. E isso acontece mesmo entre os mais jovens. Ainda que estejamos num processo de emancipação feminina, há infelizmente muitos relatos de violência no namoro, por exemplo, o que é surpreendente.

Margara: Complementando a pergunta anterior, qual é a sua opinião sobre o movimento feminista português e/ou transnacional, nas suas várias tendências e lutas das diferentes frentes da sociedade? Como o feminismo influenciou (ou não) seu trabalho como romancista?

Lídia Jorge: Em Portugal houve um movimento feminista muito forte nos anos 70. Algumas  mulheres assumiram com grande vigor o feminismo como corrente reivindicativa, ativista e política. Eu pertenço a uma geração que beneficiou desse combate. Sinto-me herdeira e devedora, mas feminista de forma diferente. Defendo sobretudo o ponto de vista das mulheres enquanto autoras e isso implica engrossar a reivindicação feminista. Por outro lado, do ponto de vista social, onde há uma luta pela dignidade das mulheres, estou entre elas. Luto para que lhes seja feita justiça, mas o meu terreno é a escrita, é nesse plano que assumo a integralidade da minha reivindicação. Ou por outras palavras, assumo que os meus livros se constroem sob a ordem do feminino; não duvido, pois, que não posso deixar de ser feministas. Em Portugal, uma das batalhas mais importantes das últimas décadas foi pelo direito à interrupção voluntária da gravidez. Foi árduo, debati-me em absoluto pela liberdade de decisão das mulheres. As mulheres devem ter o direito a decidir sobre o que acontece no seu próprio corpo.

Do ponto de vista dos movimentos feministas, as portuguesas, ao contrário das espanholas, que são muito mais ativas nas lutas feministas, não se envolvem em grandes manifestações de rua. Conscientes de pertencerem a uma tradição patriarcal ainda muito enraizada, reconhecem que o afrontamento não as favorece e, por isso, preferem agir em pequenos grupos. É interessante mencionar que o governo socialista que tomou posse há escassas semanas em Portugal é, pela primeira vez, um governo paritário: 9 homens e 9 mulheres. E isto é de facto esperançoso, porque vemos que o nosso caminho, aberto sem grande rumor, tem sido sólido.

Há ainda outra questão que me parece relevante e que se prende com a visibilidade incandescente de certos movimentos feministas atuais, como o #MeToo que se espalhou por toda aparte. Em minha opinião, é muito oportuno porque desoculta práticas perversas escondidas desde sempre. Mas convém ser justo e não ultrapassar fronteiras de salubridade afetiva, comos seja a penalização da sedução própria que conduz ao amor, uma das bases do encanto da vida. A sedução é uma parte desse encanto, uma parte da beleza da vida.

Margara: Voltemos à literatura… Quais são as referências literárias que mais a marcaram? Por outras palavras, gostaríamos que nos falasse sobre os autores e obras que formaram sua visão do mundo e sua Poética.

Lídia Jorge: Comecei a escrever desde muito cedo, coisas de criança, mas no início da juventude encontrei um livro que me impressionou muito e que me incitou a escrever de forma adulta, Nada, o fabuloso romance da catalã Carmen Laforet. Uma narrativa construída a partir da perspetiva de uma jovem que fala do trauma da sociedade espanhola um ano depois da guerra civil, sem no entanto referir diretamente o conflito. Essa formulação, que permitia falar da guerra política concreta, sem a mencionar, transferindo para a interioridade psicológica das personagens toda a intensidade dramática, marcou-me muito. Creio que aprendi alguma coisa com ele que ainda hoje continuo a usar. 

Um outro livro verdadeiramente marcante, que li nessa mesma fase da minha vida, e que ainda hoje me acompanha é o maravilho The Old Man de William Faulkner. Na faculdade, lia sobretudo escritores franceses do pós-Segunda Guerra Mundial, os existencialistas e autores do nouveau roman, mas eu sentia que aquela era uma escrita sofisticada, demasiado afastada da minha experiência direta de vida. Não me interessavam parábolas formais, filosóficas, eu precisava de modelos que albergassem os reflexos da vida brutal que eu tinha conhecido nos campos do Sul do meu país, onde a salvação provinha da maravilha da natureza.  De resto, as grandes paixões humanas, primitivas, como a traição e a vingança eram tremendas. Eu tinha testemunhado a pobreza, a injustiça, o homicídio, a vida de pessoas sufocadas pelo peso do destino, relações brutais de exercício do poder discricionário dos que tinham sobre os que nada possuíam, e imaginava encontrar livros contemporâneos que me ensinassem a escrever sobre esse aluvião humano. Eu andava à procura de uma forma de efabular, diante da qual a minha experiência não fosse estrangeira, e de súbito li esse livro pequenino de Faulkner que apareceu na coleção de bolso da Europa-América e fiquei muito animada. Achei que podia escrever a partir da brutalidade do mundo de onde eu vinha. Tinha ali um modelo. Um pouco depois, quando comecei a ler os latino-americanos, percebi que havia grandes narradores contemporâneos que não só falavam da dureza da vida rude como ainda por cima conseguiam transfigurá-la. A leitura de Pedro Páramo foi uma revelação. Acabaria por publicar em 1980 O Dia dos Prodígios, e penso que, com esse primeiro livro, encontrava o início do caminho.

Patrícia: Como escritora reconhecida e celebrada internacionalmente, onde se coloca dentro do cânone da literatura portuguesa?

Lídia Jorge:  Essa é uma pergunta de resposta difícil… Permita-me que me situe no espaço concentrado que é a literatura portuguesa escrita por mulheres. No século XX posso marcar três etapas. Uma primeira em que as escritoras quiseram marcar uma identidade cívica, sentirem-se reconhecidas como vozes autónomas. Nos anos 50, essas escritoras reivindicaram um descritivo da conduta feminina. O maior exemplo é Agustina Bessa Luís, mas também destacaria escritoras como Isabel da Nóbrega ou Maria Judite de Carvalho. Escritoras que escreveram sobre a as mulheres na luta pelo reconhecimento da sua existência como vozes merecedoras de atenção e visibilidade. Descreveram o espaço do seu domínio e disseram nós existimos, somos importantes e aqui está a nossa escrita a provar que nós somos criaturas válidas e exercemos poder no meio dos muros. Nos anos 70, porém, dar-se-ia a grande revolução.

As Três Marias (Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno) foram, sem dúvida, um exemplo de combatividade e criatividade singularíssimo, hoje em dia cada vez mais valorizado. Elas trouxeram a semântica do desejo feminino para o espaço da literatura. Encontraram as palavras apropriadas para dizer nós sentimos de outra maneira, expondo-se eroticamente e reafirmando a diferença entre mulheres e homens. As Três Marias criaram uma espécie de alfabeto erótico, de desejo e de subversão do lugar amorfo que lhes era dado. Contestaram na prática a visão de Freud da mulher tida como um homem castrado, vivendo com inveja do sexo masculino. São vozes completamente antifreudianas. As Novas Cartas Portuguesas de sua autoria foram publicadas em 1973 e o regime perseguiu as autoras e iam ser julgadas como criminosas, quando se deu a Revolução! Creio que a seguir se poderá falar de uma outra geração, herdeira e devedora das que lhe antecederam, mas diferente. O militantismo que havia caracterizado as companheiras anteriores, ficou mitigado. Falo de Teolinda Gersão, Hélia Correia ou Luísa Costa Gomes, e onde me incluo também. Este grupo, ligeiramente mais jovem, estava preocupado em falar da mudança civilizacional, política e cultural que ocorreu. Se até ali se tinha tratado do papel da mulher dentro da família e das famílias, e depois da subjetividade pessoal e da dimensão erótica, as mulheres da minha geração, as dos anos 80, quiseram ter o embate com História assumindo o ponto de vista feminino sem cedências. Claro que este é um esquema precário, a realidade é bem mais matizada.

Margara: Falemos do seu mais recente romance, Estuário (2019). Aqui há uma personagem que copia, verso por verso, a Ilíada. A cópia feita por Edmundo Galeano, com sua mão mutilada e no contexto de uma família arruinada, tem um significado simbólico poderoso. O que nos podem dizer hoje, nesta sociedade hipermoderna e hipertecnológica, os versos de Homero e Pessoa? Será um apelo às humanidades? A literatura é um bem supremo que jamais perderemos? Mas como não perdê-lo com as nossas pobres mãos mutiladas, neste preciso momento em que assistimos a outra guerra?

Lídia Jorge: Bom, a sua pergunta é já em si uma boa resposta. Sobre o significado deste livro, gostaria apenas de assinalar que essa personagem, Edmundo Galeano, perde parte da mão direita não numa guerra qualquer, mas numa guerra especial, numa ação humanitária. Através de uma ONG, ele vai para Dadaab, o maior campo de refugiados localizado no Quénia, África Oriental, e é aí que trucida uma mão, ao retirar do lixo um recém-nascido abandonado por uma jovem violada. E, quando regressa, em vez de fazer fisioterapia, decide escrever como exercício.

O significado dessa história encontra-se nas próprias palavras desse jovem. Ele diz muitas vezes que queria ele próprio escrever para lembrar que, se não houver mudança, o mundo irá ser um grande campo de concentração, como Dadaab, ele queria contar que tinha visto o inferno na Terra e que era urgente agir. Ele copia a Ilíada porque este poema épico termina com dois assassinatos – Heitor mata Pátroclo e é morto por Aquiles – ou seja, reproduz-se aqui uma cadeira de vingança para se obter o poder. A grande lição é a de que é completamente inútil lutar porque ninguém vence, todos perdem, porque todos morrem. Sendo a Ilíada escrita hoje, a humanidade inteira desapareceria. O que Edmundo Galeano vem dizer é que os livros da Poética moderna anunciam o fim da humanidade, ou seja, avisam-nos de um perigo que nos pode destruir e que está dentro de nós. Nesse sentido, ele recorda-nos de que as letras podem ser salvadoras.

Patrícia: A herança colonial de Portugal aparece em vários de seus romances e contos e em várias entrevistas menciona a nostalgia do império perdido. Crê que essa nostalgia é compartilhada por todos os países que foram hegemónicos em um determinado momento da história? Por que escreve sobre a experiência portuguesa em África e a presença africana em Portugal?

Lídia Jorge: Penso que a herança colonial é perigosa em Portugal e em toda a parte. Ela implica um trauma que não foi ultrapassado. Uma coisa são as teses sociológicas que dizem isto está ultrapassado, outra é o que profundamente se passa nas sociedades. Fazem-se estudos quantitativos que não correspondem ao que de facto está no coração das sociedades. É verdade que há comportamentos que provêm do período colonial e ainda perduram vivamente.

É bom lembrar que, do ponto de vista literário, a Europa apenas começa a fazer a denúncia do racismo e a denúncia do colonialismo com um livro que é de 1901, de Joseph Conrad, O Coração das Trevas, depois com o livro de Thomas Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria. E, só em 1992, aparece o livro de Sven Lindqvist, Exterminem Todas as Bestas, que recupera Conrad para mostrar como o Holocausto foi ensaiado no colonialismo. Hoje, o tema é central, e deve continuar a ser enquanto o passado vier de volta e a ferida não for sarada. As sociedades europeias continuam a ser colonialistas e é muito difícil desmontar essa mentalidade. Tenho para mim que o tema literário dominante do século XXI será o tema colonial, o tema do racismo, algo muito difícil de superar sobretudo porque as vozes daqueles que representam as vítimas ainda não foram ouvidas. O ressentimento é um impulso muito profundo, que não se consegue controlar do ponto de vista racional. Na Europa, há o desejo de querer ultrapassar os horrores do passado, mas quem é descendente das populações oprimidas não conseguem ter essa visão, e com razão, porque estão sedentos de encontrar os seus heróis e de legitimar as suas vozes. É no meio deste turbilhão de posições e conflitos sociais que nos encontramos.

Patrícia: Mudemos agora de assunto. Em Todos os Sentidos é o seu primeiro livro de crónicas destinado a ser lido na rádio. Como foi a experiência de escrever nesse contexto?

Lídia Jorge: Encaro as crónicas são como uma espécie de contos suspensos. No conto há sempre a necessidade de dar um desenlace, na crónica não. E esta prática é muitíssimo libertadora. A crónica nasce de uma instigação que o quotidiano traz e fica em suspenso, uma espécie de mistério que fica por resolver. O conto precisa de iluminar e dar uma solução, mas na crónica sucede algo estupendo: basta descrever a situação e dela resultar um pensamento, uma espécie de digressão vadia. De forma que foi muito libertador e não me custou nada escrever estas crónicas, e ainda por cima estive sempre acompanhada da música do maravilhoso trompetista Chet Baker. Esta combinação entre palavra e música foi uma experiência perfeita. As palavras e as ideias pareciam realizar-se à medida.

Margara: Como vê o panorama atual da literatura portuguesa contemporânea? Poderia falar sobre alguns nomes que considera interessantes e/ou promissores?

Lídia Jorge: Eu acompanho o máximo possível o que se escreve hoje e creio que esta nova geração está dando bastante conta do recado e está encontrando no mundo atual os desafios para criar boa literatura. Não vou dividir entre homens e mulheres, nem posso nomear todos. E também é preciso dizer que todos estes jovens trazem propostas muito diferentes. Destaco, por exemplo, Bruno Vieira do Amaral, Ana Margarida de Carvalho, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, Inês Pedrosa, Patrícia Reis, João Tordo. E no que toca à questão pós-colonial em particular, destaco os nomes de Dulce Maria Cardoso, Isabela Figueiredo e Djaimilia Pereira de Almeida, vozes que trazem uma nova perspetiva que complementa a voz da minha geração que viveu durante a ditadura e o colonialismo – estas escritoras denunciam a visão dos europeus sobre quem vem de África, falam por exemplo do ressentimento colonial e do racismo, trazem uma perspetiva em primeira pessoa, individual sobre a experiência imperial, mas também sobre o legado colonial e a dificuldade de inserção na sociedade portuguesa pós-colonial.

Margara: E esta é uma pergunta inevitável. Poderia falar-nos um pouco sobre a pandemia e dos seus efeitos na sua escrita? Como vivenciou este longo período de medo e de isolamento?

Lídia Jorge: A visão de mundo mudou porque se acentuou muito a noção de vulnerabilidade global. Tinha acabado de publicar o Estuário justamente sobre a vulnerabilidade da Terra e dos seres humanos e de repente com a pandemia, percebemos que não havia um autor do mal e que o mal estava na natureza. E nós estávamos a combater sem saber o que era, essa nossa cegueira de não saber como enfrentar esse mal, creio, afetou a todos. No meu caso em particular, isto afetou-me muito porque a minha mãe faleceu com Covid praticamente no início da pandemia, portanto, tenho dificuldade em ter clareza sobre o que aconteceu porque foi muito penoso para mim e ainda não fiz esse luto. Nessa altura, tinha um livro em mãos e comecei a escrever outro, porque senti que aquilo que estava a escrever antes não podia ser mais escrito.

A noção de vulnerabilidade e a presença da morte tão próximas deu-me a ideia de que estava a criar algo ligeiro e de que era preciso dar eco a alguma coisa mais profunda… Porém, não acabei, nem sei se sou capaz, mas tenho estado a escrever sobre isso. Trata-se de um livro híbrido entre ficção, testemunho e poesia, um livro mais pessoal, um livro em torno do último ano da vida de uma mulher.

Patrícia: Foi muito solicitada a escrever durante esse período?

Lídia Jorge: Muitíssimo. Pediram muitos textos de reflexão sobre o momento que estávamos a viver, sobre como o mundo iria ficar. Escrevi treze crónicas e escrevi sempre com a ideia de que a experiência traumática era tão forte que nós poderíamos tornar pessoas melhores, de que a Terra era só uma, que haveria mais proximidade e irmandade.

Pela primeira vez, fomos de facto uma aldeia global e isso deu-me um sentido de proximidade muito grande. Eu pensava que a partir daí iríamos ficar melhores pessoas. Porém, há exatamente um mês e uma semana que a vida é outra. Publiquei uma crónica há quinze dias manifestando justamente a minha profunda deceção, pensava que a utopia das pessoas da minha geração tinha renascido com este drama da pandemia e que finalmente se vislumbrava uma transformação. O que está a acontecer neste momento na Ucrânia é terrível e contraria todos essas esperanças. Não sei por quê, mas estou a lembrar-me de uma frase de um filme do Wim Wenders em que uma das personagens, o poeta inventado de nome Homer, a certa altura diz: creio que o mundo pode estar perto do seu fim mas eu continuo a narrar… Talvez os verbos adiem o fim.

por Margara Russotto e Patrícia Martinho Ferreira
Cara a cara | 20 Maio 2022 | cultura, História, Lídia Jorge, Literatura, literatura portuguesa, romance, romancista, sociedade portuguesa