O cinema que ouve os povos amazónicos atingidos pela barragem de Belo Monte

Na Amazónia não é só a floresta que está em perigo, os rios também são alvo de um ecocídio de uma magnitude ainda por determinar. As suas correntes podem arrastar ameaças proporcionais às suas gigantescas extensões. Na lógica do desenvolvimento desenfreado, os recursos naturais amazónicos são mercadorias, sendo a água um dos mais valorizados. 

A bacia da Amazónia, com o maior potencial hídrico do planeta, é explorada por mais de uma centena e meia de barragens, algumas delas de grande porte como a Usina de Tucuruí, a primeira destas dimensões, edificada entre 1974 e 1985, durante a ditadura militar. A esta seguiram-se outras, sendo a mais recente uma das obras brasileiras mais controversas do nosso século: a Usina hidroelétrica (UHE) Belo Monte, a quarta maior do mundo, inaugurada em 2016, no rio Xingu, no Estado do Pará.

UHE Belo MonteUHE Belo Monte

Quase sempre, estas construções gigantescas levam de enxurrada os povos, a sua história, a sua subsistência, as suas vidas e as dos seres não-humanos que partilham com eles a sua existência. Com frequência, depois da torrente devassadora, as infraestruturas apresentam uma produtividade questionável e o rio, cujo fluxo já não corre livremente, deixa de ser, irremediavelmente, fonte de vida.

Na sua aproximação gradual às realidades amazónicas, o cinema brasileiro incorporou os rios como espaço representativo da destruição que assola o bioma. O registo, essencialmente documental, tem-se focado, entres outros assuntos1, no impacto devastador das grandes barragens e na crise ambiental e humanitária que provocam, expondo a continuidade da política colonialista do passado. Boa parte desses documentários têm sido dedicados ao desastre gerado pela barragem de Belo Monte. 

Entre esses filmes, alguns apresentam um interesse particular pela escuta dos povos atingidos e pela injustiça ambiental de que são alvo, tecendo assim o panorama da destruição. A partir de realidades particulares e coletivas revelam as intersecções entre o poder político e empresarial, e as vulnerabilidades dos povos amazónicos. Ainda que com as suas especificidades, cada um destes filmes abre um caminho seguro para entrarmos em sombrios atoleiros amazónicos onde se submergem vidas, enquanto outras tentam seguir à superfície do ‘desenvolvimento’. 

Para traçar o panorama do desastre socioambiental que é Belo Monte, seguimos os filmes Amne Adji Papere Mba – Carta Kisêdjê para o RIO+20 (2012) de Kamikiã Kisêdjê; Belo Monte, Anúncio de uma Guerra (2012) de André D’Elia; O Jabuti e a Anta (2016) de Eliza Capai; Belo Monte: Depois da Inundação (2016) de Todd Southgate; A Última Volta do Xingu (2015) de Kamikiã Kisêdjê e Wallace Nogueira e Eu+1: Uma jornada de saúde mental na Amazônia (2017) realizado por Eliane Brum.

Brum, que também é jornalista e escritora, lançou o livro Banzeiro Òkòtó, Uma Viagem à Amazônia Centro do Mundo (2021)2, onde reelabora e complementa o seu trabalho jornalístico, especialmente atento, desde 2011, às famílias ribeirinhas atingidas por Belo Monte. As palavras de Eliane Brum e a cinematografia que aborda o processo de devastação provocado pela usina desaguam, inevitavelmente, no mesmo lugar: o rio Xingu. 

A violação dos direitos humanos e ambientais. 

“Xingu, a palavra que nomeia o colossal afluente do Amazonas, significa ‘morada dos deuses’” (BRUM p. 141). O rio nasce no estado de Mato Grosso e percorre aproximadamente 1.409,5 km no estado do Pará até à sua foz. Com a titanesca UHE Belo Monte, localizada na sua bacia, junto à cidade de Altamira, o Xingu foi barrado, os ecossistemas estão sob pressão e em risco de colapso. Um desastre que se amplia, em cadeia, em muitas outras calamidades. Numa das reportagens que publicou no jornal El País Brasil, em setembro de 2019, a jornalista escrevia: “A notícia é esta: o Xingu vai morrer”.

A construção e operação da UHE Belo Monte foi adjudicada, em 2010, ao Consórcio Norte Energia, de capital 100% brasileiro. Em 2019, foi acionada a última turbina da usina planeada para servir 60 milhões de consumidores em dezassete estados brasileiros. Imagens imponentes da sua construção foram registadas por Eliza Capai, no seu documentário O Jabuti e a Anta, filmado em 2014, num ano de seca hidrológica no Brasil. Capai e a sua equipa viajaram por diferentes geografias, para investigar os impactos do modelo de produção de energia baseado no uso de hidroelétricas com grandes reservatórios.

O Jabuti e a Anta inicia-se aproximando-se da construção de Belo Monte como modo de entrar na desconstrução que produziu. Num exercício de observação por diversas perspetivas, Capai faz a tour turística pela obra da barragem, organizada pelo consórcio, e regista o discurso auspicioso de apresentação do empreendimento: “um projeto sustentável tanto do ponto de vista de geração de energia limpa como ambiental e social, que trará desenvolvimento à região, gerando emprego, renda, arrecadação de impostos e implementando grandes projetos de saúde, educação e saneamento para a região”.

Os benefícios para as populações acabaram, na sua maioria, por nunca chegar. Esta problemática é explorada, em vários momentos, no documentário O Jabuti e a Anta. O cacique Gilliarde Juruna - que não tinha então, nem nunca teve energia elétrica na sua aldeia, Miratu – conta como algumas pessoas foram cativadas pelas promessas da Norte Energia: “acreditavam que [a barragem] ia trazer posto de saúde, escola, saneamento para a comunidade. Nada disso está acontecendo! Projetos de sustentabilidade, que projetos são esses?”

Os Juruna, povo ao qual pertence o cacique Gilliarde é um dos principais povos indígenas atingidos por Belo Monte. Eles vivem nas margens do Xingu e são conhecidos como “o povo do rio”. Na Amazónia brasileira, os povos tradicionais do Xingu são principalmente indígenas, ribeirinhos e quilombolas3, grande parte destes são pescadores. No livro Banzeiro Òkòtó, Eliane Brum refere-se aos moradores das margens do Xingu como beiradeiros ou povos-floresta. “Ser beiradeiro é estar aqui e ali. É ser isto e também aquilo. É ser indígena e também não ser. É ser quilombola e também não ser. (…) Ser ribeirinho, habitante das beiras, é ser múltiplo. (…) Pescam e caçam, quebram castanha, tiram açaí, plantam roça, fazem farinha, às vezes criam galinhas. Podem cortar seringa se o preço estiver bom, garimpar um pouco quando aparece uma fofoca de ouro, no passado caçaram muita onça e gatos-do-mato porque os brancos queriam peles. Vivem entre a floresta e a rua, no entre mundos.” (BRUM p.91)

Raimunda Gomes da Silva e o pescador João Pereira da Silva viram a sua ilha inundada. Foto de Lilo Clareto no filme de Eliane Brum.Raimunda Gomes da Silva e o pescador João Pereira da Silva viram a sua ilha inundada. Foto de Lilo Clareto no filme de Eliane Brum.

Cerca de 40 mil pessoas4 deixaram de viver “no entre mundos”. Belo Monte deslocou-as, tornou-as “expatriados do seu próprio país no próprio país” (BRUM p.261), submergiu-lhes as terras e as vidas. “Belo Monte é um mostruário de horrores. É também uma linha de montagem de conversão explícita de gente floresta em pobres” (BRUM p.123). Da fortuna da floresta passaram à pobreza das periferias da cidade de Altamira e de outras áreas urbanas, realojados em complexos habitacionais precários, sem árvores, sem rio. Tornaram-se o que não queriam ser, habitantes de lugares estranhos, forasteiros numa (des)organização social que os amputou.

Os que ficaram tiveram que aprender a lidar com as mudanças: a navegação no rio foi alterada; grandes superfícies de floresta foram inundadas; surgiram grandes áreas de água parada que contribuem para a propagação de doenças; romperam-se os ciclos de alagamento de áreas que alimentavam os ecossistemas da vida aquática. As árvores, que ficaram debaixo de água, apodreceram, os seus frutos deixaram de alimentar os animais, especialmente os peixes que são a principal fonte de alimentação das populações ribeirinhas. Desaparecem os peixes e outros seres da floresta, depois também as pessoas. 

Quem permitiu a concretização da UHE Belo Monte não consultou as populações, não as ouviu, por isso não entendeu que a sua vida, a sua história e as suas tradições culturais não estavam à venda, nem disponíveis para trocar por promessas de desenvolvimento que ora são desajustadas, ora, quase sempre, ficam por cumprir. Os mesmos responsáveis também não se interessaram por conhecer os ciclos da existência do rio, uma força viva que não é possível dominar. A vazão do rio alterna entre seis meses de maior caudal com outros seis de menor. Essa dinâmica alimenta a vida no Xingu, mas não corresponde às necessidades da barragem que, no período de seca, deixa de funcionar. O curso de água muito reduzido afeta a estrutura da obra, colocando-a em risco de rompimento, o que torna real o risco de uma grande catástrofe. 

Os povos atingidos contam a sua própria história.

Nos documentários citados, os povos do Xingu foram ouvidos. Apesar das suas diferenças estéticas e narrativas, todos estes filmes apostam na força que devém das pessoas contarem a sua própria história. A prática de ouvir, mais que uma opção para a construção cinematográfica, resulta da perceção de que os atingidos precisam ser ouvidos. Quer seja pelas suas palavras ou pelas suas ações, as personagens destes filmes revelam-se combatentes numa longa batalha que as vai aniquilando aos poucos.

Em 2014, quando Eliza Capai navegou pelas margens do rio, pelo “entre mundos” amazónico, encontrou famílias que já, então, tinham sido removidas das suas terras e registou a angústia de quem vê as águas do rio sujas, impróprias para uso. Pescadores alertavam, na época, para o panorama que mais tarde se viria a concretizar. O primeiro interlocutor de Capai é um pescador, que já foi deslocado pela UHE Tucuruí, no rio Tocantins, também no Estado do Pará. Aos setenta anos, este homem via, mais uma vez, o seu lugar de trabalho ameaçado devido a outra hidroelétrica que “vem destruindo”, dizia. No final do seu depoimento ele adianta que “o fracasso se repetirá: o peixe vai desaparecer”.

Volta Grande do Xingu. Fotograma do filme de Kamikiã Kisêdjê e Wallace Nogueira.Volta Grande do Xingu. Fotograma do filme de Kamikiã Kisêdjê e Wallace Nogueira.

Na média-metragem, A Última Volta do Xingu, dos realizadores Kamikiã Kisêdjê e Wallace Nogueira também encontramos os relatos dos pescadores da Volta Grande do Xingu, uma das zonas mais afetadas pelo desvio da água do rio para encher a barragem. Um ano antes da inauguração de Belo Monte, os ribeirinhos monitorizavam as alterações na sua atividade piscatória e preparavam-se para assegurar outros meios de subsistência. Quando o reservatório da barragem começou a represar as águas, estes povos assistiram a uma mortandade. “Os Juruna da Volta Grande batizaram 2016 de ‘o ano do fim do mundo’. Peixes morreram às toneladas, assim como outros animais. A vida começou a se tornar inviável”, escreveu Eliane Brum na já referida reportagem para o El País Brasil.

O documentário A Última Volta do Xingu foi gravado nas aldeias Furo Seco da Terra Indígena (TI) Paquiçamba, onde vivem os Juruna, e em Terrawangã, TI Arara, outros dos povos “abraçados pela bacia do Xingu”, conforme descreveu Kisêdjê, na conversa com o BUALA, durante a sua passagem por Lisboa, em junho passado.5 O realizador e fotógrafo indígena contou que seis anos depois da inauguração de Belo Monte: “os povos que moram na Volta Grande do Xingu estão com dificuldade de pegar os peixes, para se alimentarem e até para venderem. Eles estão sofrendo, com a diminuição de peixes, que não têm mais o gosto que tinha antes. E também a caça está ficando difícil para eles. A outra forma de eles se sustentarem é trazer material da sociedade, mercadoria. Porque não têm mais onde caçar, nem onde pegar peixe.”

Kisêdjê tem uma relação muito próxima com a realidade dos atingidos pela destruição no Xingu. O realizador vive numa das aldeias do Parque Indígena do Xingu, criado há sessenta anos, atualmente território de dezasseis grupos étnicos distintos. O parque é uma enorme mancha de floresta rodeada por latifúndios agrícolas, sobretudo de plantações de soja, que contaminam o ar e as águas do rio.

Em 2012, Kamikiã Kisêdjê realizou o filme Amne Adji Papere Mba – Carta Kisêdjê para o RIO+20, um filme-manifesto do seu povo, onde as mulheres assumem um protagonismo particular e enviam uma mensagem de indignação ao governo brasileiro, repleta de preocupações sobre a construção de Belo Monte. Uma delas diz “Só de pensar nisso [a barragem], fico com dor de cabeça e não consigo dormir. Sabem o porquê disso? Estou falando para você refletir, ter uma preocupação, pensar no futuro. Vocês poluíram o nosso rio!”

Em 2015, para “responder à urgência desse tempo histórico”, Eliane Brum, que se autodefine como escutadeira, conta que efetuou o seu “segundo movimento de fazer o que não sabia” (BRUM p.258). Com esta motivação, Brum teceu uma rede de contatos que levou ao Xingu, em 2017, uma equipa voluntária de dezasseis psicanalistas e psicólogos preparados para a escuta terapêutica, reunidos no projeto Refugiados de Belo Monte – Clínica do Cuidado.

Enquanto desenvolvia o seu trabalho, a equipa de profissionais de saúde foi acompanhada por Brum e pelo fotógrafo Lilo Clareto que documentaram o sofrimento dos atingidos. A experiência desdobrou-se em vários resultados, tanto para os que foram ouvidos como para os que ouviram. Entre esses desdobramentos está o documentário Eu+1: Uma jornada de saúde mental na Amazônia, um filme que mostra, através do relato dos profissionais envolvidos, o tamanho da demanda com que se confrontaram. 

Uma das ideias que o documentário de Eliane Brum ajuda a entender é a proposta da escuta como forma do outro se ouvir a si próprio e se descobrir. Alguns dos testemunhos dos profissionais de saúde mental ressaltam que as pessoas assistidas constatavam nunca terem sido ouvidas daquela forma, nem visto as suas histórias reconhecidas antes. 

Segundo conta a psicanalista Ilana Katz no filme, um dos exercícios propostos aos atingidos pela barragem, foi o de tentar encontrar outros nomes para o seu sofrimento, como forma de fugir às definições atribuídas pela psiquiatria, pela Norte Energia ou pelos procedimentos jurídicos. Alguns dos nomes encontrados foram: “Esquecimento. Morte. Pescador sem rio. Sacrifício. Fim. Monstruosidade. Paralisado. Perder a casa. Escuridão. Sem voz. Traição. Prisão.”

Quando os povos indígenas declararam guerra às barragens no Xingu.

O projeto de construir uma UHE no Xingu surgiu durante a ditadura, na década de 1980. O documentário de André D’Elia, Belo Monte, Anúncio de uma Guerra recua a esse período para relembrar os primeiros movimentos de resistência ao projeto e, a partir daí, traçar o panorama da sua desastrosa implementação até 2012, ano da gravação do filme.

O realizador André D’Elia abre a sua narrativa com uma imagem histórica - a fotografia icónica de 21 de fevereiro de 1989 - que eternizou um gesto que o Brasil viu com sobressalto e o mundo com espanto: uma mulher indígena, guerreira kayapó, encostava o seu facão à face de um homem branco sentado na mesa da audiência pública que discutia a construção de uma barragem no rio Xingu. Esse gesto não foi o início da resistência indígena a mais um empreendimento destruidor na Amazónia, mas tornou-se numa ação detonadora da visibilidade dessa força e do desastre ambiental iminente.

Foto de Paulo Jare no 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (1989).Foto de Paulo Jare no 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em Altamira (1989).

A guerreira, Tuíre Kayapó, é líder e ativista dos direitos indígenas e do meio ambiente. O homem branco, sentado no centro da mesa acompanhado por outros homens brancos, é José Antônio Muniz, na altura, o diretor da empresa estatal Eletronorte, que reunia as centrais elétricas do Norte do Brasil. Muniz estava ali para discutir, com os povos do Xingu, os procedimentos para a instalação da usina hidroelétrica, na época, projetada para incluir sete barragens, cuja maior delas seria a então chamada Kararaô (grito de guerra em Kayapó). Hoje é Belo Monte.

Com o seu gesto, Tuíre Kayapó mostrava a rejeição às palavras do diretor da Eletronorte, que ignoravam a participação indígena nas tomadas de decisões relativas aos impactos ambientais e sociais que a construção da usina levantava. No momento, Tuíre declarou: “A eletricidade não vai nos dar a nossa comida. Precisamos que nossos rios fluam livremente. O nosso futuro depende disso. Nós não precisamos de sua represa.”6 O projeto foi então paralisado durante dez anos.

Depois desses anos de trégua, a ameaça reemergiu e o povo indígena Kayapó voltou à luta para defender o território onde se situam as suas aldeias ribeirinhas, a montante do rio. O cacique Raoni Kayapó7, tal como Tuíre Kayapó, foi um dos protagonistas dessa luta e também o é do filme de André D’Elia. Em fevereiro de 2010, quando o Ministério do Meio Ambiente do governo de Lula da Silva concedeu a licença ambiental para a construção de Belo Monte, sem ter realizado a consulta prévia das comunidades afetadas, conforme exige a Constituição brasileira, Raoni Kayapó declarou guerra ao projeto e chamou para essa luta os seus vizinhos indígenas do Xingu: os povos Jurunas, Araras, Terenas, Tukanos, Macuxis, Guajararás e Kaigongs. 

O documentário Belo Monte, Anúncio de uma Guerra reúne depoimentos dos líderes indígenas e outros representantes dos movimentos sociais que se uniram à resistência. Os seus testemunhos alternam com a informação sobre os interesses políticos na ocupação da Amazónia, que levaram ao desbloqueio do projeto no final da primeira década deste século.  

André D’Elia não evita os momentos mais polémicos que levaram à implementação do projeto de Belo Monte, nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff. Esses marcos fundamentais na história do empreendimento ganham novos significados e reforçam a sua importância, à distância de uma década, no atual contexto político brasileiro: com o regresso de Lula da Silva à presidência do país, cuja tomada de posse ficou marcada pelo momento emblemático da entrega da faixa presidencial por um grupo de representantes da sociedade civil brasileira, do qual fazia parte o Cacique Raoni.

“O governo Lula precisa lidar com os crimes de Belo Monte. (…) Entendemos que sua eleição para um terceiro mandato representa uma oportunidade crucial para corrigir parte dos problemas causados pela construção e operação da UHE Belo Monte.” Esta é a mensagem enviada, em janeiro deste ano, por pesquisadores independentes do Observatório da Volta Grande do Xingu ao novo governo brasileiro. Na carta que assinam “alertam para a mitigação urgente dos impactos socio ambientais na Volta Grande do Xingu e pedem tratamento digno às famílias atingidas pela hidrelétrica”8.

Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro reconheceu que o direito de consulta prévia dos povos indígenas afetados por Belo Monte foi violado. A decisão respondia a uma ação iniciada, em 2006, na Justiça Federal do Pará. O Juiz Alexandre de Moraes, do STF, recusou a argumentação recorrente do governo federal de que as obras da usina não ocorreram dentro de terras indígenas, portanto não se impunha a necessidade de consulta prévia.9

As várias frentes de resistência.

“Belo Monte foi imposta contra os povos-floresta, contra os movimentos sociais, contra as organizações ambientais e contra os cientistas.” (BRUM p.157). Por essa razão, estas forças têm, em geral, convergido num movimento de resistência com várias frentes. Segundo o realizador Kisêdjê contou ao BUALA: “Hoje em dia estamos numa luta só. Estamos unidos para defender o que tem na floresta, no meio ambiente.” 

Na carta já citada, os pesquisadores independentes do Observatório da Volta Grande do Xingu denunciam “que não é só o rio e os habitantes das suas margens que são atingidos”, segundo descrevem “o garimpo ilegal e a grilagem assolaram quase todos os territórios atingidos pela construção e operação da UHE Belo Monte. (…) As terras indígenas se tornaram as mais desmatadas do país nos últimos anos, como a Trincheira-Bacajá, do povo Xikrin, a Cachoeira Seca, do povo Arara, Apyterewa, do povo Parakanã, e a TI Ituna Itatá, onde há registro de grupos isolados em risco de genocídio.”

Como as consequências do desastre continuam a multiplicar-se, também a resistência tem vindo a reforçar-se nos últimos anos, com formas de organização social que garantam ações robustas. Atualmente, coletivos sociais como Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Rede Xingu+, Movimento dos Atingidos por Barragens, Conselho Ribeirinho e o Movimento Amazônia Centro do Mundo, entre outros, continuam a denunciar os danos socioambientais e a procurar alternativas que minimizem os mesmos. 

A ativista ambiental Antônia Melo Fotograma do filme O Jabuti e a Anta de Eliza Capai.A ativista ambiental Antônia Melo Fotograma do filme O Jabuti e a Anta de Eliza Capai.

A resistência à UHE Belo Monte tem um percurso histórico que remonta aos finais dos anos 1980 como mencionado antes. Na época, a igreja foi também parte ativa nesta luta e, mais tarde, na primeira década deste século, esteve na frente reivindicativa através de um dos maiores críticos do empreendimento: o atual bispo emérito da Prelazia do Xingu, Dom Erwin Kräutler, austríaco radicado no Brasil, cidadão brasileiro desde os anos 1970 e atualmente uma referência na defesa dos direitos humanos e dos povos indígenas e ribeirinhos da Amazónia.

Dom Erwin foi um forte aliado do Movimento Xingu Vivo para Sempre, também conhecido por Xingu Vivo, criado em 2008, representando vários povos tradicionais e indígenas da região. À frente deste coletivo, como coordenadora, está Antônia Melo, ativista pela defesa do meio ambiente e dos direitos humanos, radicada em Altamira, com uma biografia feita de décadas de liderança e revindicação, algumas delas dedicadas à luta contra o desastre provocado por Belo Monte. Eliane Brum refere-se, no seu livro, a Antônia Melo como “uma sumaúma em forma de mulher (…) cujas poderosas raízes geram outras mulheres em gesto de potência no movimento social de Altamira” (BRUM p.141)

Sumaúma é uma árvore sagrada da Amazónia e, atualmente, uma espécie protegida, por estar em risco de extinção. Antônia Melo, como qualquer sumaúma, vive ameaçada de morte e também tem que viver sob proteção. Contudo, não está, nem nunca esteve, imune aos abusos que combate. Em 2015, Melo foi privada das ruas raízes: a ativista foi expulsa da casa em que viveu durante mais de trinta anos. Foi mais uma das vítimas da especulação imobiliária que assolou a cidade Altamira, liderada pelo consórcio responsável pela barragem.

Não é possível falar de Belo Monte sem falar de Antônia Melo. A ativista participa nos documentários de Eliza Capai, no de André D’Elia e, com mais destaque, no filme Belo Monte: Depois da Inundação que o do realizador canadiano Todd Southgateg gravou na região. Nas suas declarações, neste último documentário, a ativista procura esclarecer a dimensão exata do desastre: “Aqui em Belo Monte não tem essa história de impactados diretamente e impactados indiretamente. Todas as pessoas foram impactadas diretamente. Tem os que foram expulsos, tem os que a água passou por cima e aqueles que estão sofrendo toda a perda da sua identidade, dos seus modos de vida”. 

Ainda no filme de Todd Southgate, Melo diz que há muita luta pela frente porque “são inúmeros os projetos que este governo [em 2016], junto com as corporações, tem para rios da Amazônia, então essa luta, ela não se acaba aqui, pelo contrário, ela se fortalece para dar continuidade a outros movimentos, de outros povos e de outros rios da Amazônia e em qualquer lugar do planeta”.

Os planos para construir hidroelétricas na Amazónia prevêem dezenas de grandes barragens e mais de uma centena de pequenas infraestruturas nas bacias dos rios Xingu, Tocantins, Araguaia, Madeira e Tapajós. Em 2010, no segundo mandato do governo de Lula da Silva, foi apresentado um plano que contemplava a construção de setenta e nove barragens na Amazónia. Cada um destes empreendimentos promove a instalação de outros, como o projeto de extração de ouro da empresa canadiana Belo Sun, previsto para as margens da Volta Grande do Xingu.

Tal como refere Antônia Melo, na Amazónia brasileira, a luta estende-se por outras geografias: por exemplo pelo território indígena Munduruku, ameaçado por mais uma possível barragem no rio Tapajós. Neste caso o projeto está suspenso, só resta saber até quando. No seu filme, Eliza Capai viajou até às terras Munduruku e conta como este povo luta para preservar o seu território, no qual já foi construída a barragem Teles Pires que inundou, em 2015, uma das suas áreas sagradas: a cachoeira de Sete Quedas.

Numa perspetiva pan-amazónica, o Brasil, o Peru e a Bolívia são os países mais afetados pela construção de usinas hidroelétricas nos seus rios, mas também existem planos de empreendimentos desta natureza no Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname. A viagem de Eliza Capai cruzou a fronteira e chegou à Amazónia peruana, trazendo assim para o seu documentário outra história de luta e resistência, esta protagonizada pela líder ashaninka, Ruth Buendía, que conseguiu unir o seu povo e barrar os planos para uma hidroelétrica no rio Ene, que continua a correr livre e cheio de vida. Uma vitória ante mais um projeto de violência socioambiental, física e psicológica sobre as populações ribeirinhas amazónicas. 

  • 1. Em “O transe amazónico em diferentes tempos e lugares na cinematografia de Jorge Bodanzky”, no BUALA, pode ler também sobre a contaminação dos rios por mercúrio, a propósito do novo filme do cineasta, Amazônia, A Nova Minamata? (2022).
  • 2. Banzeiro Ókòtó. Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo é uma edição da Companhia Das Letras. Eliane Brum foi colunista do jornal El País Brasil entre outubro de 2013 e dezembro de 2021. Atualmente é diretora do site informativo SUMAÚMA: Jornalismo do Centro do Mundo.
  • 3. Os quilombolas são habitantes das comunidades remanescentes dos Quilombos, aldeias criadas por homens e mulheres negras que fugiam da sua situação de escravizado.
  • 4. Segundo dados fornecidos pela antropóloga Ana de Francesco ao site informativo Amazônia Real, na reportagem “Belo Monte abala a saúde mental de ribeirinhos”, publicada em dezembro de 2021.
  • 5. Kamikiã Kisêdjê participou no EcoImagens, Festival de Cinema Indígena da Amazônia, realizado por iniciativa da Universidade de Coimbra e do Festival DocLisboa, em junho de 2022. Kisêdjê também é autor de vários filmes e vídeos ambientais e foi o fotógrafo oficial do Cacique Raoni, na Cop21 de Paris, em 2015.
  • 6. https://revistaphilos.com/em-um-pais-anti-indigena-quando-nao-querem-ouv...
  • 7. Cacique Raoni, que foi indicado para o Nobel da Paz em 2020, afirmou-se, nos anos finais da década de 1970, como porta-voz da luta pela preservação da floresta amazónica, em campanhas internacionais que tiveram o apoio de várias personalidades internacionais, entre as quais o cantor Sting, com quem estabeleceu uma relação que dinamizou a criação de fundações de apoio à floresta e à homologação de áreas de reserva.
  • 8. A carta foi divulgada pelo site de informação SUMAÚMA. https://sumauma.com/novo-governo-lula-precisa-lidar-crimes-belo-monte
  • 9. https://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/stf-reconhece-que-...

por Anabela Roque
Afroscreen | 9 Fevereiro 2023 | A Última Volta do Xingu, Amazónia, barragem Belmonte, Brasil, Eliane Brum