Obras de arte na condição da pós memória (Conclusão)

S/título (técnica mista, madeira, silicone, metal) | 2019 | John K. Cobra (cortesia do artista)S/título (técnica mista, madeira, silicone, metal) | 2019 | John K. Cobra (cortesia do artista)O explorador Henri Morton Stanley, na sua obra In Darkest Africa (1890), relata um encontro com o rei Roumanika que, no seu palácio, o fez visitar uma das salas, que na verdade era um museu, e cuja descrição revela um acervo importante de objectos provenientes de várias regiões da sua nação e organizado de forma muito metódica.

Este é apenas um exemplo, dos muitos que seria possível enunciar, que nos permite assegurar que a identificação e a relação com os objectos de arte foi considerada em África muito antes da sua apresentação em museus europeus e norte-americanos. E se a museografia ocidental, como todas as disciplinas europeias de classificação e ordenação, se reivindica de classificar os objetos de arte, de culto e funcionais, com o estatuto de obras de arte, tal se deveu apenas a uma pretensão de uma hegemonia de uma narrativa universal sobre o que se admitia serem as obras de arte 1.

Em face desta nova narrativa que reconhece uma produção artística e um apreço de comunidades africanas pela mesma, de que modo tradições culturais seculares de países africanos interagem hoje com a formação e produção artística, no caso dos artistas afrodescendentes, que nasceram e fizeram a sua formação em países europeus? Como se combinam os acontecimentos da história de África e dos africanos com linguagens artísticas das “escolas europeias” e, em particular, com as temáticas contemporâneas?

É possível afirmar que estas memórias da cultura artística mais ancestral tenham impacto nesta produção artística, e que as mesmas sejam conciliáveis com as memórias presentes na segunda e terceira gerações de artistas que são herdeiros das memórias dos territórios de origem mediadas pelos pais e avós.

É possível que assim seja como se percebe claramente nas obras de vários artistas como Bouchra Ouizguen, coreógrafa marroquina, autora de Elephant (2019), uma dança que evoca os “passeurs” marroquinos de todas as épocas e de todas as idades; Yto Barrada, fotógrafa e artista plástica franco-marroquina a viver em Nova Iorque, que há muito vem trabalhando sobre o passado paleontológico de Marrocos, revisitado em obras como “Salon Géologique” (2016); ou Faustin Linyekula, que em 2018 apresentou no parque do Africamuseum, em Tervuren (Bélgica) a performance Banataba, onde questionava a expropriação dos objectos e das obras aos seus antepassados, agora expostas nos museus americanos e europeus; ou ainda o artista Aimé Mpane, que assume ser herdeiro dos artistas escultores da sua região originária, o Katanga, no Congo / na República Democrática do Congo.

Uma das mais importantes consequências deste processo é a natureza política das artes. Estas obras e estes artistas combatem não só a amnésia das consequências da escravatura e do colonialismo, mas também a ocultação, pela desvalorização, das narrativas e da produção histórica relativa aos territórios colonizados.

Estas evocações de passados históricos não obstam a que estes artistas, imbuídos de um espírito crítico e de um projecto descolonizador, e muitas vezes reivindicativo da reparação da violência exercida sobre os seus antepassados, tenham uma atitude propositiva e enveredem por um processo de produção que é uma síntese da desconstrução das narrativas coloniais e das linguagens inovadoras da autoria de cada um, onde o contexto já não é exclusivamente  África, mas também a Europa – as obras do franco-argelino Kader Attia sobre a violência traumática da 1ª Guerra Mundial são disso um exemplo. A um outro nível, mas também nesta linha, estão as ficções em registo digital da artista multidisciplinar Sara Sadik, realizadas a partir da apropriação da linguagem recorrente dos clips e das plataformas musicais e visuais do Youtube e outras. Os trabalhos desta artista da terceira geração remetem-nos para as propostas da Afrotopia, conceito que contém em si a possibilidade da construção de uma diáspora africana que recusa a visão pessimista e negativa produzida pelos media sobre o continente africano.

Um outro aspecto muito presente neste horizonte de produção artística, e de particular destaque, encontra-se nas obras dos franco-argelinos Djammel Kokene e Katia Kameli, da fotógrafa portuguesa Pauliana Valente Pimentel ou do camaronense Barthélémy Toguo, que trazem um questionamento sobre a imigração. Por que razão se imigra, para onde se imigra, quais as consequências da imigração, a desconsideração pela qual a grande maioria dos imigrantes passa, a partir desta condição, a condição de “negro” 2, são questões que ganham uma significativa expressão nas obras destes artistas, que não se limitam a uma atitude crítica, mas reivindicam a condição de cidadania com direito à circulação global.

Porque a identidade destes artistas é múltipla, e porque a Europa não é uma entidade homogénea, mas sim um espaço de diversidades identitárias, há que ter cautela face à tentação de classificar estes artistas como um grupo homogéneo 3, em destaque numa Europa social, política e culturalmente una. Esta problemática das identidades leva-nos para os novos conceitos de afropolitano e afropolitanismo. O termo afropolitanismo – criado em 2005 por Taiye Selasi no artigo “Bye-Bye, Babar (Or: What is an Afropolitan?)” 4, dotava o afropolitano de uma identidade e de uma sensibilidade africanas e urbanas, que já nada tinham a ver com o panafricanismo auto-referencial. O termo, disseminado primeiro pelas grandes capitais africanas e depois pelas capitais europeias, acaba por ser reconhecido e utilizado recorrentemente em vários estudos e publicações 5.

Praticamente em simultâneo, o filósofo Achille Mbembe define o afropolitanismo como um conceito operativo que produz uma ruptura com a história tradicional dos Estudos Africanos no que diz respeito à emancipação dos povos 6. Recusando um afrocentrismo e uma insistência na identidade africana, assentes em essencialismos, o autor utiliza o termo para definir as diásporas africanas na Europa e nos Estados Unidos da América, a produção literária, a moda, as artes visuais e o cinema produzidos por estas mesmas diásporas ou em África, em ambientes cosmopolitas que reivindicam um cosmopolitismo transcultural e uma circulação assídua e afirmativa dos africanos e das suas ideias e produções culturais entre África e Europa e vice-versa.

Ora, se os termos em abstracto definem uma situação e um perfil de artista, de que John K. Cobra, um congo-flamengo multidisciplinar é um excelente exemplo, tanto mais que o reivindica como seu perfil, as manifestações afropolitanas só podem acontecer em contextos de liberdade e num processo de descolonização europeia dos países europeus onde este processo se iniciou.

Apesar de – atrevemo-nos a afirmar – um renascimento europeu iniciado com estas diásporas, estar já bem confirmado, através da presença das obras destes artistas na cena artística europeia e norte-americana, com uma expressão e impacto significativos, há neste momento uma conjuntura que pode ser um obstáculo. No âmbito da pandemia, a descolonização, a visibilidade destas produções artísticas da autoria dos “filhos dos imigrantes”, pode vir a ser limitada, absorvida num processo de limitação da circulação das pessoas e obras, ao qual podem não ser alheios os nacionalismos em ascensão – que atingem também a cena artística, os museus e teatros, em movimentos corporativos “contra os estrangeiros”, e cujas consequências abrangem os artistas e obras da pós-memória. E há que não descurar que o perigo de uma nova amnésia sobre uma história recente é um fantasma que espreita.

É neste contexto que a reflexão sobre estas obras que emergiram nas duas últimas décadas, o seu reconhecimento na cena artística contemporânea, bem como uma produção teórica no sentido de criar as narrativas adequadas e a construção de um sólido corpus crítico sobre as obras e o seu contexto histórico, é uma das áreas de trabalho – e tem sido um dos principais objetivos – do projeto MEMOIRS.

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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Ver: António Pinto Ribeiro, Newsletters Memoirs, “Obras de arte na condição da pós-memória (1)”, 9.05.2020 e “Obras de arte na condição da pós-memória: alguns atributos (2)”, 20.07.2020.
  • 2. A propósito desta expressão consulte-se a obra de Achille Mbembe, Critique de la raison nègre, Paris: La Découvert, 2013, onde o conceito é desenvolvido.
  • 3. Para um estudo detalhado sobre este assunto, nomeadamente sobre a diferença das diásporas africanas nos vários países europeus consulte-se a obra de Olivette Otele, African Europeans, an Untold History, C. Hurst & Co, Londres: 2020.
  • 4. Bye-Bye Babar, The LIP Magazine. 3 Março de 2005 Selasi, Taiye. “Bye-Bye Babar.” Callaloo, vol. 36 no. 3, 2013, p. 528-530. Project MUSE, doi:10.1353/cal.2013.0163.
  • 5. A este propósito veja-se o artigo “Esconjura da Memória”, de Paulo de Medeiros, a propósito do livro que trata da relação de várias cidades europeias com as diásporas africanas de Johny Pitts, Afropean: Notes from Black Europe, in Jornal Memoirs- Público, nº2, 2019, p. 16.
  • 6. Cf. “Writing the World from an African Metropolis”, Achille Mbembe e Sarah Nuttall, Public Culture 16.3 (2004) pp. 347-372 e Sarah Balakrishnan, “The Afropolitan Idea: New Perspectives on Cosmopolitanism in African Studies” History Compass 15/2, 2017, pp. 2-11. Consultado a 21.11.2020.

por António Pinto Ribeiro
A ler | 28 Dezembro 2020 | arte, comunidade africana, Memoirs, produção artística