A Festa do Avante apesar de não parecer os conflitos estão lá nos três dias

Realiza-se este fim de semana mais uma edição, a 41ª, da festa do Avante da responsabilidade do jornal oficial do Partido Comunista Português que reclama ser esta “o maior acontecimento cultural do país”. Esta declaração coloca a Festa num lugar suprapartidário, acontecimento antigo e de configuração popular, atributos que são responsáveis pela sua relativa longevidade e sucesso de público atraindo todos os anos milhares de participantes. A reconhecida mobilização militante dos comunistas, uma solidariedade internacional dos artistas e na gestão da Festa configuram-na como uma organização profissional e internacional, atributos pouco comuns na programação artística quando esta começou há quatro décadas. A integração de géneros musicais e de reportórios extra-europeus (que hoje erradamente se designa como músicas do mundo) e que muito deve a Ruben de Carvalho, membro do Comité Central do PCP mas que para aqui importa mais como um dos programadores culturais pioneiros em Portugal, enformaram uma programação musical e artística em leque passível de atrair públicos muito diversos.
in city | 2017 | Nú Barretoin city | 2017 | Nú Barreto
A Festa do Avante, instrumento político que é ainda um rasto do movimento comunista europeu, à semelhança de outras festas de outros Partidos Comunistas, é ainda também um palco de visibilidade importante para os comunistas europeus. Referimo-nos a dois outros exemplos: Festa de L’Humanité, em França, criada em 1930 no contexto da Frente Popular, e que, ao longo de décadas sofreu várias alterações de formato conforme a própria história do Partido Comunista Francês até deixar de ser, em 1999, a Festa do PCF e se transformar numa festa de causas mundiais com uma programação bastante eclética e organizada por associações e partidos que, no espectro partidário, se colocam à esquerda. Por sua vez a Festa de l’Unità organizada, a partir de 1945, pelo Partido Comunista Italiano também sofreu muitas alterações de conteúdo e de organização, e até de nome, mas conservou sempre a particularidade de ser uma festa que se realiza em muitas cidades italianas ao longo de quase um século de existência.

Reconhecendo grandes diferenças no modo como foram evoluindo há contudo aspectos que lhe são comuns, o que nos permite referir estas festas como as dos comunistas europeus. De imediato há nelas uma genealogia que as associa aos calendários festivos ancestrais relacionados com as festas agrícolas religiosas ou pagãs. Não por acaso acontecem no final do verão com variantes invernais – tempo de regeneração - e embora haja sempre um ou vários programadores envolvidos, a programação é assumida como a de um colectivo, tal qual as festas tradicionais sem autor declarado. Longínquo estará o debate iluminista entre Diderot e Rousseau sobre o papel da natureza e da cultura na formação do cidadão, mas também aqui parece ter-se encontrado uma síntese. As festas dos PCs europeus são actividades de educação cultural activista do militante e são tendencialmente realizadas, senão no meio da natureza e de parques, pelo menos ao ar livre segundo o preceito de Rousseau quando afirma: “É ao ar livre, é debaixo do céu que é importante que vos junteis e vos deixeis levar pelo doce sentimento de felicidade (…) plantai no meio duma praça uma estaca encimada por um ramo de flores, juntai aí o povo e tereis uma festa. Fazei melhor ainda, transformai os espectadores em espectáculo, tornai-os eles próprios actores. Fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, a fim de que todos se sintam unidos”1. E, para a versão da Festa do Avante, pode ler-se, num artigo publicado em 2012 no jornal Avante, esta apologia do encontro idílico entre o homem e a natureza no momento da festa da autoria do histórico militante Miguel Urbano Rodrigues que assim descreve a festa que, a partir de 1990, passou a realizar-se numa quinta a sul do Tejo: a “Quinta da Atalaia, uma antiga exploração agrícola, situada à beira da Margem Sul do estuário do Tejo, um recanto verde e tranquilo de serena beleza”.
 
Todavia o epíteto de festa popular reivindicada por todas estas organizações comporta formas de distinção relativamente a festivais importantes de organizações não explicitamente partidárias. Mesmo que exista a abrangência de programação cultural e eclética só as festas dos PCs se reclamam de terem como objectivo o combate à ‘hegemonia cultural’, a chave da teoria do poder segundo António Gramsci, pela qual os Estados destruíam as práticas culturais tradicionais e populares e controlavam os media. Ora a forma de resistência a esta hegemonia está na intervenção dos intelectuais e numa educação cultural de que o partido pode ser protagonista. E é assim que podemos entender os vastos programas de debates, as exposições internacionais, as feiras e os lançamentos dos livros dos autores, que segundo os organizadores, consideram as causas políticas de cada época e as obras de desconstrução da hegemonia cultural.

Nestas formas de distinção há ainda um aspecto particularmente relevante na Festa do Avante dada uma certa continuidade de gestão política e que foi estudada em artigo recente de José Neves2. O autor sintetiza a Festa do Avante como “A festa é, assim, como que uma antecipação de uma idade pós-conflitual, a idade do final da guerra entre os povos e do final da luta entre as classes. É, aliás, enquanto arquétipo da sociedade pós-revolucionária que muitas vezes nos é apresentada por quem a elogia, sejam comunistas ou sejam até seus adversários.“3 O mesmo autor considera que a Festa conseguiu impôr-se como um lugar e um tempo de utopia seja porque a construção depende do trabalho militante gracioso, e, portanto, à margem do processo de exploração capitalista, seja pela variedade de actividades – dos concertos à ginástica e à gastronomia. “Trata-se de uma programação onde cabe tudo sem conflito de género ou de expressões culturais minoritárias, seja porque se transforma num calendário anual de pacificação longe das guerras e com uma participação à escala global ainda que sob a palavra de ordem do internacionalismo revolucionário.”
 
Para criar esta ilusão de um mundo pós-utópico contribui algo que dissimula a guerra, a ausência naqueles três dias e naquele espaço de qualquer tipo de conflito explicito, sequer de contradições: não há lugar ao conflito de gerações, de género, de músicas, de tendas de produtores nacionais e internacionais, etc. Só no discurso de encerramento pelo secretário-geral a vida real volta a ser de combate, contradições e até de guerra. E não pode deixar de haver uma razão para esta situação de um utopismo temporal que é o modo como o trauma está dissimulado e a memória, ou muitas das memórias não são matéria de gestão programática. Consultados os vários programas das festas não deixa de espantar a quantidade de actividades e a sua pluralidade e contudo há dois temas que estão praticamente ausentes. Trata- se do colonialismo e do pós-colonialismo. Sim, é um facto que há declarações solidárias com as narrativas estabilizadas das lutas pelas independências protagonizadas por movimentos ou partidos de inspiração marxista, assim como há homenagens a heróis desses movimentos e a presença de artistas e escritores desses novos países africanos são recorrentes. Mas a análise do colonialismo está ausente e de tal modo que na XII festa, em 1988, “os comunistas comemoram os 600 anos dos Portugueses pelo Mundo” sem qualquer crítica à expansão com uma exposição sobre os ‘Descobrimentos’ precedida de uma outra sobre o Cosmos com a  presença do astronauta soviético Vladimir Solaviev e peças do Sputnik. São inexistentes os debates, actividades que estão na génese dos movimentos independentistas como a negritude ou o panafricanismo. A festa de l’Humanité do PCF enferma da mesma questão para o qual contribui a relação ambígua que o partido teve relativamente à independência da Argélia. No mesmo contexto a questão do trauma da guerra, da descolonização, dos retornados, esteve sempre ausente do que seria o contributo deste partido para a construção de outras narrativas relativas à colonização e à sua  génese no contexto de uma história da Europa Imperial. De igual modo, ou seja, ausente, está o debate e as referências à problemática do pós-colonialismo e aos seus diversos autores mais ou menos de inspiração marxista, à excepção de uma leve abordagem a Amílcar Cabral como herói da luta e muito pouco como teórico fundamental do pan-africanismo e do que viria a ser o pós-colonialismo. E numa abordagem contemporânea à desconstrução da hegemonia cultural seria desejável a intervenção na Festa dos intelectuais à produção das memórias coloniais e da revisitação das mesmas no contexto actual. Mas para um trabalho intelectual e produtor de novos conhecimentos não é possível escamotear um outro colonialismo da responsabilidade do Estado Soviético sobre todas as repúblicas da ex-URSS e dos países colonizados em redor na Europa a Leste do Ocidente. Porque a amnésia sobre este facto histórico pode ser, a curto prazo, devastador para estas ex-colónias (algumas das quais já reocupadas) como bem previne Katerina Brezinova. “A Europa pós-comunista cujos imaginários nacionais ainda estão fortemente marcados pela herança do Romantismo alemão, está a testemunhar novas formas emergentes de Modernidade que podem ou não assemelhar-se realmente à experiência da Europa Ocidental. Em alguns países da região, estão a formar-se contracorrentes locais importantes contra as novas realidades da diferença. Estaremos numa melhor posição para compreender algumas destas tendências conflituosas actuais desde a reacção violenta contra a migração e o multiculturalismo até à ressurgência da intolerância étnica e religiosa…”4. A continuar assim a Festa pode parecer-se a uma utopia pós-revolucionária mas muito pouco credível e ainda menos pertinente para todos os povos do mundo. 

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

  • 1. J.J. Rousseau, «Discours», Œuvres Complètes , Paris : Armand Aubré,1832, p.235.
  • 2. José Neves, «A militância comunista enquanto prática utópica– da resistência antifascista à sociedade pós-disciplinar », Ler História [Online], 69 | 2016, colocado online no dia 11 Março 2017, consultado no dia 22 Março 2018.
  • 3. Ibidem
  • 4. Katerina Brezinova, “Polémica em torno da diversidade? A República Checa pós-comunista face às novas realidades da diferença”. in, António Pinto Ribeiro (Org.), Podemos viver sem o outro? As possibilidades e os limites da interculturalidade. , Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009, pp.123-4.

por António Pinto Ribeiro
Vou lá visitar | 9 Setembro 2018 | Festa do Avante, programação cultural, Ruben de Carvalho