Portugal deve devolver peças de arte às ex-colónias?

Na semana em que abriu o Museu do Tesouro Real…


SIM

A reclamação de obras de arte e de culto, de arquivos, de restos mortais pertencentes originariamente a povos e comunidades de territórios sujeitos ao tráfico negreiro e ao colonialismo pelos impérios europeus tem um longo historial e deve ser associada ao movimento a nível mundial de descolonização e de reparação aos Estados herdeiros ou representantes das nações e povos sujeitos a estes tráficos ilícitos. O processo não é novo. Um dos registos mais antigos é uma carta de um velho cristão, de 78 anos, batizado em Luanda. A carta, datada de 1933, é dirigida ao Padre Lourenço Mambuko solicitando a sua intervenção junto do Museu de Trocadéro para que fosse devolvido a Cabinda um conjunto de objetos levados para este museu. Este processo de reclamações adensou-se ao longo do século XX e foi legitimado a partir de várias convenções internacio­nais, que obrigam à restituição dos objetos trazidos ilegalmente das ex-colónias. Em França, o processo de devolução acelerou-se na sequência do relatório sobre a devolução do património cultural africano. Desde então, os Governos francês, belga, holandês e alemão continua­ram ou iniciaram o processo de devolução das obras segundo protocolos científicos e diplomáticos reconhecidos pelas partes envolvidas. Trata-se da devolução aos seus legítimos proprietários de obras identitárias, simbólicas e culturais inalienáveis.

 AFRICAMUSEUM Tervuren AFRICAMUSEUM Tervuren

Portugal deve seguir o imperativo de justiça universal e o movimento civilizacional global

Os negacionistas que pretendem impedir este movimento global recorrem a falácias: que as obras não foram trazidas pelo valor que eventualmente pudessem ter, mas como lembranças. Não é verdade: a retirada ilegal destas obras fazia parte de estratégia de colonização do espírito e de apropriação material rentável que foi levada a cabo por políticas governamentais executadas por missões militares, missionários e exploradores contratados para tal pelos impérios coloniais. Dizem ainda que não se pode ajuizar com o espírito de hoje ações de outras épocas. Falso: estas apropriações eram constitutivas de um processo de apropriação em massa (500 mil só na Europa, numa estimativa por defeito). Na mesma época em que tal acontecia, algumas vozes já denunciavam estas situações de genocídio cultural total ou parcial. Trata-se de um mal absoluto sem a admissão de qualquer relativismo cultural. Afirmam ainda que não existem no continente africano museus para acolher estas obras expropriadas a serem devolvidas. Falso: só nos países africanos existem mais de 500 museus e temos ainda de admitir que o museu não é o único instrumento para acolher e expor as obras. Em Portugal, com exceção de alguns debates minoritários e do trabalho meritório do ICOM, o Estado e os Governos têm-se furtado a esta discussão e muito pouco tem sido feito, com o argumento, pouco inocente, de que não tem havido reclamação por parte das ex-colónias portuguesas. Em caso de furto, não é a ausência da queixa que invalida o ato de furtar; para além de que me parece que o Estado deva seguir o imperativo de justiça universal e o movimento civilizacional global.

Artigo originalmente publicado no Expresso a 3/6/2022.

Outro texto do autor sobre a restituição das obras de arte. 

por António Pinto Ribeiro
A ler | 7 Junho 2022 | África, devolução, História, justiça, Museus, obras de arte, Reparação, restituição