A Exposição Europa Oxalá

Dada (escultura, molde de mãos, em gesso, e cinto velho em couro, dimensões variáveis). Sabrina Belouaar | 2018 © ADAGP, Paris (cortesia de Mohamed Bourouissa)Dada (escultura, molde de mãos, em gesso, e cinto velho em couro, dimensões variáveis). Sabrina Belouaar | 2018 © ADAGP, Paris (cortesia de Mohamed Bourouissa)

Esta não é uma exposição de arte africana. É uma exposição de obras de arte produzidas maioritariamente na Europa por artistas vivendo e criando em cidades europeias, artistas que consideram as memórias familiares, originadas em contextos coloniais ou pós-coloniais africanos, como um capital fundamental da sua produção artística que emerge na Europa no princípio deste século. A exposição Europa Oxalá é também o momento ideal para desconstruir o mito colonial e a melancolia pós-colonial designados como “arte africana”. Atribuída a toda a produção artística que tem origem no continente africano, a expressão tem sido utilizada para a diferenciar de uma forma grosseira de toda a arte incluída nos compêndios e nas narrativas da história universal da arte fundada na matriz ocidental. A arte dita africana era tida como uma arte sem autoria, desligada da diversidade dos seus contextos de produção, fossem eles um país do Norte de África, do Sul ou da costa leste ou oeste, fosse do século XIV ou do século XX. Era tida e apresentada apenas como “tradicional”, associada exclusivamente a ritos, alheada do tempo histórico em que era produzida e, normalmente, ligada a criadores negros sem qualquer relação com a sua contemporaneidade.

As primeiras exposições com obras oriundas de territórios em África apresentadas na Europa e nos EUA1 veiculavam um exotismo que funcionava como apelo para que fossem vistas. Como confirmam centenas de catálogos - documentos que reforçam o mito - a “arte africana” era a expressão da percepção de um continente homogéneo, servia como categoria artística do vocabulário colonial e incluía todas as formas de produção artística realizada por africanos, independentemente do seu lugar de origem, de nacionalidade e de residência.

Exposições mais recentes, como “The Short Century: Independence and Liberation Movements in Africa, 1945-1994” (2002), “Africa Remix” (2005), “The Global Africa Project” (2010), foram produzidas em colaboração entre artistas e instituições africanas, norte-americanas e europeias. Vieram, assim, alterar esta percepção e esta categorização anacrónica das artes produzidas em África, mas só em parte com sucesso. Foi um conjunto de artistas das segundas e terceiras gerações afrodescendentes que, sem renegar histórias de passados africanos, pôs em questão uma história de arte eurocêntrica e desobedeceu à epistemologia que lhe está subjacente, abrindo outros espaços de inscrição artística, outros temas, outras linguagens potencialmente regeneradoras.

São as obras destes artistas que estão presentes nesta exposição. Mostram, na diversidade e multiplicidade das suas abordagens, uma interrogação sobre a Europa onde o velho e o novo se disputam. É tudo isto que está presente agora em Europa Oxalá: no cinema e na fotografia de Katia Kameli, que estabelecem relações complexas entre uma nação - a Argélia –, a sua história e o papel determinante que as imagens têm no processo de construção de uma narrativa nacional e dos seus arquétipos. O passado e a necessidade de uma reconstrução nacional é um tema muito presente em grande parte das obras: no artista Délio Jasse que, nas suas montagens fotográficas, deteta os sinais do colonialismo na Luanda do presente; nas esculturas de Djamel Kokene-Dorléans que têm um impacto direto  no modo de denunciar  a violência colonial e racista expressa através de elementos minimais, mas estão carregados de uma energia contagiante, do mesmo modo que outras esculturas minimais de Carlos Bunga expressam a fragilidade da condição humana.

Associados às artes visuais, à música hip-hop, aos grafittis urbanos e à poesia slammer, estes artistas aqui presentes, mas muitos outros desta mesma “cena”, produzem novos géneros artísticos, apresentam novos heróis e outras formas de se apropriarem do espaço público, como acontece na pintura de retratos de Francisco Vidal, nas fotografias de Mohamed Bourouissa & Anoushkashoot, que se interessaram por retratar os jovens oriundos da periferia de Paris passeando-se no bairro dos Halles vestidos de Lacoste. Recorrendo novamente ao retrato, a fotógrafa Pauliana Valente Pimentel oferece-nos os retratos de artistas afrodescendentes a viverem em Lisboa durante a pandemia que testemunham e refletem sobre a complexidade das suas identidades. As memórias são um tema permanente nas obras desta exposição, abordado e questionado das mais diversas formas. Elas constituem um vasto horizonte propício a um necessário debate público, seja nas figuras ancestrais de artistas como Pedro A.H. Paixão, nas fantasmagorias e personagens em desequilíbrio nas pinturas de Nú Barreto, no uso de todos os recursos de linguagens a que recorre Sammy Baloji para lutar contra a amnésia produzida pela nostalgia colonial, nomeadamente através do uso quotidiano e banalizado na Europa de objectos  provindos do Congo colonizado, ou, ainda, a abordagem de Sandra Mujinga sobre os efeitos nefastos que o capitalismo produz na fauna africana, contrapropondo novas relações entre a humanidade e a natureza.

A apropriação, sendo um método de composição usado com intensidade nas artes contemporâneas, é também uma manifestação de expressão política e de desconstrução de narrativas e de imaginários legados pelos compêndios de história, pelas imagens não questionadas que nos são disponibilizadas em papel ou nas redes sociais. No âmbito destas apropriações, destacam-se as obras de Aimé Ntakiyica sobre críticas das geografias eurocêntricas, os mapas rebeldes de Malala Andrialavidrazana contra a propaganda racista, a criação de obras híbridas e de ficções neo-futuristas produzindo novos imaginários de um pensamento em forma de arquipélago de Sara Sadik, bem como a série de desenhos “Falling Thrones”, de Márcio Carvalho, em que, recorrendo à analogia dos jogos olímpicos, sujeitos herdeiros de histórias de opressão derrubam a estatuária pública dos protagonistas do colonialismo. De modo mais enigmático, os trabalhos sobre territórios e identidades de Fayçal Baghriche provocam uma estranheza que estimula à revisitação do património colonial legado. Mas as memórias estão também presentes na história das deslocações e das migrações do Sul para o Norte e nas suas consequências para quem se atreveu a entrar na Europa do pós-Guerra, de que é um extraordinário exemplo a obra “Dada”, um cinto em cabedal que se enrola à volta dos punhos fechados do pai de Josèfa Ntjam que trabalhou como operário numa fábrica de cintos: é o corpo do imigrante africano flagelado pelo sistema capitalista e colonizador.

Europa Oxalá é uma exposição cujas obras resultam de dois tipos de negociação cultural conforme os interesses artísticos dos seus produtores, os artistas. Por um lado, é notória a presença de uma formação artística de matriz europeia realizada por estes artistas, que a colocam ao serviço dos seus objectivos descolonizadores, anti-coloniais, anti-racistas, eco-políticos combinando tudo isto com os usos das memórias transferidas e, por outro lado, recorrem a materiais e linguagens artísticas de origens africanas. Ao mesmo tempo, nada os impede de recorrer a tecnologias e formas europeias de difusão das suas práticas artísticas. Isto é evidente nos materiais de trabalho utilizados por John K. Cobra nas instalações e esculturas feitas a partir da borracha, fios das cabeleiras postiças, couro, latão – recursos naturais oriundos da região do Congo, e no cinema que também realiza é a condição de mestiço que coloca como desafio para interrogar os dogmas da mestiçagem colonial. Por sua vez o artista Aimé Mpane recorre à escultura em madeira com enxó – técnica congolesa – e à performance, um género de forte implementação nas práticas efémeras das artes de forte pendor intervencionista para expor a decepção do humanismo como ideologia universal.
Quando se instalar o debate público que esta exposição decerto produzirá sobre temas como a descolonização, a devolução de obras aos territórios ex-colonizados ou as narrativas neo-coloniais da expansão, surgirá de imediato a ideia de que estamos a desconstruir, a desfazer, a desmoronar algo relativamente difuso, mas que, em todo o caso, é a Europa e o seu património. É como se nesse momento se instalasse um ambiente de desfalecimento irreversível. Ora isto acontece porque a Europa e o Ocidente do Norte propagaram a ideia de serem vencedores inquestionáveis e perenes. E, não sendo novo este tipo de debate, poucas vezes ele tinha sido suscitado a partir do seu interior, neste caso destes artistas afro-europeus. Regra geral, o questionamento era protagonizado por sujeitos externos, nomeadamente os independentistas ou os que exaltavam a negritude e, mais recentemente, os autores das teorias pós-coloniais, a partir de África.

Mas só o narcisismo colectivo e nostálgico dos impérios coloniais e a incapacidade de partilha do poder simbólico e do domínio dos mecanismos de extractivismo e de exploração de todos os recursos humanos e naturais justifica este medo de perder, esta incapacidade de reconhecer que a vitória permanente destes impérios coloniais seria uma ilusão. Afinal, pode olhar-se para esta Europa e este Ocidente como lugares numa época de construção para a qual estes novos actores, estes artistas, são determinantes, nesta Europa a confrontar-se diariamente consigo própria. A exposição Europa Oxalá é, creio, um relevante contributo actual para essa construção.

A exposição Europa Oxalá é inaugurada no dia 19 de Outubro no MUCEM, em Marselha, onde ficará até 16 de Janeiro de 2022. De seguida, será inaugurada, a 3 de Março de 2022, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, onde poderá ser visitada até 30 de Maio, e, depois, viajará para o Museu Real da África Central/AfricaMuseum, em Tervuren, na Bélgica, onde estará presente de 6 de Outubro a 5 de Março de 2023.

António Pinto Ribeiro é o curador principal da exposição Europa Oxalá juntamente com Katia Kameli e Aimé Mpane.

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.  

  • 1. As primeiras exposições recenseadas são do final do século XIX; a maioria dos catálogos não está datada, mas, desde o final desse século, produções originárias de países africanos começaram a ser mostradas sob a designação abrangente de mostras de Arte Africana. Dois exemplos determinantes: “Art of Africa: Traditional Arts of the African Negro”, Detroit, s.d. (mas anterior a 1898); provavelmente, a primeira exposição num museu de obras de arte originárias de África, que viria a tornar-se uma marca histórica, foi a exposição do acervo do Musée d’Ethnographie du Trocadero de Paris, inaugurado em 1878, onde Picasso viu as máscaras africanas que o inspiraram para as suas Demoiselles d’Avignon.

por António Pinto Ribeiro
A ler | 18 Outubro 2021 | África, arte africana, Europa, europa oxalá, exposição