"Antônio & Piti", a ação e recriação de um amor amazónico
A Mostra Origens - Práticas e Tradições no Cinema, programa concebido pelo Festival DocLisboa com o apoio da Fundação Inatel, apresenta no Cinema Ideal, um conjunto filmes1 que trazem olhares diversos “sobre as várias faces do Património Imaterial da Humanidade, através da diversidade geográfica, cultural e de linguagens.” Seis dos filmes que a compõem estarão em competição para o prémio Fundação INATEL para Melhor Filme de temática associada a práticas e tradições culturais e ao Património Imaterial da Humanidade2. Fora de competição, será exibido na sessão de encerramento, dia 2 de junho, o filme brasileiro Antônio & Piti (2019), de Vincent Carelli e Wewito Piyãko3.
Antônio & Piti narra a história recente do povo indígena ashaninka4 da aldeia Apiwtxa, na Amazónia brasileira, a partir de um raro casamento entre um homem indígena e uma mulher não-indígena que aconteceu, nos anos 70, à revelia de preconceitos, obstáculos culturais, crenças indígenas ancestrais e ambições predatórias de extractivistas.
A partir das lembranças pessoais dos protagonistas, o filme percorre a memória coletiva da comunidade ashaninka, dos seus familiares brancos e das populações vizinhas, com quem compartem território numa zona de fronteira entre o Brasil e o Peru. Ao longo da narrativa, percebemos o modo como lidam com os eventos mais sombrios da sua história e como estes instigam novas reorganizações para a desconstrução do passado opressor.
Antes de nos adentramos no que o filme tem para contar, vale a pena apresentar a dupla de realizadores. Vicent Carelli, cineasta, antropólogo, indigenista franco-brasileiro trabalha, há mais de três décadas, como realizador de documentários e professor de cinema no projeto Vídeo nas Aldeias, que criou em 1987, para levar formação audiovisual às comunidades indígenas brasileiras5. Formação da qual foi aluno Wewito Piyãko, realizador indígena, que partilha a realização de Antônio & Piti.
Através das ações de formação do projeto Vídeo nas Aldeias, várias gerações aprenderam a manipular as ferramentas da produção audiovisual. Os novos cineastas ameríndios passaram a partilhar um poder tradicionalmente controlado por não-indígenas, o que tem permitido afirmar outro olhar sobre o seu universo, fortalecer as suas identidades e o seu património cultural, assim como reforçar militâncias e resistências.
Também integrada neste projeto, a produção cinematográfica de Carelli reúne mais de 30 filmes - curtas, médias, longas-metragens - e inclusive séries de TV, com foco no universo ameríndio ou ambiental, muitos deles realizados em parceria com cineastas indígenas. Entre as longas-metragens realizadas, estão as premiadas Corumbiara (2009) e Martírio (2016). A sua obra mais recente trata-se da curta-metragem Yãokwa Imagem e Memória (2020) co-realizada com Rita Carelli, atriz e realizadora.
Além de realizador, Wewito Piyãko da etnia ashaninka, é ativista, artista plástico e professor. A sua primeira curta-metragem No tempo das chuvas (2000) foi resultado de uma parceria com o seu irmão Isaac Pinhanta, igualmente formado no projeto Vídeo nas Aldeias. Wewito Piyãko co-realizou ainda com o seu irmão A Gente luta, mas come fruta (2006). A sua cinematografia inclui também as curtas Shomõtsi (2001), que foi o seu primeiro trabalho realizado, e No tempo do verão (2013). Todos estes filmes abordam temas relacionados com a sua família ou comunidade.
Os irmãos Wewito Piyãko e Isaac Pinhanta são dois dos oito filhos de Antônio e Piti (Francisca Oliveira da Silva). Neles, como nos seus irmãos, a mistura genética e cultural aprimorou-lhes o sentido de pertencimento ao seu povo e território. Com uma tradição familiar riquíssima, a nova geração da família Piyãko dedica-se a dar continuidade às lutas protagonizadas pelos seus pais e seus ancestrais, em defesa não só dos ashaninka, mas também do meio ambiente - da floresta, dos rios, da sua fauna e flora.
Os antepassados de Antônio estavam entre os pequenos grupos familiares que migraram do Peru para o Brasil e se instalaram, progressivamente, na região fronteiriça do Alto-Juruá, no final do século XIX e inícios do século XX. Estes grupos fugiam da exploração dos seus territórios pelos comerciantes do caucho, que derrubaram as suas árvores e ocupavam as suas terras6.
A exploração caucheira na Amazónia peruana está associada a grandes patrões que foram figuras sanguinárias, entre os quais está o famoso Carlos Fitzcarraldo, Rei do caucho, que conseguiu dominar vários grupos ashaninka, promovendo disputas interétnicas que romperam a proibição de guerras internas7. No filme Antônio & Piti, podemos, inclusive, ver uma das cenas do filme Fitzcarraldo (1982) de Werner Herzog.
A existência deste povo originário remonta há pelo menos cinco mil anos. Na Selva Central peruana, os ashaninka lutaram, durante séculos, contra o expansionismo do Império Inca e depois contra os colonizadores espanhóis e as suas missões evangelizadoras, primeiro dos jesuítas e, depois, dos franciscanos, que devastaram populações indígenas pela doença e pelas práticas de apagamento de tradições. Já no século XX, sofreram intimidações das guerrilhas peruanas (Movimento Revolucionário Tupac Amaru e Sendero Luminoso) que também invadiram o seu território.
Este histórico de lutas é fundamental para entender o lugar atribuído pelos ashaninka aos não-indígenas. No seu Cosmos, os ashaninka são idealmente associados ao Bem, e o branco mantém laços estreitos com os espíritos maléficos e com as forças do mal. Uma visão cosmológica que torna ainda mais inusitado o casamento entre Piti e Antônio, embora uniões entre brancos e índias (não entre brancas e índios) fossem, durante muito tempo, promovidos como uma política de Estado no Brasil, para que a miscigenação levasse à extinção indígena e justificasse a expulsão das populações das suas terras com o argumento que não eram indígenas, mas sim mestiços.
Na época do casamento de Antônio e Piti, algumas destas ameaças perduravam ou se atualizaram. Nos anos 80, intensificou-se a luta contra a exploração da madeira por forasteiros brancos. Impôs-se, então, a necessidade de demarcar8 o território ashaninka para defender a floresta. Piti, que era única que sabia ler na comunidade, tomou a linha da frente nessa luta, o que a tornou um alvo dos madeireiros e seringueiros, tendo recebido várias ameaças de morte dirigidas a ela e aos seus filhos. A demarcação foi conseguida e acabou por produzir uma transformação na organização social e política dos ashaninka. As famílias dispersas pelas margens do rio puderam finalmente reunir-se num território que os não-indígenas foram forçados a abandonar, alguns deles familiares de Piti.
Piti pertencia a uma família de seringueiros. O seu pai, Chico Coló, era um soldado da borracha, denominação que Estado brasileiro dava aos que recrutava para a exploração seringueira durante a Primeira Guerra Mundial. Esta denominação resultava do fato de que o trabalhador recrutado ficava isento da obrigação de se alistar no exército, serviria a Guerra noutra frente. A história da exploração das riquezas da região é abordada no filme pelo testemunho de Chico Coló, numa gravação feita pelo seu neto Isaac, durante a sua formação no âmbito do Vídeo nas Aldeias. O ancião não só fala da campanha seringueira, como de outras vagas predatórias como a da madeira e a da caça.
Com um forte sentido de justiça, Piti e Antônio criaram uma família que vem tecendo a coexistência entre indígenas e não-indígenas através de uma articulação política que ultrapassa o âmbito da sua comunidade. Procuram trabalhar em conjunto, sabem que não é suficiente preservar o seu território se a depredação segue nas terras vizinhas. Um dos irmãos Piyãko, Benki, ocupa-se da reflorestação das terras da comunidade num projeto agroflorestal. Numa das falas mais emblemáticas do filme, Benki diz que espera que “nessa recuperação não só seja restaurada a terra, mas também a consciência do ser humano que destrói tudo.”
Este projeto é parte do legado do casal Piyãko que converteu preconceitos, abusos e ameaças numa resistência poderosa. E, embora seja visível o envolvimento de toda a família nessa trajetória, é notável a coragem matriarcal da – atualmente – Dona Piti, num mundo cujas lideranças são tradicionalmente masculinas.
Durante anos, Piti recusou-se a falar da sua história e evitava a câmara. Vicent Carelli conseguiu que aceitasse, depois de um longo período de relacionamento com a comunidade, desenvolvido nas suas várias visitas à aldeia. As primeiras ações de formação que realizou com os ashaninka aconteceram nos anos 80 e desde então o realizador foi estabelecendo uma relação de confiança com a família Piyãko. A construção do documentário resultou assim de um processo longo, o que lhe reveste de um significado especial.
Carelli trabalhou para o filme durante oito anos. Um dos momentos cruciais para a definição da narrativa foi a localização da cassete com a entrevista a Chico Coló. Essa gravação tornou-se o dispositivo - um recurso facilitador para chegar na família não-indígena de Piti e agregar outras perspetivas à história. A reutilização imagética de gravações, em bruto ou finalizadas, é um recurso frequente nos filmes do realizador, precisamente porque grande parte destes são realizados ao longo de anos, o que permite que essa passagem temporal interfira no processo de realização e na narrativa9.
Este tipo de elaboração é em grande parte viabilizada pelo trabalho desenvolvido no âmbito do projeto Vídeo nas Aldeias. A abrangência destas ações atua em vários sentidos: não só permite pensar o universo indígena através da sua auto-representação, como igualmente promove uma inversão do olhar que nos oferece a possibilidade de percebermos como, nós, brancos, somos vistos na perspetiva ameríndia. Coloca-nos ao espelho e mostra-nos o que muitas vezes evitamos ver. Confrontados com essa perspetiva, seria importante dedicarmos-lhe tempo e atenção.
- 1. A programação está disponível em https://doclisboa.org/2020/
- 2. O vencedor será anunciado na sessão de encerramento do dia 2 de junho. O júri é composto por José Barahona (realizador), Raquel Ribeiro (jornalista, escritora e professora) e Teresa Vieira (jornalista e crítica de cinema).
- 3. Antônio & Piti estreou, no Brasil, na 10ª edição do Festival Pachamama, no Rio Branco, capital do Estado do Acre. Já foi exibido em vários festivais, entre os quais no Sheffield DocFest 2020, onde fez parte da seleção oficial, e no Festival de Cinema Margaret Mead, realizado pelo Museu Americano de História Natural de Nova York, em outubro de 2019.
- 4. Povo guardião da floresta, os ashaninka habitam na aldeia Apiwtxa, Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, uma das regiões de maior biodiversidade do planeta. O Rio Amônia é um afluente do rio Juruá, no município de Marechal Taumaturgo, no estado do Acre. Os ashaninka são também conhecidos pelo termo Campa ou Kampa e pertencem à família linguística Aruak. Trata-se de um povo originário do Peru, que conta hoje com cerca de oitocentas pessoas afincadas no Brasil, divididas em cinco terras indígenas distintas e descontínuas, todas situadas no estado do Acre. http://apiwtxa.blogspot.com/
- 5. O catálogo dos filmes produzidos no âmbito do projeto está disponível “on demand” em http://videonasaldeias.org.br/loja/
- 6. O impacto ambiental da extração do caucho é mais destruidor, exige a derrubada da árvore e conduz a uma expansão territorial permanente da força de trabalho, à medida que a produção de cada área se esgota. Na exploração seringueira, o trabalhador instala-se no seringal, e para recolher o látex da hévea percorre, diariamente, trilhas na floresta sem necessidade de a derrubar. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ashaninka
- 7. Fitzcarraldo refugiou-se entre os indígenas do Gran Pajonal depois de ser acusado de espionagem ao serviço do Chile e condenado à morte pelas autoridades peruanas. Fitzcarraldo era então considerado pelos ashaninka como o Messias que personificava um espírito amachénka enviado por Pawa (o demiurgo ashaninka).
- 8. A demarcação de terras garante a posse de territórios aos povos indígenas. É de suma importância para a preservação do habitat das comunidades e é uma forma de salvaguardar a fauna e flora dessas áreas, restringindo a sua exploração predatória.
- 9. Baseado na ideia de cinema-processo apresentada por Cláudia Mesquita, professora da UFMG e investigadora de cinema, no debate “Obra em processo ou processo como obra?” in Cinema brasileiro. Anos 2000. Dez questões. http://www.revistacinetica.com.br/anos2000/questao9.php