Quando a Arte se torna declaradamente dinheiro em Veneza

Entre os países que se estreiam este ano em Veneza estarão também os Camarões, cujo pavilhão não poderá passar despercebido por várias razões. A principal é que a República dos Camarões não fará a estreia apenas do seu país, mas também de uma forma de fazer arte, e de conceber o seu mercado, de que se fala há alguns anos, mas que nunca tinha encontrado uma localização tão prestigiosa como a Exposição Internacional de Arte de Veneza: NFTs Art. A arte do Non Fungible Token ou, literalmente, o token não permutável. Um NFT pode ser qualquer tipo de arquivo digital: uma obra de arte, um artigo, uma música. Pode tê-lo, mas não pode tocá-lo. Os artistas de NFTs, para vender as suas obras e manter uma espécie de “propriedade certificada” dela, o que resta da antiga autoria, devem cunhá-la no serviço de criptomoedas, Blockchain, através de uma transação digital que se refere a quem a gerou criando, portanto, um traço imutável de origem. Se uma das três áreas temáticas desta edição da Biennale Arte diz respeito à relação entre indivíduos e tecnologias, existem opiniões conflitantes sobre a arte digital no contexto da NFT e a sua presença em Veneza afetará a sua legitimidade. De acordo com Shavonne Wong, uma fotógrafa de moda de Singapura selecionada pelo pavilhão: “é incrível vê-la aceite em um palco como a Bienal de Veneza”.

A esta questão seguem-se outras como a discutível seleção da/os artistas e a nomeação de um dos curadores que já foi criticado na edição de 2017.

O mito do prestígio e validade da obra de arte, implicitamente ligado à participação na histórica Bienal de Veneza, parece estar em declínio. Ou, pelo menos, parece cada vez mais reduzido a um logotipo que pode ser usado em portfólios pós-Veneza. Certamente o leão duplicará os convites futuros, assim como as cotações de suas próprias obras. No entanto, ele não duplicará automaticamente o seu valor. Mas a capitalização da arte parece ser o objetivo final perseguido pela feira de negociantes de arte de Veneza.

Intitulado “Os tempos da quimera”, o pavilhão, com curadoria de Paul Emmanuel, Loga Mahop e Sandro Orlandi Stagl, estará localizado em dois locais: a Escola Estadual de Arte Michelangelo Guggenheim e o Palazzo Ca ‘Bernardo. A primeira vai receber quatro artistas camaroneses (Francis Nathan Abiamba, Angéle Etoundi Essamba, Justine Gaga e Salifou Lindou) e quatro artistas internacionais (Shay Frisch, Umberto Mariani, Matteo Mezzadri e Jorge R. Pombo). A segunda é a exposição NFT com 20 artistas de vários países. Principalmente Argentina, China, Espanha, Itália, Alemanha, nenhum dos Camarões. Stagl é conhecido por ter curado os controversos pavilhões do Quênia nas edições de 2013 e 2015 da Bienal de Veneza. Em 2013, dois participantes eram do Quênia entre muitos italianos e chineses; em 2015, apenas um entre muitos participantes internacionais (novamente com maioria italiana e chinesa). Em 2015 o pavilhão foi retirado pouco antes do começo da Bienal. A curadoria do pavilhão de Camarões parece repetir o mesmo vício: preferir artistas de outros países aos do país representado. Enquanto em 2015 apenas um era o artista originário do Quênia, em 2022 serão quatro - de 28 - de Camarões. Se o desejo é de ir por além do limite colonialista do estado-nação, talvez não deveria fazê-lo nos pavilhões africanos pela primeira vez em Veneza.

Francis Nathan Abiamba, também conhecido simplesmente como Afran trabalha com escultura e pintura. Começou a estudar arte contemporânea na Academia de Carrara, Bergamo em 2006 e atualmente mora em Itália. Angèle Etoundi Essamba fotógrafa camaronense, estudou em França e formou-se na Photo Academy of Amsterdam, onde mora. Justine Gaga é escultora e videoartista, mora em Bonendale, Cameroon, onde colabora há muitos anos com Goddy Leye na ArtBakery - uma iniciativa fundada em 2002 cuja finalidade é a de promover o desenvolvimento da arte e prática contemporânea, com foco especial na arte multimídia, nos Camarões e na África Central. Salifou Lindou é um artista autodidata que vive em Douala e trabalha com pintura, escultura e vídeo. Em 1988 participou da Bienal Dak’Art e no mesmo ano co-fundou o coletivo de design Kapsiki Circle com outros artistas camaroneses Blaise Bang, Hervé Yamguen, Hervé Youmbi e Jules Wokam.

Comissionado por Armand Abanda Maye, diretor de promoção e desenvolvimento de artes do Ministério de Artes e Cultura de Camarões, o pavilhão não tem financiamento do governo. O projeto será financiado por patrocinadores privados e investidores da Global Crypto Art - DAO, acrônimo da Decentralized Autonomous Organization (Organização Autônoma Descentralizada), uma forma de iniciativa coletiva em ascensão na chamada “web3”, que pode ser definido como um conjunto de infraestruturas descentralizadas da Internet que usam blockchains. O próprio GCA é responsável pela seleção dos artistas presentes na exposição NFT na Cà Bernardo. Os artistas não são obrigados a pagar para participar, mas é ‘sugerido’ eles/as façam uma doação de uma ou duas obras para os patrocinadores iniciais. Para além disto pouco antes do início da Bienal, a GCA vende passes negociáveis​​em seu site por 2,8 ETH (aproximadamente € 8200) que garantem aos proprietários o status de “conselheiros” da iniciativa, prévias VIP para a exposição e outros benefícios exclusivos. Durante a Bienal as obras não serão vendidas, mas os potenciais investidores e colecionadores serão incentivados a comprá-las e colecioná-las antes e depois. Os artistas são livres para comercializar os seus trabalhos.

A Global Crypto Art DAO, que foi formada em dezembro de 2021 por cinco fundadores da comunidade NFT, 15 profissionais de arte contemporânea e cripto-arte e 22 artistas, digamos, tradicionais, planeia continuar o seu trabalho ‘curatorial’ no futuro. A proveniência das obras e a intenção desta exposição NFT torna-se mais questionável quando se nota, por exemplo, que as obras do artista brasileiro selecionado, João Angelini, foram cunhadas pela galeria que o representa e não pelo próprio artista. A Web3 é composta por ‘conteúdo gerado pelo usuário, com autoridade gerada pelo usuário’, neste caso os/as artistas. A melhor prática neste campo exigiria, portanto, que uma obra de um artista vivo - como Angelini - fosse criada pelo artista e não através de uma reprodução, ainda que acordada, da obra pela galeria.

por Laura Burocco
A ler | 22 Abril 2022 | arte, Bienal de Veneza, cultura, NFTs, veneza, web3