O teatro em Estado de Sítio

As peças Retornos, exílios e alguns que ficaram e Filhos do Retorno do Teatro do Vestido, as obras mais recentes da companhia dirigida por Joana Craveiro, são uma oportunidade para reflectir sobre o teatro contemporâneo que em Portugal aborda as memórias da ditadura, da guerra colonial e os efeitos do ex-império português e para, simultaneamente, fazer uma comparação necessária com o teatro que se faz em alguns países da América Latina, que têm em comum o terem sofrido ditaduras militares entre os anos 60 e os anos 80 do século passado e uma colonização ideológica com acentuada orientação económica e repressiva a que não foi alheio o papel dos EUA em consequência da Guerra Fria.

 
A abordagem à questão colonial em Portugal por parte dos artistas é relativamente recente, embora haja deslocamentos temporais: o cinema começou a fazê-lo ainda nos anos 90 do século passado, as artes visuais já no início deste século e a primeira peça de teatro a abordar a questão, tendo como tema fulcral o racismo foi Hotel Orpheu, criada a partir de um texto de Gabriel Ghadamosi de 1993, e apresentada em 1997 no Centro Cultural de Belém pela Associação Cultural dos Novos Artistas Africanos, com direcção e interpretação do actor luso-africano Miguel Hurst e do actor Manuel Wiborg (dos Artistas Unidos). Em 2000, a Associação Regresso das Caravelas, a primeira companhia de teatro a reivindicar a condição de companhia africana, e que se extinguiu logo após este espectáculo, apresentou na Culturgest a peça Museu do Pau Preto com direcção de Miguel Hurst e texto de António Tomás. Há ainda que referir como pioneiro da reflexão sobre a condição do negro, mas não só, o trabalho do encenador angolano Rogério de Carvalho. Este encenador tem sido, aliás, uma presença determinante nas criações da mais recente companhia de teatro fundada por afrodescendentes como é o Teatro Griot. A esta companhia e ao reportório que tem produzido deve-se uma problematização original e pioneira da identidade e das dinâmicas inter-identitárias, entre o africano e o europeu e do possível território de intersecção entre ambos. São exemplares deste manifesto as obras: Tempestade, composição dramática a partir de Shakespeare Os Negros, de Jean Genet.
Da primeira fase de abordagens muito genéricas ao colonialismo e à condição de negro a viver na Europa onde as narrativas memorais eram esparsas, passa-se, nos anos mais recentes, a um trabalho em que a pesquisa sobre as memórias coloniais, os mecanismos de repressão da ditadura portuguesa, a desconstrução da propaganda colonial e as consequências negativas da descolonização que mais afectaram os retornados e refugiados são matéria de trabalho dramatúrgico. A trilogia do Hotel Europa, companhia criada por André Amálio e Tereza Havlickova – Portugal não é um país pequeno, Passa-porte e Libertação - é um bom exemplo desta abordagem, mesmo que nem sempre a dramaturgia seja eficaz e a passagem da representação à não representação neste tipo de teatro documental exija um maior investimento performático. Por sua vez, Jorge Andrade e a sua companhia a Mala Voadora, depois de em 2006 terem apresentado Philatelie, uma peça de teatro sobre o colonialismo europeu, apresentada através de uma engenhosa e convincente dramaturgia que mostrava como a expansão colonial se exprimia em múltiplas emissões de selos, estrearam, em 2017, a peça Moçambique. Trata-se de uma fantasia pós-colonial que tem a ousadia de, num registo de comédia, reflectir numa perspectiva crítica o colonialismo português na sua matriz ideológica e o neo-colonialismo internacional. Partindo da declaração de que a peça se baseia num relato autobiográfico do encenador, Moçambique acabará por provar que a veracidade dos relatos é-o conforme os interesses de quem o relata, de quem tem o poder de contar e de impor uma narrativa que urge desconstruir.

Filhos do Retorno do Teatro do Vestido é a partir de agora uma obra de referência para todo o teatro que se faça em Portugal e que invoque a questão colonial, mas não só. Ela nomeia os retornados, aborda a identidade, melhor, as múltiplas identidades, quer pessoais, quer de Portugal e da Europa, as memórias e o modo como são produzidas e transmitidas. Filhos do Retorno é uma obra que se pode classificar como a primeira peça do teatro em Portugal que se insere na pós-memória, a saber, e dito de um modo muito simples, assume “o dever da memória” e o contributo das segundas e terceiras gerações pós-coloniais nas representações do mundo de hoje. Um dos aspectos determinantes para esta qualificação advém das contradições explícitas num vaivém narrativo, a par de uma mescla de emoções contraditórias como a melancolia colonial combinada com reconhecimento do direito à independência dos povos das ex-colónias e a estranheza do regresso, do sentimento de deslocação. Estamos em 2018 e não deixa de ser desconcertante que esta obra só apareça agora. Haverá para tal muitas justificações mas a incapacidade de lidar com a história colonial - que deveria desde há muito ter sido investigada pelo seu avesso - constituiu um obstáculo epistemológico na academia e nos meios artísticos e culturais embalados “para entrar para a Europa”, o que teve como consequência esquecer a África colonizada, o mais recalcado dos temas colectivos de Portugal.

Que se passou noutros países sujeitos a ditaduras ferozes como a Argentina, o Brasil, o Chile, o Uruguai? A “transição” é o termo que na América Latina se utiliza para designar este período que corresponde à passagem das ditaduras para os regimes democráticos. Coincide com o início da década de 90 do século passado e caracteriza-se pela consolidação das instituições democráticas, a priorização da justiça social através de programas económicos mais distributivos, a alteração do quotidiano com a libertação da palavra, o respeito pela vida privada e o fim da censura. Mas esta transição teve aspectos titubeantes decorrentes da presença ainda dos militares em instâncias do poder, a dificuldade em fazer justiça face às atrocidades cometidas pelas ditaduras e a instauração de uma economia globalizada. Embora de modos diferentes, conforme os países e as suas estruturas administrativas, a institucionalização de políticas culturais passou a fazer parte dos programas e orçamentos governamentais, revelando, contudo, um reduzido investimento dos estados em políticas culturais públicas, obrigando os actores a encontrarem soluções sempre pontuais e a viverem em situação de precaridade. No caso de Buenos Aires, onde se estreiam centenas de peças por temporada, é frequente um actor representar em três peças no mesmo período de tempo, de modo a poder sobreviver economicamente. Por outro lado, no Rio de Janeiro, por efeito da actividade predadora da Globo, o número de peças de teatro é diminuto e, na maioria dos casos, são peças de entretimento primário, nas quais o político ou a memória da ditadura são temas raramente abordados. Já em Santiago do Chile, assim como em Buenos Aires, a actividade teatral é uma prática popular, a diversidade de estilos e géneros é uma constante e o chamado teatro político, de grande popularidade, tem funcionado para o exterior como uma marca de internacionalização e para o interior como uma expressão da catarse colectiva, a par de motivo de orgulho, dada a excelência, a inovação, a qualidade dos actores, dramaturgos e encenadores. E qual a matéria essencial deste género de teatro? A História das últimas décadas, história em constituição, para a qual as memórias dos protagonistas, das famílias e dos herdeiros são a matéria nuclear da dramaturgia.
Arquivo Vivo, Teatro do Vestido| 2018 | foto de Nuno Simão GonçalvesArquivo Vivo, Teatro do Vestido| 2018 | foto de Nuno Simão Gonçalves
Tentando uma caracterização, ainda que muito simplificada e epocal, de um modo geral estas peças de teatro são obras cuja forma é a de um teatro contemporâneo muito assente no texto, na interpretação e na conjunção dos materiais utlizados. Grande parte dos dramaturgos são também encenadores, alguns também actores, a redacção dos textos acompanha muitas vezes a construção da peça e a edição do texto não constitui uma prioridade para os dramaturgos (quando tal acontece faz-se, regra geral, depois da obra ter sido representada). A formação dos actores é feita muitas vezes junto das companhias que têm um papel importante na diversidade de estilos e temas de representação sendo também uma forma de receita. Os arquivos, em especial os familiares, e os testemunhos sobre factos reais – tratados maioritariamente através do teatro documental sofisticado em termos de linguagem são fontes importantes para a escrita. Em Mi vida después e El año en que nací, peças da argentina Lola Arias, jovens nascidos durante a ditadura reconstroem a juventude dos seus pais, a partir de fotos, cartas, gravações, roupas usadas, histórias e memórias apagadas. «Como era o meu país quando eu nasci? Como eram os meus pais nessa época? Quantas versões existem sobre o que aconteceu quando eu era jovem, pois eu não me lembro?» Minefield/Campo minado da mesma Lola Arias é, por sua vez, o encontro real de seis veteranos ingleses e argentinos da guerra das Malvinas/Falklands que tendo sido inimigos, partilham as memórias dessa guerra. O chileno Guillermo Calderón é um dos mais prolixos autores e encenadores do teatro da memória dos lutadores contra a ditadura com peças como EscuelaMateluna centradas em torno da vida e das acções dos guerrilheiros anti-ditadura e às memórias dos seus filhos ou às dos filhos dos agentes da polícia política como o díptico Villa+discurso. Nestas duas últimas peças, o espaço representado é Villa Grimaldi, conhecida na Ditadura por ‘Londres 38’, uma casa tenebrosamente associada ao regime de Pinochet. A primeira peça apresentada – Discurso – é uma ficção da despedida da Presidente Michelle Bachelet quando deixou o Palácio presidencial. Começa «Hoje não vos vou falar com palavras dóceis e esperadas…» E segue-se um manifesto do exercício do poder do ponto de vista de alguém que se assume como mulher, pediatra, optimista e socialista. É, contudo, a segunda peça que justifica que a primeira a anteceda. A acção decorre na mesma casa e com as mesmas actrizes e o tema é aparentemente simples: daquele lugar que tem esse passado de tortura e de morte, Calderón constrói uma das mais fortes, sólidas, profundas dramaturgias sobre o lugar das artes na memória, a validade da arte contemporânea, o debate democrático, os conflitos ideológicos, o papel da museografia e a falibilidade das memórias.

São recorrentes neste teatro figuras determinantes das ditaduras, o desaparecido, a mãe do desaparecido ou do assassinado, o torturador e o filho, o guerrilheiro, como em El Desaparecido, de Rodrigo Pérez e em FIN, de Daniel Marabolí e Trinidad Piriz, uma espécie de folhetim radiofónico em que dois detectives investigam um caso judicial chileno ocorrido em 1985, ouvindo várias testemunhas, consultando arquivos, em particular gravações, até deslindarem o motivo político do crime.
 
O tratamento através da comédia de aspectos ou figuras da ditadura constitui uma estratégia de tentativa de superação do trauma. Um dos melhores exemplos é a peça Velorio Chileno de Cristian Plana, uma obra onde se ridicularizam os grupos nostálgicos do governo de Pinochet.

Não por acaso, o tema das famílias disfuncionais como retrato de sociedades marcadas pela violência da ditadura no seio das famílias e das comunidades é muito frequente, em particular no teatro argentino: o encenador argentino Claudio Tolcachir, associado ao Timbre4, é mestre neste tipo de obras; Alemania, de Nacho Ciatti, conta o regresso de um pai vinte anos depois a casa, à qual obviamente já não pertence por mais esforços que o faça; Gladys, da actriz, dramaturga e realizadora chilena, Elisa Zulueta, retrata o impacto que a revelação de segredos familiares de ações reprováveis cometidas durante a ditadura tem no presente, enquanto cataclismo familiar. Um dos aspectos marcantes deste teatro nascido na época da “transição” é a quantidade de novos dramaturgos e novas peças, assim como muitas vezes a revisitação de obras escritas, mas interditas, durante a ditadura. Tal é o caso de Hechos consumados, encenação de Alfredo de Castro de um texto de Juan Radrigán de 1980, uma visão beckettiana da ditadura, bem como de uma leitura muito política de clássicos, numa perspectiva comparatista de épocas e de situações, como é exemplar El tiempo todo entero a partir de The Glass Menagerie de Tenessee Williams.
 
No Brasil, as condições da produção teatral mantêm-se muito aquém do que seria necessário para criar condições favoráveis à criação e a memória da ditadura é um tema que sofre múltiplos constrangimentos, como se viu na dificuldade de julgar os autores dos crimes desse tempo. Dois exemplos merecem, contudo, ser referidos: BaitMan, pela Companhia dos Actores, uma obra escrita e encenada por Gerald Thomas, com Marcelo Olinto como intérprete, que trata a relação das memórias do opressor e do oprimido, e Felipe Hirsch que, baseando-se num texto de Alejandro Zambra, cria Democracia, onde se pergunta como é possível fazer teatro num país que continua marcado pela memória da ditadura nos aspectos mais vulgares do quotidiano.

Há, contudo, uma outra realidade histórica e social que é um enigma para os europeus, uma espécie de terceiro termo. Trata-se do índio, figura com a qual os europeus não sabem lidar de nenhum modo, seja ele conceptual, seja enquanto modo de representação. Acontece que nas últimas duas décadas, a partir das imagens e das narrativas que sobre ela se tecem, antropólogos, artistas e cientistas sociais, bem como o próprio índio, têm trabalhado, criando novas narrativas ao avesso das eurocêntricas e actualizando memórias da sua subjugação e extermínio a partir da conquista das Américas. Esta figura do índio habitante pré-colonial tem sido tema no teatro e na dança e tem criado perplexidades mesmo entre os sul-americanos habituados a uma história oficial de supremacia branca, apesar de ter começado a ser desestabilizada pelas narrativas dos afrodescendentes. Os índios, esses, ainda são um mistério, mas começam a ser tratados em diversas obras. Em La reunión, peça da chilena Trinidad González, num suposto diálogo, a rainha Isabel, a Católica, e Cristóvão Colombo discutem sobre os limites à subjugação a que podem estar sujeitos os índios. A coreógrafa uruguaia Tamara Cubas, em Puto Gallo Conquistador, resgata a presença dos índios no território do Uruguai entendendo-os como os primeiros no direito ao território e aos seus ritos e a coreógrafa brasileira Lia Rodrigues, em Para que o céu não caia, toma do xamã Yanomami Davi Kopenawa o relato do fim do mundo que vai desabar sobre todos e não apenas sobre os povos das florestas, são exemplos da prevalência que as múltiplas memórias têm na criação contemporânea no século XXI num processo de emparceiramento com a história e de germinação de futuro. Este teatro, para existir, obrigou à criação de novos mecanismos de produção, de entre os quais se deve salientar a estratégia colaborativa entre os actores e encenadores, e os espectadores menos habituados a esta cena teatral surpreender-se-ão com o despojamento generalizado dos cenários e com a proximidade que o público tem da cena. Num caso e noutro são marcas deste teatro contemporâneo para o qual a cenografia é ainda uma herança de ruínas e despojos e a intimidade com o público implica uma aproximação deste aos temas representados. Neste teatro político, o assunto e a memória são pertença e responsabilidade de todos.

 

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº 648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

por António Pinto Ribeiro
Palcos | 25 Julho 2018 | Filhos do Retorno, pós memoria, Teatro do Vestido