A Amazónia em 2021: antes do final do ano, histórias para adiar o fim do mundo

Para falar da Amazónia como território em disputa, há séculos, começamos por seguir uma das provocações enunciadas por Ailton Krenak, filósofo, escritor e líder indígena: “Para adiar o fim do mundo, é necessário contar sempre mais uma história”. Mais histórias precisam de ser contadas, sobre a lógica da criação e da ampliação de espaços de resistência e reivindicação, para, com estas, conectar o homem à natureza. Ainda segundo Krenak, só assim nos afastamos da ideia da “humanidade como algo separado da natureza”1. Neste princípio reside um dos pilares da “batalha pela Amazónia, a grande batalha deste século”, como escreve, de forma certeira, a jornalista brasileira Eliane Brum, no seu recente livro Banzeiro Òkòtó. Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo2, onde aponta “a amazonização do mundo como movimento para derrubar a hegemonia do pensamento ocidental, patriarcal, branco, masculino e binário que vem dominando o planeta nos últimos milênios” (2021:51). Chegados à segunda década do séc. XXI, à beira do colapso climático, não se pode adiar mais esse movimento, e há que assumir o compromisso global pela conservação da Amazónia. 

Para falar da importância, não só de contar mais histórias sobre Amazónia, mas sobretudo de contá-las a partir de outras perspetivas, com o intuito de construir narrativas livres de contextos colonizadores, de estigmas e estereótipos, realizou-se, entre os dias 23 e 27 de novembro, em Manaus, na capital urbana situada no meio da floresta amazónica, um encontro internacional que juntou - presencial e virtualmente - múltiplas vozes. Com o cruzamento de experiências pretendeu-se estimular a criação e comunicação dessas novas narrativas, sobretudo no cinema, mas não só. 

Foi a primeira vez que a iniciativa - The Climate Story Lab – aconteceu na América Latina. O encontro, integralmente dedicado à Amazónia, foi coproduzido pela instituição britânica The Doc Society, que apoia o desenvolvimento e produção de documentários, assim como de projetos de comunicação similares; a organização guatemalteca Hackeo Cultural, dedicada à construção de práticas de insurreição das narrativas; e a organização brasileira para o Mercado Audiovisual do Norte, Matapi.

Foto de divulgação. Vanda Ortega Witoto, defensora dos direitos das mulheres indígenasFoto de divulgação. Vanda Ortega Witoto, defensora dos direitos das mulheres indígenas

O Climate Story Lab Amazónia juntou realizadores e produtores de quatro filmes; jornalistas e realizadores de duas web séries e de um podcast - projetos selecionados por abordarem questões relativas a mudanças climáticas e justiça social e cultural nas regiões amazónicas do Brasil e dos demais países latino-americanos que compartem a grande floresta tropical. Para ampliar o debate sobre as questões apresentadas pelos projetos, o encontro contou também com a participação de líderes indígenas, quilombolas, ativistas, jornalistas, mobilizadores sociais, pesquisadores e outros especialistas que estão na vanguarda do debate sobre a crise climática e sobre a defesa dos povos amazónicos, entre os quais se encontravam Txai Suruí, ativista indígena cujo discurso abriu a COP263; Daniel Munduruku, escritor e professor brasileiro, pertencente à etnia indígena Munduruku; Paloma Costa, do Conselho Geral da ONU sobre Clima; Marcivana Sateré-Mawé da Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entorno e Vanda Ortega Witoto, líder indígena, técnica de enfermagem, defensora dos direitos das mulheres indígenas.

Segundo Vanessa Cuervo, diretora da Doc Society na América Latina: “A comunicação climática com impacto é mais importante do que nunca. Nosso desafio é ir além das narrativas climáticas unificadas do passado, identificando e ampliando uma biodiversidade de histórias e narrativas tão diversas, quanto o ecossistema que buscamos curar.” Neste sentido, o laboratório funcionou como um espaço de reflexão sobre a descolonização das histórias amazónicas, propondo a necessidade de trabalhar novos significados e representações. Uma premissa também seguida por Eliane Brum no seu livro Banzeiro Òkòtó, onde a sua radicalidade narrativa serve a essa construção (ou desconstrução). Segundo a autora: “a mudança que o real opera na linguagem – e a linguagem opera no real – é uma operação política fundamental para a determinação do futuro. Ela alcança a raiz da disputa pela Amazônia”. (2021:97)

O Climate Story Lab Amazónia foi também um espaço de articulação e troca de informações sobre as diferentes lutas geradas por essa disputa. Elaíze Farias, fundadora da agência de informação Amazônia Real4 apontou a necessidade de mais histórias que explorem a diversidade da Amazónia: “fala-se muito desta, de forma homogénea, como se fosse um bairro, mas trata-se de uma região continental, heterogénea, habitada por muitos povos. Não podemos apenas sobrevoar a Amazónia, é preciso mergulhar. De cima, tudo é verde, mas em baixo ela é vermelha, a cor do sangue, da violência. Alguém precisa mostrar a realidade de fato, para isso é preciso conhecer a História e as trajetórias dos vários territórios”. 

Antes de mais, pertencer e ser floresta.

Os povos da floresta estão na linha da frente da luta pelo bioma amazónico e, consequentemente, pela preservação da vida, não só nos seus territórios, mas em todo o planeta. Entre estes povos estão os indígenas que habitam a Amazónia há milhares de anos: são no total mais de 180 povos conhecidos, mas ainda existem outros que vivem isolados. Estes, os povos originários, guardam uma multiplicidade de histórias que testemunham agressões não só às suas populações, mas também à fauna e flora da floresta. Lutam há séculos para se defenderem das invasões e depredações do homem branco. Possuidores de conhecimentos ancestrais, guardam o ecossistema amazónico, preservam-no com modos de vida que respeitam a sua biodiversidade. Nas terras indígenas (TI) localizam-se as grandes áreas de floresta que ainda restam de pé. Os limites destas, embora sejam constantemente violados, funcionam como trincheiras na batalha pela Amazónia, travam os avanços do desmatamento e de outras formas de destruição. O corte da floresta nestas áreas é de 2,5%, enquanto, fora destas, é de 52,5%.

Para além dos povos indígenas, coexistem no bioma populações tradicionais que o habitam há longa data, como os quilombolas, com mais de mil comunidades; ribeirinhos, na sua maioria pescadores artesanais; agricultores familiares, seringueiros, piaçabeiros, peconheiros, entre outros.5 Em geral, todos estes povos praticam modos de vida sustentáveis, muitos deles desenvolvidos a partir dos conhecimentos dos povos originários. Entre todos, mantêm vivos modelos viáveis para a sobrevivência da Amazónia que chocam com as atividades depredatórias de colonos, forasteiros, grandes empresas e do próprio Estado que, desde os finais do século XIX, tem provocado uma devastação vertiginosa na área.

A este propósito, vale a pena citar aqui a reformulação da definição de povos da floresta que Eliane Brum expõe em Banzeiro Òkòtó: “Povos da floresta implica que são povos que pertencem à floresta, e não a floresta que pertence aos povos. A crase no “a” faz toda a diferença. Para ser considerado e reconhecido como povo da floresta é preciso encarnar duas transgressões ao sistema capitalista. A primeira é que não se trata de propriedade, mas de pertencimento, o que é radicalmente diverso. A segunda é que aqueles que pertencem à terra são as pessoas humanas – e não o contrário. (…) Esses povos não possuem a floresta, a formulação está clara. Afirmar apenas que pertencem a ela, porém, ainda não é exato. Eles não pertencem, eles são, porque ser ribeirinho e quilombola e indígena, para muito além de qualquer estatuto, é se compreender como natureza. Assim, não são povos da floresta, mas povos-floresta. Deletamos6 a partícula de pertencimento – “da” – para que possam ser reintegrados também na linguagem”. (2021: 96-97) 

Na sua intervenção no ClimateStoryLab Amazónia, Daniel Munduruku abordou esta ideia ampliada à necessidade de um compromisso geral com a defesa da natureza: “Mais do que fazer que as pessoas participem [nesta luta], temos que fazer com que as pessoas pertençam à terra, isso as compromete, as integram completamente no entendimento de que eu também sou natureza, colocando-as em conexão direta com essa grande teia da vida, da existência. Isso só vai ser possível, à medida que formos capazes de nos comprometermos uns com os outros, nos comprometermos com a mudança, com a transformação. Não se trata de mudar, se trata de transformar, se trata de dar um passo para trás, não no sentido de regresso, mas no sentido de impulso. Nós precisamos de dar um passo para trás para impulsionar o que nós somos, o que significa olhar a experiência que essas populações originárias viveram ao longo da sua história, como conseguiram sobreviver e aprender efetivamente com elas. As populações indígenas, acreditando no seu potencial sistémico de pertencimento à natureza, formam uma derradeira fronteira de contenção dessa saga consumista, destruidora, que hoje assola o mundo. Por essa luta permanente constante dos povos indígenas, a gente precisa de facto, de criar uma força, uma consciência em toda a sociedade ocidental, para que eles entendam que sem natureza não há vida. Sem terra não há alimento. Sem rio, sem água não vamos matar a sede.”

Essa falta de consciência da sociedade ocidental foi também abordada por Txai Suruí no encontro de Manaus: “Na COP26 (e também aqui no Brasil) percebi que as pessoas não sabem o que está acontecendo na Amazónia. Na Europa, sabem que a Amazónia está sofrendo, mas não sabem que todos os dias há quem morra nesta luta, não sabem que as nossas crianças estão morrendo de desnutrição, que estão sendo envenenadas. Eles não sabem que a nossa floresta está sendo queimada e que a nossa casa está sendo destruída. Saber que a Amazónia está sofrendo é uma coisa muito ampla. Como mudamos isso? Temos que levar a informação sobre o que está acontecendo, de verdade, nas terras indígenas, para todos os lugares. O problema é que apesar dos comunicadores mostrarem o que está acontecendo, ainda vivem em bolhas. Essa é a verdade! A gente tem que tentar quebrar essas bolhas, para mostrar para todo o mundo a importância da Amazónia e dos povos indígenas. Temos que acabar com a desinformação levando mais informação, multiplicando as vozes.”

Como as histórias podem contribuir para a luta climática?

“Muitas histórias, muitas notícias sobre os povos indígenas e as suas culturas são contadas de forma errada. Falam que os indígenas tem muita terra e não fazem nada, que são pobres e passam fome. A verdade é que nós vivemos de acordo à nossa cultura, ao nosso modo de vida, mas não somos o que eles [brancos]7 pensam. Nem pensamos no dinheiro como eles, porque nós temos como sobreviver com o que tiramos da natureza. Não passamos fome. E estamos mostrando isso: a nossa vida dentro da aldeia e que somos muito felizes com a nossa floresta.” Com este testemunho, Beka Saw, realizadora e comunicadora, expõe algumas das manipulações comuns nas narrativas sobre a condição indígena. 

A realizadora munduruku pertence a um povo com tradição guerreira, que dominou culturalmente a região do Vale do Rio Tapajós - Sudoeste do Estado do Pará - conhecida então como Mundurukânia. Este povo originário resiste e continua a lutar, agora com novas frentes, mas sempre em defesa da integridade do seu território. Desde os doze anos que Beka Saw Munduruku participa nessas ações. A primeira em que participou foi para denunciar a destruição ambiental provocada pela construção de uma central hidroelétrica no Rio Tapajós. Em 2014 começou a usar a tecnologia da informação e comunicação como ferramenta para construir frentes de luta. Hoje faz parte do Coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi, junto com as realizadoras Aldira Akai Munduruku e Rilcelia Akai Munduruku. Juntas estiveram presentes no Climate Story Lab Amazónia para apresentar a curta-metragem Autodemarcação e Fiscalização da TI Sawré Muybu8, na qual registaram o modo como o seu povo autodermaca anualmente o seu território. Pessoas de várias aldeias fazem a limpeza da terra e sinalizam os seus limites, como forma de fiscalizar e inibir a ação de invasores, sobretudo garimpeiros, madeireiros e palmiteiros9. Beka Saw faz questão de ressaltar: “Cada árvore que é cortada é como se fosse o nosso corpo, porque na história Munduruku, os ancestrais viraram árvores e animais e quando eles derrubam a floresta, nós sentimos isso. Eles [madeireiros] não sentem porque não tem sentimento. As árvores são como o nosso corpo que está sendo destruído. Sangue sendo derramado na floresta pela mão do não-indígena, pela mão do governo.”

 Realizadoras Munduruku do Coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi Realizadoras Munduruku do Coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi

As três realizadoras contaram ao BUALA, que este coletivo de mulheres Munduruku acompanha os problemas do seu povo e que trabalham na divulgação de várias denúncias, “para não depender dos jornalistas. Buscamos trazer notícias para dentro da nossa aldeia, e mostramos a realidade do nosso povo aos de fora. Também mostramos o que fazemos, a outros parentes, incentivando-os a fazer o mesmo. Também usamos as imagens para mostrar ao Governo que há que fazer a [prometida] demarcação.”

Atualmente, a situação no território Sawré Muybu é bastante preocupante, os Munduruku vivem sob as gravíssimas consequências da atividade ilegal do garimpo de ouro, que contamina, com mercúrio, as águas dos rios e todo o sistema fluvial. Vários estudos identificaram altos níveis de contaminação nas populações indígenas, uma vez que estas se alimentam sobretudo de peixe. Rilcelia Akai, que não se separou da sua bebé durante os quatro dias em que decorreu o encontro, revelou, num dos debates, que por ter níveis tão altos de mercúrio no sangue, não pensa voltar a ter filhos.10

O trabalho do Coletivo Audiovisual Daje Kapap Eypi é um dos exemplos de como as mulheres indígenas estão cada vez mais a usar os meios de comunicação para divulgar as ações de defesa do seu território. As suas denúncias expõem os ataques e a sua causa, apontam culpados, atribuem responsabilidades e pedem ações de compensação. A presença maioritariamente feminina no Climate Story Lab Amazónia tornou evidente como as mulheres estão cada vez mais no centro da luta. A abrangência da sua resistência reforça-se com a construção das suas próprias narrativas, no seu idioma e em consonância com as suas formas de existir e de ser. 

Esta força tem sido edificada, por um lado, dentro das comunidades, com ações de formação em audiovisual, cinema e outros meios de comunicação, através de projetos desenvolvidos pela organização Vídeo nas Aldeias, com mais de trinta anos de atividade, ou pelo Instituto Catitu, que tem dedicado uma atenção especial às mulheres indígenas. Por outro lado, a implementação de políticas de inclusão educativa pelo governo, no início dos anos 2000, permitiu aos jovens saírem das comunidades para estudarem em centros de formação ou universidades em áreas urbanas. 

Desde 2009, o Instituto Catitu tem atuado, sobretudo, no Parque Indígena do Xingu.11 Em conversa com o BUALA, Mari Corrêa, realizadora, fundadora e diretora do Instituto, explicou que “o trabalho desenvolvido contempla outras formas de filmar e de se relacionar com o sujeito filmado. Não consiste em apenas fazer um filme, mas sim estabelecer uma relação de troca. Quando vamos fazer as oficinas, respondemos a um convite. Os caciques [chefes indígenas] abraçaram o audiovisual como ferramenta política. Têm vontade de comunicar para fora.” E as mulheres assumem essa missão. 

Mari Corrêa, que já tem um longo percurso de trabalho cinematográfico com as comunidades indígenas, trouxe para o Climate Story Lab Amazónia a sua mais recente curta-metragem – Quentura, que gravou em vários territórios amazónicos - desde do Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, ao território Yanomami na fronteira com a Venezuela, passando pelo Acre, na fronteira com o Perú, entre outros. Com a sua abrangência geográfica, o filme deixa claro que povos amazónicos, de diferentes territórios, enfrentam problemas muito semelhantes causados pelo avanço das mudanças climáticas. Nos diferentes lugares dessa ampla geografia, a realizadora encontrou grupos de mulheres indígenas que vivem os impactos da subida das temperaturas nos seus cultivos, o que lhes está a comprometer a produção dos alimentos essenciais. “É um tempo muito diferente, que nem os espíritos estão conseguindo entender” diz uma dessas mulheres, no filme.

Foto Rede sociais. Txai Suruí, ativista indígena cujo discurso abriu a COP26Foto Rede sociais. Txai Suruí, ativista indígena cujo discurso abriu a COP26

Ativismo jovem na luta climática, aqui e agora.

A luta para travar as mudanças climáticas tornou-se uma necessidade que permeia várias gerações. Num reforço natural, a disputa pela vida na Amazónia coloca os mais jovens na linha da frente, agora com uma posição fortalecida, pelo domínio das ferramentas de comunicação, e pelo acesso à educação.

Txai Suruí, 24 anos, é filha de dois ativistas da etnia Paiter-Suruí - Ivaneide Bandeira Suruí (Neidinha) e Almir Suruí, líder dos Povos Suruí de Rondônia. Txai cresceu entre dois territórios: o seu, a Terra Indígena 7 de setembro (Rondônia e Mato Grosso) e a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, no sul de Rondônia, delimitada por uma região de monoculturas, fazendas pecuárias e áreas de garimpo, que têm provocado o desmatamento dentro das terras demarcadas. Os seus pais atuam para a defesa deste território através da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, para a qual a jovem também trabalha. Com o curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia praticamente terminado, Txai Suruí é ainda coordenadora e fundadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia. No seu discurso, na abertura da COP26, Txai Suruí disse “Meu pai, o grande cacique Almir Suruí, me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a lua, o vento, os animais e as árvores. Hoje o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando, ela nos diz que não temos mais tempo”.

Em Glaslow, Txai Suruí não estava sozinha, pois os jovens indígenas, ativistas e ambientalistas estavam em maioria entre os representantes da sociedade civil brasileira. Para a ativista, os jovens foram “denunciar o que estava a acontecer e mostrar que o nosso corpo, a nossa voz, o nosso espírito está ali demarcando aqueles lugares. (…) a gente não quer só fazer parte da abertura e somente ser ouvidos, a gente quer, realmente, participar nos processos de decisão.” Poucas semanas depois, já no Brasil, na sua intervenção no Climate Story Lab Amazónia, a ativista acrescentou: “A juventude já entendeu que não estamos lutando pelo nosso futuro, estamos lutando pelo nosso agora, pelo nosso presente. Eu não consigo ver nada que dê mais esperança do que a força dessa juventude, que vem lutando contra todo esse retrocesso, contra todo esse genocídio, por uma qualidade de vida melhor para todos. Porque falar de justiça climática é ser contra a desigualdade social, é ser pela igualdade de género, é ser antirracista, anticapitalista e é falar também de juventude, porque nós também estamos sofrendo muito com as consequências das mudanças climáticas e estamos na linha da frente dessa luta. Quando eu estava na COP26, me pediam para enviar uma mensagem para os jovens e eu sempre falava, não, não sou eu que vou mandar uma mensagem para a juventude, quem está mandando uma mensagem para o mundo inteiro é a juventude.”

As narrativas potencializadas por corpos diversos.

Em território amazónico, onde a violência sustenta o sistema de opressões, a mobilização dos jovens pela justiça climática e social é uma escolha corajosa, porque os coloca em risco. A própria Txai Suruí relembrou que, imediatamente depois do seu discurso na Escócia, recebeu várias ameaças nas redes sociais e que, recentemente, tem sido perseguida na cidade onde vive. A jovem relembrou que o Brasil é um dos países mais perigosos para ativistas de direitos humanos e ambientais. “É isso, a gente morre e não acontece nada. Umas das falas que eu levei [para a COP26] foi exatamente sobre o meu amigo, que cresceu comigo e que era um protetor da floresta: Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi brutalmente assassinado e até hoje não temos resposta sobre o que aconteceu, por parte do poder público, nem por parte da polícia, nem de ninguém. Quem assassinou o Ari?… Mas, a gente sabe que foi porque ele era um guardião da floresta, ele era uma pessoa que defendia o seu território.”

Esses corpos, que o Brasil elimina de forma criminosa e marginaliza sistematicamente com o seu racismo estrutural - ambientalistas, negros, trans, indígenas - estão representados na longa-metragem Uýra – A Retomada da Floresta, um dos filmes selecionados para o Climate Story Lab Amazónia  e cujo trailer foi apresentado, pela primeira vez, na COP26. O documentário, realizado por Juliana Curi, segue a trajetória da jovem artista Emerson Munduruku como Uýra Sodoma. O filme está em fase de finalização e será lançado em 2022.

Emerson, natural de Santarém, Pará, mas residente em Manaus, é uma pessoa trans não binária, indígena, neta de duas gerações de mulheres indígenas, “de cujas histórias aprendeu muito sobre a biodiversidade da mata e sobre os seres encantados que nela habitam”12. Conhecimentos que a levaram a formar-se em Biologia, graduar-se em Antropologia e a criar a drag queen Uýra, uma entidade híbrida amazónica, a partir da qual desenvolve performances artísticas e ações de formação sobre preservação ambiental e arte nas comunidades ribeirinhas.

Foto de Keila Serruya. Uýra, uma entidade híbrida amazónicaFoto de Keila Serruya. Uýra, uma entidade híbrida amazónica

Com as suas instalações e performances fotográficas, Uýra transita por vários territórios, regiões e países. Este ano, esteve presente na 34ªBienal Internacional de Arte de São Paulo com duas séries de fotografias que evocam “seres ancestrais ou futuristas, entre utópicos e apocalípticos, de uma beleza perturbadora”. Trabalhos que servem para denunciar a “floresta ameaçada, o desmatamento, o fogo; a água submersa sobre o lixo que afoga os igarapés; a floresta que engole o corpo e o corpo que se transforma”.13

A propósito do seu trabalho para a Bienal de São Paulo, Emerson fez um depoimento para uma rede social, no qual falou sobre o papel da sua transformação: “Eu viro Uýra, essa árvore que anda, para de alguma forma provar que a encantaria14 ainda está viva, que o sagrado não é lenda. Eu também me movimento para tencionar essa visão colonial, sexista, embranquecida das árvores como corpos inertes. Não somente as árvores mas também os corpos que são dissidentes, os que são simplesmente múltiplos, muito antes de dissidentes, porque quem cria dissidência não é a diversidade. Acho que nessa visão colonial, esses corpos têm menos valor.”

No filme Uýra – A Retomada da Floresta conheceremos mais sobre a existência e resistência LGBTQIA+ no coração da floresta amazônica, sobre a realidade dos corpos transgéneros indígenas - que as imposições culturais católicas se ocuparam de apagar - e, também, sobre os desdobramentos dessa mesma identidade no mundo urbano contemporâneo, na cidade de Manaus, onde Emerson trabalha e vive. Revela-se-nos uma identidade indígena transcultural que resulta de um trânsito por espaços diversos e pelas trocas culturais empreendidas, sem que haja, contudo, a negação dos seus traços ancestrais.

Outros jovens, os realizadores David Ainan, Everlane Moraes e Vinícius Silva apresentaram no Climate Story Lab Amazónia a longa-metragem Imagine 2030, que nos convida a olhar o futuro que se constrói hoje, através da trajetória de pessoas que geram transformações com um efeito positivo e imediato para o Brasil e para o mundo. Filmado em cinco regiões diferentes, entre elas uma amazónica, o documentário constrói a sua narrativa a partir da atividade profissional e do modo de vida de personagens que propõem caminhos alternativos para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, propostos pela ONU, para 2030. Estas pessoas não o fazem com intuito de cumprir essa meta, mas sim por escolhas de vida, nas quais acreditam.

O coletivo de realizadores apresenta-se como “três jovens realizadores negros que desenvolvem, há bastante tempo, filmes de autor com temáticas sociais. Enquanto afirmamos as nossas identidades negras, aprendemos juntos a filmar os <nossos> personagens com todo o respeito que eles merecem. Através das nossas lentes já registamos incontáveis rostos e histórias, com as quais aprendemos não como filmar <outros>, mas como filmarmos a nós mesmos, refletidos nesses <outros> - negros, indígenas, nordestinos, brasileiros, plurais.”

No filme, que estreará nos cinemas em 2022, conheceremos Leonora Maia, empreendedora e extractivista do látex, que resgata o valor da borracha possibilitando a continuidade dessa atividade económica ao mesmo tempo que a floresta se mantém de pé. A Reserva Extrativista Iracema-Cazumbá, no Acre, está localizada numa região amazónica que sofreu efeitos socioambientais de grande impacto provocados pelos dois ciclos de exploração da borracha nas suas florestas. Foi também nesta região que viveu e foi assassinado o seringueiro e ativista ambiental Chico Mendes, cuja luta é ainda uma referência internacional.

Foto de divulgação da longa-metragem Imagine 2030. Dona Nói em CazumbáFoto de divulgação da longa-metragem Imagine 2030. Dona Nói em Cazumbá

Para o coletivo de realizadores, o filme Imagine 2030 surgiu “da imensa necessidade de ver esses corpos diversos representados nos ecrãs de cinema, a partir das suas próprias potencialidades. É aí que começa o nosso filme, quando juntos entendemos que cada pessoa, convertida nesse filme em personagem, na sua labuta pessoal e diária, pode contribuir decisivamente para o bem-estar do coletivo. Nós, juntos aos nossos personagens, já conseguimos visualizar um mundo melhor para o agora. Imagine 2030, como será?”.

Muitos outros, que se dedicam a construir um presente melhor, estavam no Climate Story Lab Amazónia. Alguns deles apresentaram as suas ideias para novas narrativas em formatos não cinematográficos, como a dupla Maytik Avirama e Daniela Fontaine, criadoras do podcast Rádio Savia que trabalha, desde a Colômbia e do México, a divulgação de conhecimentos ancestrais sobre cuidados coletivos partilhados pelas mulheres dos povos originários, com a proposta de curar os corpos e assim curar os territórios. Já as jornalistas Vanessa Teteye e Paola Jinneth Silva do portal de informação Agenda Propia, apresentaram a série Sabedores e Memórias da Amazónia em risco de crise climática e pandémica, projeto de jornalismo que divulga micro-histórias em meios digitais e outros, com o objetivo de registar e divulgar as vozes de sábios indígenas da Amazónia colombiana e equatoriana. 

Os brasileiros Juliana Pesqueira e Allan Gomes, jornalistas do Coletivo Proteja Amazónia - uma organização que trabalha para denunciar as violações de direitos humanos e ambientais na Amazônia - apresentaram um projeto de web série sobre os impactos da construção do Complexo de centrais hidroelétricas no Rio Teles Pires, que atravessa os estados de Mato Grosso e Pará, e que é o rio com mais barragens na bacia amazónica – serão seis no total, quatro delas já em funcionamento. Esta web série procura mostrar quem são os responsáveis deste projeto de destruição, expondo inclusive os seus financiadores, entre os quais está a EDF, empresa pública francesa, que tem uma participação superior a 80% num consórcio que inclui ainda outras empresas. O Rio Teles Pires, segundo a apresentação da web série, “antes conhecido pelas suas cachoeiras e águas verdes, com lugares sagrados para povos indígenas, de exuberante fauna e flora, hoje vê seu percurso tornar-se uma região estéril, com queda na população de peixes e quelónios e grandes extensões de florestas apodrecendo às suas margens. Um rio sob o signo da morte.”

Por saber que esta é a realidade de muitas áreas amazónicas, Txai Suruí pediu na abertura da COP26, o fim das “falsas promessas, das mentiras inúteis e da poluição das palavras vazias” e afirmou taxativamente: “Não é 2030 ou 2050, é agora! Precisamos tomar outro caminho com mudanças globais e corajosas.” Para que essas mudanças sejam efetivas, a ativista reclama que se ouçam os povos indígenas e que estes façam parte da tomada de decisões. Em Manaus, as palavras de Vanda Ortega Witoto, no Climate Story Lab Amazónia, apontaram no mesmo sentido: “está enraizado um modo de pensar muito excludente. As nossas vozes não são escutadas, mas elas têm sido ecoadas há mais de cinco séculos. (…) O futuro que está sendo construído não nos contempla. Eu quero demarcação! Eu preciso de mudanças hoje! Que as mudanças estruturais sejam feitas já! O nosso futuro é agora! Eu quero outras lutas, não quero que estas mesmas lutas continuem no futuro. O futuro, para mim, é angustiante.” 

Daniel Munduruku também sublinhou a ideia do fazer agora. “Costumo sempre lembrar que se o Ocidente tem uma linha de pensamento que corre para a frente, os povos indígenas – e não apenas os do Brasil, mas do mundo inteiro – formam uma linha de pensamento que corre para trás. O para trás aqui não é no sentido de regresso ao que se era antes, mas no sentido de apontamento para o que podemos ser para a frente. Se o Ocidente olha o tempo como presente, passado e futuro, os povos indígenas olham o tempo apenas como passado e presente. O passado servindo como memória, como referência, e o presente servindo como possibilidade de a gente viver esse tempo. O passado serve sempre para nos lembrar quem nós somos, de onde viemos, o que é que a gente faz nesse mundo, e o presente serve para vivermos isso. Portanto, os povos indígenas não desenvolveram uma visão de futuro, não especulam a respeito de um tempo que não possuem, preferem em grande parte vivenciar o único tempo que têm para poderem efetivamente viverem felizes.”

 

 

  • 1. No livro Ideias para o fim do Mundo de Ailton Krenak, lançado pela Companhia das Letras, em 2019.
  • 2. Banzeiro Ókòtó. Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo lançado pela Companhia Das Letras, em novembro de 2021.
  • 3. Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada de 1 de outubro a 12 de novembro de 2021, em Glasgow, Escócia.
  • 4. Elaíze Farias é cofundadora, junto com a jornalista Kátia Abreu, da organização Amazônia Real. Com sede em Manaus, é a primeira agência de jornalismo de investigação, independente, do Norte do Brasil.
  • 5. Os quilombolas são habitantes das comunidades remanescentes dos Quilombos – aldeias que eram centros de resistência criados por homens e mulheres negras que fugiam da sua situação de escravizado. Seringueiros é como são conhecidos os que vivem da extração da borracha das árvores seringueiras; piaçabeiros os que vivem da coleta da fibra da palmeira da piaçava, e peconheiros são os extrativistas de açaí.
  • 6. Conjugação do verbo deletar que vem do verbo inglês “(to) delete”, um anglicismo usado no português do Brasil, no sentido de apagar.
  • 7. Beka Saw refere-se a eles como os brancos ou os ocidentais. Ambos os termos são usados com frequência por indígenas, quando se expressam em língua portuguesa. Não obstante, nas diferentes línguas indígenas existem palavras específicas para denominar os brancos.
  • 8. A demarcação é o reconhecimento dos limites das terras indígenas e garante o direito dos povos indígenas à sua terra.
  • 9. Palmito é o coração das palmeiras, a gema de crescimento, segundo os botânicos. Muito apreciada como alimento, essa parte da palmeira amazónica é alvo de furto.
  • 10. O mercúrio é utilizado na extração clandestina de ouro, sendo depois despejado nos rios da região. Cientistas da Fundação Oswaldo Cruz, instituição nacional de pesquisa e desenvolvimento em ciências biológicas, com apoio da organização ambiental WWF-Brasil, estiveram, em 2019, em três aldeias da TI Sawré Muybu. A equipa realizou exames que detetaram que de cada dez pessoas, seis apresentam níveis de mercúrio no sangue acima do limite considerado seguro pelas agências internacionais.
  • 11. O Parque Indígena do Xingu localiza-se na região nordeste do Estado do Mato Grosso, na parte sul da Amazónia brasileira. É uma vasta reserva com 2.642.003 hectares, criada pelos irmãos Villas-Bôas em 1960. Atualmente vivem no território dezasseis grupos étnicos distintos.
  • 12. A informação consta do trailer do filme Uýra – A Retomada da Floresta.
  • 13. Parte do texto de apresentação do trabalho do artista no site da Bienal de São Paulo. http://34.bienal.org.br/artistas/8298
  • 14. Refere-se aos seres encantados da floresta – espíritos sagrados na cosmogonia indígena que vivem no mundo subaquático ou escondidos nas florestas.

por Anabela Roque
A ler | 21 Dezembro 2021 | Ailton Krenak, Amazónia, América Latina, clima, Filmes que contam, ONU, povos indígenas, the climate story lab