Deus e o Diabo na serra

1. Sidney falou-me do Apocalipse. Voltávamos de São José do Vale do Rio Preto e era de noite. Já tínhamos deixado Vinicius de Moraes em casa.
A realidade está sempre um passo à nossa frente.Nos últimos anos em que Tom Jobim foi para São José do Vale do Rio Preto, o gerente do banco local falou-lhe de um menino chamado Vinicius de Moraes que morava ali perto, em Areal. Jobim quis conhecê-lo mas nunca aconteceu.Agora o menino tem 32 anos. Apareceu-me com Sidney ao volante para subirmos o Rio Preto, mas não chegámos ao fundo do poço nem ao fim do caminho. “Ainda não tem passagem para o sítio do Tom Jobim”, disse a mãe daquele rapaz que salvou aquela rapariga do cãozinho puxando-a por uma corda.Como não acreditar em Deus?E como acreditar em Deus?Um pouco antes dessa mãe, um pouco antes da cidade de São José, havia um fusca ao lado de um sofá, os dois na lama, diante de uma Assembleia de Deus.Deus não coube no enquadramento, ou eu não soube enquadrar.Sou apenas europeia.


2. Dizem-me que existem, e sei que existe até uma associação, mas até agora ainda não encontrei um brasileiro ateu.Como não dirijo, ando de ónibus, e os motoristas dão graças a Deus antes das viagens, e as pessoas respondem em coro. Nos terminais, há homens de músculo a dizer “Sorria, Jesus te ama.” Leio na camisa deles. Todos os meus amigos brasileiros acreditam em Cristo, Umbanda, Candomblé ou que tudo isso será uma coisa só. Entre voltar de Nova Friburgo e partir para São José do Vale do Rio Preto, fui ao Circo Voador ouvir Jorge Mautner e ele falou de Hannah Arendt, Auguste Comte, AfroReggae, Gilberto Gil, Jards Macalé, Caetano Veloso, a catástrofe na Região Serrana e Deus.Tudo era de facto uma coisa só.Dor dá flor. Diz que deu, diz que dá, diz que Deus dará, não vou duvidar.Nietzsche desviado pelo Brasil dá música.
3. Em Nova Friburgo dormi no convento que há 117 anos é das doroteias e antes era um hotel para males de peito, que não os de amor. A família imperial também lá dormiu, contou-me a superiora. Cheguei de noite, quando muita gente já dormia. Além de mim havia dezenas de abrigados, incluindo o bispo e 14 irmãs de clausura que tinham saído da sua casa junto ao morro depois da estrada rachar.No dormitório das mulheres, passei parte da noite a sussurrar à janela com a irmã Ana Paula. Nunca vi o cabelo dela, porque estas irmãs de clausura usam um pano branco a cingir o rosto, até para dormir, pelo menos perante estranhas.Mas éramos estranhas, eu e ela?Ana Paula, 28 anos, olhava o céu, incapaz de dormir. Eu pisara lama que ainda cobria corpos. A cidade estava deserta, desolada. E em volta os bairros, como matéria bíblica.Perguntei a Ana Paula por Deus ela respondeu-me com os homens: a catástrofe era um erro da construção humana. Depois Deus ajuda-nos a ver a dor do outro. Faz-nos dar.

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23.01.2011 | por martalanca | Brasil, Deus

Brasil 84

o filme “BRASIL’84” feito por PHILL NIBLOCK durante a sua estadia pela Bahia naquele tempo passou sabado à noite na Zé Dos Bois em Lisboa.

17.01.2011 | por martalanca | Brasil

Respirar é possível, por Boaventura de Sousa Santos

FOLHA DE S. PAULO - 02-11-10


Para governos desalinhados do  continente e para as classes sociais que os levaram ao poder, as eleições no Brasil foram um sinal de esperança


As eleições no Brasil tiveram uma importância internacional inusitada. As razões diferem consoante a perspectiva geopolítica que se adote. Vistas da Europa, as eleições tiveram significado especial para os partidos de esquerda. 

A Europa vive uma grave crise, que ameaça liquidar o núcleo duro da sua identidade: o modelo social europeu e a social-democracia. Apesar de estarmos diante de realidades sociológicas distintas, o Brasil ergueu nos últimos oito anos a bandeira da social-democracia e reduziu significativamente a pobreza. Fê-lo reivindicando a especificidade do seu modelo, mas fundando-o na mesma ideia básica de combinar aumentos de produtividade econômica com aumentos de proteção social. 

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05.11.2010 | por martalanca | Brasil, crise, eleições, Europa

Zezé Motta, grande actriz brasileira, em A Divina Saudade

Zezé Motta em Temporada Popular no SESC Tijuca - 06 e 07/10 - 20h

06.10.2010 | por martalanca | Brasil, Zezé Motta

Paulo Moura (1932–2010)

Uma forte rajada sobre a cidade do Rio de Janeiro anunciava à noite o desfecho de uma lenta agonia…
No sábado, dia 10 de julho, Paulo Moura ainda conseguiu reunir forças para tocar uma última música – “Doce de Côco”, de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho – com seu parceiro de longa data Wagner Tiso, ao lado de sua mulher Halina, o filho Domingos, o sobrinho Gabriel, amigos e admiradores, e alguns pacientes da Clínica São Vicente, maravilhados com aquela inusitada e comovente celebração musical, organizada pelos músicos Cliff Korman e Humberto Araújo.
Uma réstia de sol fazia da folhagem das jaqueiras um cenário cintilante para a varanda do hospital.
O maestro, sereno e sorridente, vestia uma camisa azul e cobria as pernas inchadas e inertes com um manto púpura.
Lembrei-me da última estrofe de um poema que lhe dediquei alguns anos atrás, homenagem diminuta e insuficiente frente à imensa alegria que sua música me proporcionara e ao doce convívio que tive o privilégio de gozar:

    mistura e manda
    o maestro
    pra lá
    das bandas
    do rio
    preto:
    aéreo conduz
    e sopra
    por onde zoar
    o pássaro azul
    púrpura

Ele se foi na calada da noite, sua memória, no entanto, não há de se calar jamais em nossos corações e ouvidos. Paulo Moura não passou, não passará: virou pássaro alvissareiro… para todos e para sempre.

André Vallias
Rio, 13 de julho de 2010

 

 

Site do artista

16.07.2010 | por martalanca | Brasil, paulo moura

Simbolein, da Cia Enki de Dança Primitiva

Escrita corporal

Mesmo quando ainda não existia civilização, nem leis, nem tecnologia, já havia no mundo a necessidade humana de ultrapassar a vida comum e se comunicar. A expressão escrita, falada ou gesticulada presente no início da história se tornou alvo de estudos da Cia Enki de Dança Primitiva Contemporânea, que estréia o espetáculo Simbolein, uma tradução corporal de um antigo dialeto africano.

O coreógrafo Paulo Fernandes disparou sem rodeios: “A expressão é a música do corpo”. Como membro da Cia Enki e professor de Dança na Escola de Teatro e Dança Fafi, Fernandes explica que Simbolein partiu de um estudo feito sobre um antigo dialeto da Etiópia, o Ge’ez.

Falado há mais de dois mil anos e que, pela forte resistência etíope à colonização europeia, manteve-se vivo até hoje em algumas localidades do país, a língua serviu de inspiração ao coreógrafo para entender a relação do homem com a escrita. “O homem é sempre traduzido por um gesto de expressão, que é linguagem universal”, explica. Expressão ligadas a um senso de corporalidade implícita que são invocadas na dança.

“É a partir dessa percepção de que a origem da escrita se apropria da visão do homem da imagem da natureza. O modo como vê a folha se relaciona com a sua mão”, comenta Fernandes. Em seus estudos, Fernandes se aprofundou em detalhes da composição da linguagem Ge’ez e descobriu relações matemáticas para traduzir a relação da expressão com o corpo e o espaço.

“O alfabeto deles é fantástico porque tem letras e números, feitos em estrutura circular e em progressão geométrica”, conta ele. A partir dessa relação matemática entre letras e significados é que Simbolein (“símbolo” em grego), tenta redesenhar essa estrutura de expressões, seguindo a percepção de que as escritas antigas obedecem a observação do homem com a natureza.

O espetáculo segue uma escritura emocional do alfabeto Ge’ez pelo corpo, pelo espaço e pela música. Até a trilha sonora caminha nesse sentido, acompanhando uma estrutura matemática proporcional a formação alfabética.

Segundo o coreógrafo, essa reflexão acerca da matemática do corpo tem um objetivo mais forte que é o de repensar o significado das culturas antigas diante de um sistema que descarta tais conhecimentos. “A idéia do projeto é trazer uma cosmovisão da África para o mundo ocidental e, quem sabe, talvez seja até uma reflexão importante para a educação”, pondera.

Com essa proposta, Simbolein recebeu incentivo do Fundo Nacional das Artes (Funarte) para apoio de montagem e circulação: foi o único espetáculo do estado a ser contemplado no Prêmio Klauss Vianna. Sem o prêmio, Fernandes admite que seria um pouco difícil realizar este gênero de espetáculo pelo tamanho de sua profundidade, mas ressalta a importância que os estudos das culturas antigas tem para questionar os conflitos contemporâneos. “O foco desse tipo de provocação é trazer a simplicidade e a profundidade que tem nesses elementos e fazer uma avaliação do que é o conhecimento pra gente”, completa.

Simbolein, da Cia Enki de Dança Primitiva Contemporânea, dia 3, 19:30  e domingo (4), às 16:30 às 19h30, no Auditório da Fafi. Av. Jerônimo Monteiro, 656, Centro, Vitória. Entrada franca.

03.07.2010 | por martalanca | Brasil, dança