Diário de um etnólogo guineense na Europa (3)

13 de junho – os símbolos da tugalidade

Não tenho feito registos nos últimos tempos, mas não foi por ter perdido interesse em estudar e entender os tugas, foi, sim, por falta de tempo. Não é fácil estudar os tugas ou estudar qualquer coisa que seja quando temos de levantar às seis da manhã para ir bumbar nas obras e voltar para a casa com os ossos todos moídos. 

Na verdade, mesmo nas obras aprendo com os tugas, sei que eles gostam de ser chefes e de mandar em pessoas e, quando a pessoa não sabe falar bem português, uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, eles não lhe dão tempo mesmo, eles dizem que fala pretuguês. Espera, mas isso é quando és preto, porque os ucranianos simplesmente não sabem falar português bem, os brasileiros falam brasileiro, só os tugas falam português. Alguns deles, preocupados com o meu parco desenvolvimento linguístico, disseram-me assim: “Um dia hádes falar bem o português. Mas, caralho, tu estivestes a trabalhar treuze meses atrás com agente apenas e ainda não cabeu na tua cabeça aprender a falar bem.” Claro que coube, mas como diz o meu amigo brasuca: “O portugueis edifício, mermão”.

O tuga tem muito orgulho do português, tanto orgulho que muitas vezes o mistura com o inglês ou o americano… uadeváaaaaa… mas tem orgulho da tugalidade, tanto orgulho que até tem um dia para a liberdade tuga, um dia para a língua tuga, outro dia para a raça tuga e ainda outro dia para a república tuga. Quando descobri isso só pude pensar: “Fogo!, tantos dias! Que complexo estão a tentar esconder com essas tantas lembranças da tugalidade?” Ah, quase que me esquecia do dia para a Virgem Maria Tuga e do dia para o Santo António. A propósito, o que é isso do Santo António estar sempre rodeado de meninos ou de colocar o menino no colo? Isso é alguma espécie de erotismo doentio para os padres? Oh, já estou de novo a divagar.

Os tugas são até gajos fixes, muito fixes mesmo. Estão sempre preocupados comigo e com como vão as coisas no meu país e dizem-me: “Epá, estais a ver, desde que saímos do teu país, vocês só andaram a fazer merda. Mas a culpa é nossa, não sabiemos vos dar uma boa independência”.  Ahahahah, eles não sabem que tínhamos lutado por ela e a conquistamos.

O tio Paulo Bano Badjanca já me tinha falado que os tugas acham que só eles são grandes e sabem fazer as coisas e que ninguém mais sabe nada. Disse que os tugas quando fazem qualquer coisa, metem lá um símbolo. O tio Paulo contou-me que aquela estátua enorme da Maria da Fonte em Bissau foi na verdade construída por guineenses, que nem foram bem pagos ou sequer foram pagos. Mas quando acabaram a estátua, os tugas pegaram nela e disseram que foram eles que a fizeram e chamaram-na “Esforço da Raça”. Porém, não era o esforço da raça guineense, não, mas esforço da raça tuga, como se tivessem sido eles que derramaram ali suor e sangue. 

O tio Paulo Bano disse que os tugas têm orgulho e vaidade nesses símbolos de poder, de violência e de opressão, e que não toleram quem não os respeite. Os tugas chegaram à Guiné, destruíram todos os símbolos das pessoas, dizendo que eram maus símbolos, e colocaram os símbolos deles. Contou-me, por exemplo, que os tugas obrigavam toda a gente na Guiné a aprender uma cantiga, para  mostrar a sua importância e grandeza, até o próprio mar era nada perante um tuga. O tio Paulo sabia a cantiga de cor e dizia assim:

“Herói do nada, pobre povo,

são, lazarento e imoral.

Caramba!, caramba!,

sobra a guerra, sobra o mal.

Caramba!, caramba!,

Há carrapata no ar,

coçar os colhões,

murchar, murchar!”

 

 

Mas o tuga não vê qualquer sinal de violência nesta cantiga, para ele é simplesmente uma cantiga sagrada e que não deve ser conspurcada, pois o tuga é aquele que dá “novos mundos ao mundo”, como se o velho mundo do mundo fosse uma coisa má.

O tuga adora símbolos, mas só os seus, os dos outros são afrontas, são para serem substituídos pois não têm valor e não refletem a importância de quem os tem (se não forem americanos, é claro. – E falando em tugas americanos, eles mataram há uns dias um gajo chamado Jorge Freud, e parece que os tugas de cá não gostaram nada, mas vou falar disso depois). Contudo… como estava a dizer antes, o tuga adora símbolos, porque esses mostram a sua grandeza, por isso os meus colegas do trabalho disseram-me: “Já comestes pastel de Belém, caralho? Epá, não podes dizer que vivestes enquanto não comeres um pastel de Belém, representa Portugal. A receita foi dada aos três pastorinhos pela Virgem Maria em pessoa, é o mesmo pastel que ela fazia para o menino Jesus em Belém.” 

Santo António do menino Jesus me acuda!, o tio Paulo Bano não me tinha que até Deus adora os tugas. Será que é por isso que os pastéis de Belém se fazem perto de um mosteiro?

por Marinho de Pina
Cidade | 14 Junho 2020 | branquitude, diário, etnografia, Portugal