Doc’s Kingdom 2021: de Manuela Serra ao cinema experimental, os movimentos que abrem caminhos
No início deste mês, o documentário e o cinema experimental voltaram a reunir, em Arcos de Valdevez, realizadores, estudiosos, críticos e cinéfilos em mais uma edição do seminário Doc’s Kingdom, uma iniciativa da Apordoc – Associação pelo Documentário - coproduzida pelo Cineclube da cidade minhota. De novo, sob a direção e programação de Nuno Lisboa, responsável pelo seminário desde 2013, o Doc’s Kingdom 2021 teve como programadora convidada Vanja Milena, crítica e pesquisadora chilena, atualmente a residir em Lisboa.
Seguindo as pautas do já clássico evento nova-iorquino Flaherty Film Seminar, o Doc’s Kindgom regressou, depois da interrupção do ano passado, causada pelas restrições impostas pela pandemia, para continuar a expandir a discussão em torno do cinema documental. Este ano, o foco esteve em filmes experimentais, muitos deles gravados e projetados em 16mm, realizados por mulheres cineastas que representam várias gerações e geografias, mas cuja origem é, maioritariamente, a América Latina.[Adriana Vila Guevara é uma cineasta e antropóloga venezuelana que vive atualmente em Barcelona. As suas obras cinematográficas abrangem a materialidade e a imaterialidade do filme, numa combinação de formatos analógico-fotoquímicos e vídeo em filmes/performance e instalações. Elena Duque, espanhola de origem venezuelana, é cineasta, programadora, escritora e professora. Tudo o que faz na vida gira em torno do cinema, como faz questão de sinalizar. O seu trabalho desenvolve-se a partir do analógico, da animação e da colagem, em filmes que revisitam temas como a identidade e o sentido de pertença, através de exercícios plásticos em torno de lugares, objetos e texturas. Helena Estrela, natural do Porto, é uma artista independente que vive e trabalha entre Portugal e Espanha. Atualmente é estudante no programa de Estudos Cinematográficos em Elías Querejeta Zine EsKola, San Sebastian. A sua prática explora as possibilidades da imagem em movimento em várias aproximações às ligações entre o pessoal, natural e o histórico. Jeannette Muñoz vive e trabalha na Suíça e em Santiago do Chile desde 1998. As suas obras centram-se na migração através de um movimento reflexivo que trabalha o impacto da ancestralidade e proveniência no discurso e expressão artística. A distância do Chile e a sua condição de estrangeira infiltram-se no seu trabalho, formando um olhar particular sobre objetos e paisagens quotidianas. Jessica Sarah Rinland, cineasta argentino-britânica, combina elementos do documentário, da narrativa ficcional, das instalações artísticas e de filmes de ensaio. A história natural, a arqueologia, a conservação são temas em foco na sua cinematografia, que engloba ainda questões de género, amizade e comunidade. Maria Rojas Arias, colombiana a viver em Lisboa, é artista visual e cineasta. O seu trabalho retrata realidades relacionadas com eventos específicos do passado do seu país, a partir de materiais de arquivo oficiais e não oficiais. Estes podem ser discursos nacionais, políticas de guerra, colonização de espaços e territórios, entre outros. Naomi Uman, cineasta e artista visual natural dos Estados Unidos, vive e trabalha na Cidade do México. Os seus filmes, que percorrem diferentes geografias, focam-se no trabalho das mulheres e nas inter-relações entre o homem e o mundo natural. Sílvia das Fadas, natural de Coimbra a residir no litoral alentejano, é cineasta, investigadora e educadora. A sua filmografia recusa a digitalização do mundo. Interessa-se pela política intrínseca às práticas cinemáticas e pelo cinema como uma forma de estarmos juntos na inquietação e no desassossego.]
O mote para a programação do Doc’s Kingdom foi o filme O movimento das coisas, a única longa-metragem da realizadora portuguesa Manuela Serra. Produzido entre 1979 e 1985, este filme foi protagonista de um percurso controverso na história do cinema português. Só recentemente, no passado dia 17 de junho, assistimos à sua estreia comercial, com uma cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa, que a exibiu, pela primeira vez, em outubro de 2020, no Festival Lumière, em Lyon.
Foi também num mês de outubro, mas há 36 anos, que Manuela Serra estreou o seu filme num festival, o de Mannheim, na Alemanha, onde recebeu o prémio FilmduKaten, um reconhecimento ao qual se seguiu o Prémio Agfa no 1º Festróia, Festival Internacional de Cinema de Tróia, do mesmo ano. Apesar do reconhecimento internacional, O movimento das coisas não teve, na época, estreia nas salas de cinema e a realizadora não conseguiu, depois disso, voltar a filmar. As adversidades que teve de enfrentar, nos anos seguintes, fizeram com que Manuela Serra “perdesse o gosto pelo cinema”. Afastou-se, seguiu outros caminhos. Nos últimos meses, a polémica em torno da sua trajetória tem sido amplamente abordada. Saltando os detalhes dessa polémica, mas mantendo-a como referência, voltamos ao Doc’s Kingdom.
Para a edição deste ano foram convocadas, segundo a programadora, Vanja Milena, “cineastas que trabalham a partir do analógico, do micro, do gestual, do artesanal, do que é sensível e frágil, como uma forma de luta micropolítica, através da qual defendem o seu direito a existir e a viver como cineastas, seguindo a premissa exposta por Suely Rolnik no seu livro Esferas da Insurreição — Notas para uma vida não chulada.”
A evocação de práticas ativistas remete-nos para as motivações que levaram Manuela Serra a realizar O movimento das coisas, nos finais dos anos 70, num meio cinematográfico adverso ao protagonismo feminino. Segundo Manuela Serra, “a primeira ideia [para o título] do filme era Mulheres. Na época falava-se e escrevia-se muito sobre o tema, li bastante e contactei com diversas mulheres, algumas ligadas a movimentos de libertação feminina.”1 Depois o foco mudou, mas a sua intenção continuou a ser a de “pôr as mulheres em primeiro plano, assim como de nos dar [uma oportunidade], a nós próprias, autoras [inicialmente houve uma corealizadora] deste filme, o direito de existirmos como cineastas”.2
Na mesma época, a inglesa Laura Mulvey, uma das principais impulsionadoras da teoria feminista do cinema, publicava na revista Screen, em 1975, o texto “Prazer visual e cinema narrativo”, referência fundamental para a discussão da relação entre o feminismo e o cinema, onde se inclui a problemática em torno da ausência das mulheres na criação da arte. Escrevia então: “Amplamente excluídas das tradições criativas, submetidas à ideologia patriarcal dentro da literatura, artes populares e representações visuais, as mulheres tiveram que formular uma oposição ao sexismo cultural e descobrir meios de expressão que quebrassem com uma arte que tinha dependido, para a sua existência, de um conceito exclusivamente masculino de criatividade.”
Laura Mulvey já apontava, então, o caminho da experimentação das vanguardas artísticas como território de resistência à discriminação de género e como espaço alternativo às dinâmicas produtivas do modelo hegemónico. É neste mesmo campo que se inserem as obras apresentadas no Doc’s Kingdom 2021. Como referiu Manuela Serra em conversa com o BUALA, “os filmes exibidos mostram uma forma das mulheres se manterem dentro [do cinema]. Elas entram nas problemáticas e é por aí que se afirmam e não a partir de uma rede de conexões e de poderes”.
O BUALA procurou saber, junto de algumas das cineastas que exibiram os seus filmes em Arcos de Valdevez, quais as suas estratégias para se realizarem no cinema? Se é ainda um desafio afirmar-se como mulher cineasta? Se sentiram que esta problemática foi suficientemente abordada no seminário?
María Rojas Arias: _“Como disse Manuela, durante o seminário, quando lhe foi feita uma pergunta semelhante, sinto que são tempos e, claro, contextos muito diferentes, dos quais temos que discutir a singularidade do devir do cinema. O meu sentimento foi de que, durante o seminário, houve uma tendência para falar do CINEMA em letras maiúsculas, de uma forma muito geral, sempre em relação às grandes Histórias. Senti falta de aprofundar as singularidades das obras, que são inclusive mais importantes do que a discussão de um cinema feito por mulheres; refiro-me a pensar os gestos e os detalhes, que nos permitem gerar pensamento e mobilizar micropolíticas. É uma tendência generalizada, a de querer refugiar-se nas grandes histórias. Como sabemos, muitas delas são narradas por figuras patriarcais.”
Elena Duque: _“No meu caso, faço filmes tão marginais, pequenos e independentes que ainda não me confrontei com isso [os desafios para se afirmar como mulher cineasta]. No entanto, através do meu modo de fazer cinema experimental, confronto uma forma de fazer cinema que, para mim, é autoritária e hierárquica: a das grandes equipas de produção. Talvez isto se deva, em parte, a uma certa insegurança que a minha educação, como mulher, gerou em mim. Custa-me afirmar o que penso como verdade incontestável e a exercer o poder, duas coisas que muitos homens fazem de um modo muito natural, neste meio.”
Naomi Uman: _“Sinto-me respeitada e reconhecida como cineasta. O meu trabalho brota da minha própria feminilidade e feminismo, mas tenho visto que os homens - que trabalham em cinema experimental, como eu - são mais procurados, têm mais convites, ganham mais bolsas e exigem melhores honorários, pelo simples fato de serem homens e se comportarem com autoridade.”
Jeannette Muñoz: _“Esta luta persiste, mas não se limita a uma perspetiva binária. As diferenças entre certos países são abismais, mas já há muitas mulheres cineastas empoderadas e esse número vai continuar a crescer, não creio que possa ser travado. A realidade de 1978 é atual em muitos lugares. Penso que é uma questão muito complexa, que não foi discutida, politicamente, no seminário. Foi abordada através da apresentação de um programa inteiramente composto por realizadoras, mas penso que poderia ser alargada para incluir visões que escapam a essa dialética binária de macho-fêmea.”
E se pensarmos especificamente em Portugal, em que ponto nos encontramos? Quase quatro décadas depois de O movimento das coisas, “continuamos no mesmo país onde a Manuela Serra não pôde voltar a filmar”. Uma constatação da realizadora Inês Sapeta Dias, na correspondência mantida com Sílvia das Fadas, cineasta que participou no programa do Doc’s Kingdom 2021. No mesmo texto, Inês Sapeta Dias completa “Apercebi-me que não sou, claro, a única a sentir falta de espaço e que há muitas pessoas que não estão a filmar por causa disso – todas as mulheres, as que conheço, é curioso e triste.” Na sua resposta, Sílvia das Fadas partilha o mesmo desconforto e descontentamento: “Para mim, é claro que as estruturas de apoios financeiros ao cinema em Portugal não incluem outros modos de fazer cinema, como o meu (o nosso?), em película, com vagar, com menos dinheiro, livre de guiões, grandes equipas de filmagem, produtoras, projetos e pacotes…o que é preciso para fazer cinema? Muito menos do que nos querem fazer crer, e muito mais em outros sentidos que não cabem em lógicas de comerciante.”3
A questão levantada pela realizadora Sílvia das Fadas impele-nos a refletir sobre as condições de produção do cinema experimental, centrando-nos especificamente nos filmes que convidam à perceção do cinema a partir do analógico, que recorrem a ferramentas tidas como obsoletas: a película, câmaras e projetores antigos. Obras de singularidade criativa que, muitas vezes, surgem a partir de uma precariedade produtiva, mas que cativam também pelo seu modo de execução e de exibição.
Desafiamos as realizadoras, que participaram no diálogo com o BUALA, a revelarem-nos mais sobre os seus procedimentos de criação, à margem de categorias ou de correntes dominantes.
Jeannette Muñoz: _“O nosso trabalho é corajoso. Propor a nossa própria visão e estética é mais difícil do que seguir os cânones estabelecidos. Pensar e refletir sobre o cinema, movimentar-me através dele como se fosse um mar de possibilidades, é para mim a atividade mais importante. Gosto muito de pensar sobre quais são os seus limites, até onde podemos ir sem perder a comunicação com o público, porque também é importante para mim, que este encontre uma ponte para o que eu faço. As pontes são sempre diversas e dependem de cada pessoa e da sua própria experiência. Isso é fascinante. Mas faltam oportunidades, porque os espaços públicos do cinema estão monopolizados.”
Elena Duque: _“Trabalho a partir de uma posição de pobreza de meios, porque o que faço é pequeno e pessoal, mas não esqueço a sorte de ter muitas coisas à minha disposição, que facilitam a realização dos meus filmes. Afinal de contas, é uma precariedade privilegiada. E sim, para mim, a precariedade tem sido um terreno de invenção e liberdade. Acredito cada vez menos nos cânones, que ainda são estruturas rígidas, e penso que qualquer coisa que ajude a ver como são relativos é terreno fértil.”
Naomi Uman: _“Sim [a precariedade um território de criação e invenção]. No meu caso, ao colocar-me numa situação que não controlo ou em contacto com uma cultura que desconheço, endosso ao meu sujeito-fílmico/personagem uma posição de mestre ou de dono do conhecimento. Isto faz dele uma espécie de cúmplice, que o leva a abrir-me portas e mostrar-me o seu mundo. Não chego com autoridade, reconheço que a minha presença muda tudo, por isso, procuro revelar-me também ao outro, sem ocultar o meu desconhecimento, de forma a tirar partido do processo de aprendizagem.”
María Rojas Arias:_ “Não me identifico com a ideia de que a precariedade seja a condição geral da criatividade, nem que faço um cinema precário, mas, sim, um cinema que tem uma razão para existir, que é urgente, que não hesita, que não é pobre e que, pelo contrário, tem uma posição radical na forma como é feito e no que contém. Na La Vulcanizadora - a minha equipa de trabalho - não procuramos rastrear a origem do cinema, mas sim o seu destino, para aonde vai e, para isso, utilizamos as ferramentas e materiais que existem para que isso aconteça. Na Colômbia, graças ao documentário [como género], abriram-se possibilidades de financiamento e exibição a formas diferentes de produção e realização de filmes, aceitando metodologias de experimentação no processo e no trabalho final.”
A convergência dos movimentos.
Os quatro dias dedicados, este ano, ao cinema experimental, em Arcos de Valdevez, ofereceram-nos uma panorâmica de diferentes práticas e realidades, vindas de distintas geografias, resultado de deslocamentos ou da diáspora individual das suas autoras. Este cruzamento de culturas foi ampliado pelos debates que juntaram participantes de vários países e continentes.
De filme em filme, foi-se construindo o puzzle das convergências possíveis com O movimento das coisas, que também era o título do seminário. Manuela Serra, que esteve presente durante todo o seminário, atenta às projeções e presente nos debates, manifestou uma grande satisfação ao ver o trabalho das cineastas convidadas. Destes, Manuela Serra destacou “o recurso ao formato em 16mm um modo de construir uma nova linguagem, onde está incluído o silêncio - ressaltando a sua importância - o que permite que a sensibilidade venha ao de cima. Temos que nos entender pela sensibilidade e não pela imposição da palavra.”
Algumas das realizadoras conversaram com o BUALA sobre as conexões estabelecidas, tanto nos filmes como nos debates, com a obra de Manuela Serra:
Naomi Uman: _“Achei as conexões que foram geradas entre o filme de Serra e as sessões programadas muito interessantes. Claro que cada um percebeu essas relações de maneiras diferentes. No meu caso, destaco a visão do fragmentário, que privilegia o silêncio.”
Elena Duque: _“Pessoalmente, foi muito estimulante ver os filmes que não conhecia e descobrir, pouco a pouco, as ligações entre eles e O movimento das coisas: o amor ao pormenor, o trabalho manual, a natureza fragmentária dos filmes, a presença do silêncio, o trabalho com um pequeno orçamento e, em geral, o que está por detrás de um cinema que não afirma verdades, mas abre portas.”
Jeannete Muñoz: _“Penso que há sempre um diálogo, mesmo que os filmes não falem da mesma coisa. Mas neste caso, havia alguns pontos comuns que eu gostaria de mencionar: a memória, o silêncio, o fragmento, os arquivos e a documentação. Também o material do filme e o facto de trabalharem com orçamentos pequenos. Poderia ter havido muito mais diálogo sobre estes temas. Embora seja difícil controlar para aonde vai uma discussão, é necessário retomá-la - para que esta não se limite a discussões de gostos ou preferências pessoais - e aprofundar no que cada cineasta poderia contribuir. Porque é isso que enriquece um diálogo. E cada um tinha algo a dizer sobre a sua visão pessoal e as suas escolhas cinematográficas.”
María Rojas Arias: _“Há uma série de imagens que permanecem comigo por ter visto as várias sessões que faziam parte da programação do seminário e, também, por fazer parte dele. Houve um encontro dos microgestos que mobilizam as grandes conversas, que mobilizam a vida. Para mim, este seminário reuniu olhares que se centram em aspetos aparentemente pequenos, mas que se relacionam com marcos históricos, traçando e propondo perguntas, pensando e investigando a partir do conhecimento do cinema, com as ferramentas que o cinema que fazemos nos oferece - no meu caso, um cinema de urgência, um cinema de insurreição micropolítica.”
Tendo como referência o filme de Manuela Serra e o seu olhar sobre a comunidade rural de Lanheses, que se situa a pouco mais de 30km de Arcos de Valdevez, trouxe-se para a programação do Doc’s Kingdom uma multiplicidade de olhares sobres outras comunidades e culturas. Naomi Uman exibiu Unnamed Film (2008/16mm) gravado numa pequena aldeia de Legedzine, Ucrânia, onde a realizadora procurou as suas raízes familiares. Tal como Serra, Uman viveu durante uma temporada na aldeia, onde filmou os rituais quotidianos protagonizados, sobretudo, pelas mulheres anciãs. Filmado em 16mm, com som não sincronizado, a narrativa constrói-se a partir de fragmentos sonoros e uma sucessão de imagens intercaladas por legendas, como um filme mudo.
A imersão em comunidades desconhecidas e o foco no papel da mulher são frequentes no cinema de Naomi Uman, no cruzamento entre a etnografia, o retrato dos seus personagens e o autorretrato. Uman trabalha, por opção, sob vulnerabilidade, arrisca-se em solitário e opera recursos mínimos, uma postura da qual resulta uma inversão de hierarquias dentro do processo de criação, que oferece espaço para que as suas personagens se aproximem. Na entrevista a Ilda Teresa de Castro, Manuela Serra descrevia um processo semelhante: “Na prática ir para o local, anulava-me, imbuía-me do que me rodeava e daí retirava o que me interessava para fazer passar a minha ideia.”
Entre os trabalhos que Jannette Muñoz exibiu no seminário, também vimos um filme centrado numa comunidade da costa central do Chile, o seu país de origem. Puchuncaví é um projeto contínuo, no qual Muñoz trabalha desde 2014 sem procurar a sua finalização. Gradualmente, vai acrescentando ao filme novos fragmentos e camadas. A sua câmara aponta tanto para as zonas rurais, como para áreas industriais - as fábricas, refinarias de cobre, o porto de embarque - passando pelas praias da zona costeira, onde se detém a olhar as ondas. Fragmento a fragmento, encontramos o entrelaçar de questões sociais, políticas e ecológicas com ressonância universal.
A dinâmica encontrada nesta comunidade chilena dos dias de hoje, rodeada por indústrias e urbanidade, dialoga com a transformação que Manuela Serra observou na aldeia de Lanheses de finais dos anos 70, onde o equilíbrio do mundo rural se via ameaçado pelo avanço industrial. Um confronto representado no plano da fábrica, que fecha a versão restaurada de O movimento das coisas e que a realizadora cortou da versão original. “Retirei-o porque me disseram que dava uma visão muito pessimista e retrógrada” disse a realizadora, há uns anos atrás4, mas atualmente, não hesitou em voltar a incluir o plano no filme.
Luz, clarão, fulgor - augúrios para um enquadramento não-hierárquico e venturoso, de Sílvia das Fadas, iniciado em 2018, é também um filme que está em construção contínua, “em metamorfose” como é apresentado pela realizadora que o filma, monta e mostra constantemente, sempre em formato de 16 mm. O seu trabalho reúne momentos distintos das suas deambulações pelo território alentejano, durante as quais vai misturando fragmentos da história do anarquismo - das Comuna da Luz (Odemira, 1917-18) e Comuna Clarão (Albarraque, 1926), com realidades atuais, como a ameaça das monoculturas ao meio-ambiente e ao equilíbrio das comunidades rurais.
No filme Abrir o Monte (16mm/2021), Maria Rojas Arias também retrocede aos finais da década de 20, do século passado, numa província do sudoeste da Colômbia, para falar de um grupo de sapateiros que planeou uma revolução radical, com a finalidade de mudar as relações de classe e propriedade no país. Os “Bolsheviques do Líbano Tolima”, como ficaram conhecidos, levaram a cabo uma tentativa de revolução que durou apenas um dia, o de 19 de julho de 1929. Trata-se de um movimento do qual não há registos, mas sim relatos que chegaram até aos dias de hoje, alguns dos quais, a realizadora recolheu na aldeia onde viveu a sua avó materna.
No filme “há três espaços temporais: a revolução de um dia, o da guerrilha (a primeira da América Latina) e o do tempo da minha avó, que surge através da sua voz”, como destacou a realizadora no debate sobre o filme. Rojas reelaborou as imagens do passado, articulou-as com a realidade dos dias de hoje e com as contingências de conviver com a violência ainda vigente: “A minha família dizia-me para não falar do assunto se queria continuar no lugar onde vivo e seguir viva. Estou em risco e a minha família também.”
Apesar das advertências, Maria Rojas fez questão de sublinhar que contar esta história era inevitável. “Estamos acostumados à História contada por Outros realizadores. A vontade das minorias começarem a falar é muito forte, sentem que este é o momento de falar numa perspetiva própria. Essa mudança de perspetiva é fundamental. No caso da América Latina, sinto-me parte de uma geração de jovens que querem abraçar as histórias que não nos quiseram contar, construindo outros mundos possíveis, que não ignoram o território e o seu contexto. Na Colômbia, sinto que representamos uma força poderosa, são mulheres e homens que não têm medo de trabalhar à sua maneira, mesmo que nos queiram censurar.”
Precisamente por conhecer essa força poderosa, Vanja Milena elaborou um programa para o Doc’s Kingdom 2021, no qual a América Latina surge como geografia de convergência, a transcender fronteiras físicas e artísticas, onde realizadoras de diferentes gerações testam as suas capacidades e as do seu cinema, para abrir novos espaços de afirmação pessoal e coletiva. Foi um caminho semelhante, aquele que a realizadora portuguesa, homenageada nesta edição do seminário, procurou trilhar desde os finais dos anos 70 até inícios dos anos 90, altura em que desistiu do cinema. Manuela Serra não pensa voltar a filmar, mas o seu filme está aí, a circular pelas salas de cinema, cineclubes e eventos cinematográficos, ativando o debate de questões urgentes e atuais.
Os filmes que contam
Ler também no BUALA o artigo de Maria do Carmo Piçarra, 2021, sobre O Movimento das Coisas.
- 1. Em entrevista a Manuel Mozos, no jornal dos Encontros Cinematográficos 2011.
- 2. No catálogo do Doc’s Kingdom 2021, onde se reproduzem as declarações de um debate com o realizador Rui Simões, publicado na revista A Ideia, em 1978.
- 3. Uma Correspondência, texto que faz parte do catálogo do Doc’s Kingdom 2021, foi publicado originalmente no livro Encontros Cinematográficos editado pelo Jornal do Fundão e a The Stone and The Plot, em 2020. pp. 298-302.
- 4. Em entrevista a Ilda Teresa de Castro. À volta d’O Movimento das Coisas. Conversa com Manuela Serra, 2000-2012.