Soberania intelectual

Map Series | 2019 | Ana Mendes (cortesia da artista)Map Series | 2019 | Ana Mendes (cortesia da artista)

Em Afrotopia, Felwine Sarr afirma que “para ser fecundo, um pensamento do continente (África) tem de transportar consigo a exigência de uma absoluta soberania intelectual” (1). O autor, economista e escritor senegalês, tornou-se recentemente famoso por ter sido, com Bénédicte Savoy e a convite do presidente francês Emmanuel Macron, o autor do Relatório sobre a restituição do património cultural africano, tendo contribuído para isso o seu conhecimento da produção intelectual de autores africanos e da situação dos museus em África. A afirmação é particularmente sedutora no contexto actual, em que a alteração de muitos regimes africanos para a democracia, o crescimento económico em alguns países e uma melhor distribuição de rendimentos, a par de uma produção cultural cada vez mais intensa, e a sua difusão cada vez mais viral, alteram a representação de África. E em consequência de uma comunicação mais eficaz levada a cabo pelos sujeitos africanos mais empenhados num afropolitanismo, a percepção que os europeus tinham sobre as diásporas africanas também está a mudar, em particular junto das gerações formadas mais recentemente, que reconhecem de um modo muito concreto e genuíno a importância, a pertinência e a produção intelectual inovadora de muitos membros destas diásporas.
 
Este fenómeno tem, na sua génese, importantes antecedentes. De imediato recordemos todos os manifestos do movimento da negritude, os textos de Aimé Césaire, de Fantz Fanon, de Amílcar Cabral, de Valentim Mundimbe, e outros pensadores africanos e não só, como Edward Said, que iniciaram um corpus de ensaios que vão da libertação e independência dos povos africanos, até ao pós-colonialismo recente, onde se destacam autores como Souleymane Bachir Diagne, Boulari-Yabara Amsat, Wassyla Tamzali, entre outros.
 
Mas em que se traduz esta soberania intelectual na actualidade, como se forma e que consequências terá? Ela traduz-se num continuado trabalho de descolonização, não só nos termos de crítica ao modelo económico neoliberal que, importado para África, domina todos os tipos de trocas comerciais e de produção à escala global. Traduz-se também na continuada descolonização do espírito, tão cara a Ngugiwa Thiong’o e a Kuast Wiredu, e que surge como reação e oposição à acção dos países ex-colonizadores, que impuseram as suas línguas e narrativas, apagando as línguas nacionais e propagando uma visão “afropessimista” da África pós-colonial.
 
Traduz-se ainda no modo como se recuperam, estudam e actualizam os textos, as tradições orais e a produção cultural do período da conquista europeia e pré-colonial – de forma, aliás, muito semelhante ao que fizeram na América Latina os grupos de “descolonização” – e traduz-se no modo como as diásporas africanas, em especial as que vivem na Europa, incorporam e assumem que o processo pós-colonial não está encerrado e que eles devem ser protagonistas vigilantes deste “inacabado” percurso histórico.
 
Num texto sobre descolonização do conhecimento focado na África do Sul, resultante de uma série de palestras realizadas na universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, Achille Mbembe, interroga-se sobre se “descolonização é o mesmo que africanização”, e responde que “apelos para descolonizar” não são novidade. Todos nós temos em mente os ensaios pós-coloniais africanos nas décadas de 1960 e 1970. Nessa altura, “descolonizar” era o mesmo que “africanizar”. Descolonizar fazia parte de um projeto de construção da nação. (…) E Mbembe evoca o pensador e psiquiatra Frantz Fanon, que foi extremamente crítico do projeto de “africanização”. A sua crítica à “africanização” (Les Damnés de la Terre, capítulo 3) foi inteiramente política. Fanon não confiava na classe média pós-independentista africana, que achava “preguiçosa e com forte ausência de profundidade espiritual”, por ter “assimilado totalmente o pensamento colonialista na sua forma mais corrupta”. Por isso, não acreditava que a “construção da nação” pudesse ser alcançada por aqueles que ele considerava a “classe média nacional” ou a “burguesia (…)”. Para Fanon, a “africanização” era sobretudo um incentivo para o racismo entre africanos de países diferentes, o que era para ele inaceitável. Por isso, Fanon considerava que a “africanização” era uma espécie de racismo do avesso, um auto-racismo. Esta crítica muito concreta da “africanização”, repousava na convicção de que, muitas vezes, e “em especial quando a classe social ‘errada’ está no governo, há um salto do nacionalismo para o chauvinismo e, finalmente, para o racismo”. Fica claro que descolonização não é o mesmo que africanização, afastando-se deste modo o pan-africanismo mais ortodoxo.
 
Descolonização é um processo de desconstrução de conhecimentos, de uma epistemologia maioritariamente europeia que sempre teve uma vocação universalista, existente tanto na Academia como no espaço público, que implica não só os africanos que vivem em África e os que constituem as diásporas, como também os europeus que vivem na Europa ou são imigrantes em países ex-colonizados.
 
A soberania intelectual referida por Felwine Sarr requer questionar não só as narrativas herdadas e as terminologias, como os conceitos. Questionar a economia como um processo cultural, a cooperação como um possível processo neo-colonial e tratar a mobilidade como um direito de cidadania global.
 
A questão da “descolonização conceptual” (2) foi intensamente tratada por filósofos como Kwasi Wiredu (3) (Gana) e Valentin Y. Mudimbe (4) (Congo). Kwasi Wiredu, por exemplo, assenta parte da estratégia desta descolonização na elaboração de listas de conceitos em função de duas categorias: os falsamente universais e os que são passíveis de tradução, embora ambos os conceitos reflictam especificidades culturais tais como realidade, existência, entidade, substância, liberdade, etc…, porque todos eles veiculam e influenciam os nossos modos de pensar. Não se trata, portanto, de um exercício meramente linguístico e provam-no as dificuldades de tradução que os autores africanos mais antigos ou mais recentes encontram, quer na semântica quando escrevem nas línguas mais utilizadas universalmente, quer nas traduções das línguas nacionais.
 
Uma última condição para que se possa falar de soberania intelectual é a da mobilidade ou, mais concretamente, a das mobilidades. Por um lado, apontemos como elemento fundamental a abertura política à possibilidade de circulação entre os países africanos. Por outro lado, a necessidade de uma circulação livre entre países africanos e não africanos, a circulação de exilados para os seus países de origem ou dos seus ascendentes, tanto em África como no interior da Europa. Mas há uma outra mobilidade que muito tem contribuído para a soberania e autonomia dos intelectuais, bem como dos artistas, e que decorre do uso positivo e emancipatório das redes sociais. Tendo como retaguarda histórica as Primaveras Árabes, a circulação de ideias, de textos e de obras através de dispositivos virtuais tem tido um considerável crescimento, traduzindo-se numa relevante disseminação de propostas autonómicas de textos e criações que circulam não só no interior de continentes, mas também entre as diásporas e os países africanos. Isto tem tornado possível, aos autores e artistas a viver na Europa, o contacto com patrimónios ligados às suas raízes, e aos residentes em países africanos o acesso à produção contemporânea das mais recentes gerações de “afropolitans”, para, desta forma, poder ler os ensaios de urbanismo de Nafissatou Dia Diouf, uma África utópica de Abdourahman Waberi, a escrita fina de Léonora Milano, as crónicas de Kamel Daoud e muitos outros textos de autores que assim se tornam intelectuais soberanos e potencialmente universais.

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(1) Felwine Sarr. Afrotopia (2016). Paris: Philippe Rey, 2019, p. 17. Todas as traduções das obras citadas são nossas.
(2) Ver K.  Wiredu, Cultural Universals and ParticularsAn African Perspective, Bloomington. Indiana University Press, 1966. CUP
(3) Ver para este tema, K. Wiredu. Philosophy and African Culture. Cambridge University Press. 1980. (p.35)
K. Wiredu. A Companion to African Philosophy. Malden and Oxford. Blackwell, 2004. P. 15
(4) Ver parar este tema V.Y.Mudimbe. The Invention of Africa. Gnosis. Philosophy and the order of Knowledge, Bloomington, Indiana University Press, 1988
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

por António Pinto Ribeiro
A ler | 22 Fevereiro 2020 | Afrotopia, descolonização, Memoirs