Moçambique é uma fantasia pós-colonial

foto de José Carlos Duartefoto de José Carlos Duarte

Moçambique é uma obra que tem a ousadia de, num registo de comédia e de algum teatro documental, reflectir numa perspectiva crítica o colonialismo português na sua matriz ideológica mas principalmente económica. Escrita e dirigida por Jorge Andrade e com figurinos e cenografia de José Capela com um invulgar elenco é uma obra fundamental do actual reportório de teatro apresentado nas últimas temporadas em Portugal. É-o  por trazer para a cena, podemos dizer para actualidade, temas que desde as independências das ex-colónias africanas têm sido escamoteados, ou sujeitos a narrativas onde permanecem os equívocos a ambiguidade e descrições muito nebulosas da máquina do colonialismo europeu. É-o porque Moçambique partindo de uma declaração de que a peça parte de um relato autobiográfico do encenador acabará por provar que a veracidade dos relatos são-no conforme aos interesses de quem o relata, de quem tem o poder de narrar e impor uma narrativa que pode ser o texto de uma peça de teatro como é este o caso. Há factos e até há documentos mas os mesmos requerem a  sua decifração e da sua montagem, que vão para lá da interpretação, para terem um sentido e uma verosimilhança, acrescido que esta montagem é sempre a montagem de uma época e num contexto. Os historiadores sabem da enorme polémica que desperta de cada vez que se menciona a história oral e os testemunhos orais.Moçambique é um excelente exemplo da complexidade que é o relato de acontecimentos narrados relativamente a um passado recente e, ainda por cima, a várias vozes conforme se trate dos trabalhadores agrícolas, dos governantes, do proprietário, do autor ou dos personagens que representam o autor.

Moçambique é desde o seu início uma obra onde a sedução está presente mas sem uma intenção manipuladora, a sua grande virtude; é-o pelos objectos que nos remetem de imediato para um reconhecível exotismo tropical, pelos bom gosto dos figurinos - certamente inspirados no trabalho do artista nigeriano Yinka Shonibare conhecido pelos jogos ambíguos das suas personagens imperiais vestidas com panos africanos - e, por um início dramatúrgico conforme a uma folhetim melodramático que mantém um registo de comédia em toda a obra. Das múltiplas chaves de entrada em tão eficaz dramaturgia destaco a desconstrução liminar do sistema assistencialista das organizações de ‘ajuda humanitária aos africanos’, a exploração dos refugiados sob o pretexto de um trabalho dignificante, as cenas de contracena e faz-de-conta clássicas à maneira de Molière, a energia contagiante dos ‘números coreográficos’ mimetizando danças de resistência moçambicanas e um trabalho perfeito sobre os equívocos que conduzem a posições racistas quando a identificação de alguém por um colono se sobrepõe à identidade que o ex-colonizado reclama para si. E Moçambique é também uma obra interpretada – quão prazeiroso é poder usar este termo – por um maravilhoso elenco de actores.


Moçambique

Os três elementos mais antigos da mala voadora nasceram em Moçambique. Um é o Jorge Andrade. Apesar de ter vindo para Portugal com 4 anos, em Moçambique ele propõe-se construir uma autobiografia como se tivesse vivido em Moçambique toda a sua vida. E para que a sua história se torne credível, vai ter de impô-la à História do país. Como o teatro documental só tem interesse se contar mentiras, vamos trazer imagens efetivamente documentais para o contexto ficcional do teatro, ficcionando-as de um modo que não visa a verdade. Visa antes, como um romance histórico, inventar uma história cujo contexto advém da História. Jorge Andrade fará parte da História de Moçambique.

+ info: http://bit.ly/2sztGKR

Ficha Técnica

texto e direcção Jorge Andrade . com Bruno Huca, Isabél Zuaa, Jani Zhao, Jorge Andrade, Matamba Joaquim, Tânia Alves, Welket Bungué . cenografiaJosé Capela . figurinos José Capela com execução de Aldina Jesus . vídeoANIMA e Bruno Canas . banda sonora Rui Lima e Sérgio Martins . luz Rui Monteiro . coreografia Bruno Huca . fotografias de cena Bruno Simão e José Carlos Duarte . imagem de divulgação António MV . vídeo de divulgaçãoJorge Jácome e Marta Simões . assistência Francisco Campos Lima . direcção de produção Joana Costa Santos . apoio à produção e comunicação Jonathan da Costa . gestão e programação cultural Vânia Rodrigues . apoio CAAA, Centro Cultural Português – Maputo / Instituto Camões, Fundação Calouste Gulbenkian,Hotel Peninsular, Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Nacional São João. Agradecimentos Agostinho Félix Trindade, Alessandra de Silos Brito, Alexandre Zhao, Amilton Alissone, Dai Jing Zhen, Ekaterina Solomina, Filipe Branquinho, Graça Sousa, Inês Afonso, Luís Santos, Marta Félix, Moldursant, Pia Kramer, Ricardo Areias, Rita Couto, Vanda Marques, Vitor Pinto, Zhao Jia Liang . residência artística Espaço do Tempo . coprodução Teatro Municipal Maria Matos, Teatro Municipal do Porto Rivoli/Campo Alegre, Teatro Viriato . classificação etária M16 . A mala voadora é uma estrutura financiada pelo Governo de Portugal – Ministério da Cultura/Direção-Geral das Artes e associada d’O Espaço do Tempo e da Associação Zé dos Bois.

por António Pinto Ribeiro
Palcos | 21 Agosto 2017 | fantasia, Mala Voadora, moçambique, pos-colonial, teatro