Claudia Andujar, yanomami e uma arte ancestral

Enquanto  desde há umas semanas a media divulga closes e corpos nus de índios yanomami desnutridos, cobrindo os seus rostos, no máximo quando se trata de crianças, uma série de impressionantes eventos culturais parecem querer reivindicar o direito à vida e à beleza dos povos indígenas, contrastando - ou respondendo a - esse horror.

A exposição The Yanomami Struggle, dedicada à colaboração e amizade entre a artista e a ativista Claudia Andujar e o povo yanomami, foi inaugurada no dia 3 de fevereiro no The Sheed em Nova Iorque. Dando  continuidade a outra exposição, Claudia Andujar: la lotta Yanomami, co-produzida pelo Instituto Moreira Salles de São Paulo e a Fondation Cartier pour l’art contemporain de Paris, que circulara na Europa entre final de 2020 e o primeiro semestre de 2021. A então turno (de Paris a Milão, a Londres, Barcelona, terminando na Suíça) foi marcada por fechamentos contínuos devido à pandemia. A programação institucional artística não conseguiu organizar-se de modo a evitar o desperdício dos vultosos recursos das instalações. Nem quando se trata de falar de cosmologias indígenas, sustentabilidade, outras formas de vida e de entender o tempo.

Claudia Andujar, Catrimani RegionClaudia Andujar, Catrimani RegionClaudia Andujar, A guest decorated with down feathersClaudia Andujar, A guest decorated with down feathers

Ambas as exposições têm curadoria de Thyago Noguera, chefe do departamento de fotografia do Instituto Moreira Salles, em São Paulo. The Yanomami Struggle expõe ao lado das fotos de Claudia Andujar, mais de 80 desenhos e pinturas de artistas yanomami de diferentes gerações: André Taniki, Ehuana Yaira, Joseca Mokahesi, Orlando Nakɨ uxima, Poraco Hɨko, Sheroanawe Hakihiiwe e Vital Warasi. Haverá também trabalhos em vídeo dos cineastas Yanomami Aida Harika, Edmar Tokorino, Morzaniel Ɨramari e Roseane Yariana. Se a intenção é dar visibilidade à luta indígena pela proteção de sua terra, de seu povo e de sua cultura, a inauguração da mostra coincidiu com um momento particularmente delicado para o povo yanomami. As imagens que circulam nos dias de hoje não são fruto de algo desconhecido. Há anos, a campanha Fora Garimpo Fora Covid, e uma série de relatórios produzidos por diversas associações, como Hutukara Associação Yanomami e Instituto Socioambiental, denunciam a situação desesperante a que os yanomami estão submetidos devido à grande riqueza de recursos nas suas terras.

Porém, o diálogo estabelecido entre as fotografias de Andujar e as obras dos artistas yanomami oferece uma visão inédita da cultura, sociedade e arte visual yanomami ao evidenciar, não apenas as tragédias que acompanham as histórias desse povo, mas também um património de enorme beleza e sabedoria. Pela voz e orientação do xamã e líder Davi Kopenawa, a exposição narra - de fato - as origens mitológicas dos yanomami e traça um mapa de sua cosmovisão, política e organização social. A exposição inclui uma programação pública de três encontros, intitulados Indigenous Rights, Art and Environmental Justice, durante os quais serão realizadas conversas com artistas e ativistas traduzidas para o inglês e yanomami. Também estão incluídas nesta história multifacetada contribuições de muitas pessoas e organizações, incluindo Hutukara Associação Yanomami, Instituto Socioambiental, antropólogo Bruce Albert e missionário italiano Carlo Zacquini.

Em termos de produção audiovisual, Thuë pihi kuuwi – uma Mulher Pensando é o primeiro filme dirigido e rodado por duas mulheres yanomami, Aida Harika, Roseane Yariana, com Edmar Tokorino. O filme segue uma mulher yanomami que observa um xamã preparar yãkoana, comida para espíritos. Baseado na história de uma jovem indígena, oferece um encontro de perspectivas e imaginações, e uma observação feminina de papéis e rituais que, muitas vezes, nem sempre, se restringem aos homens. Os mesmos diretores produziram a curta-metragem Yuri u xëatima thë – A Pesca com Timbó (10’) enquanto Morzaniel Ɨramari dirigiu Mãri hi – A árvore dos sonhos (17’) que conta com a participação de Davi Kopenawa. O olhar de uma jovem sobre o trabalho dos xamãs, a prática da pesca com timbó e o conhecimento dos sonhos são, portanto, os temas desses três novos filmes que inauguram uma nova produção audiovisual Yanomami.

Ehuana Yaira, 'Thuë a paiximuu, uma mulher na floresta adornada com 'folhas de mel'', 2021. Fundação CartierEhuana Yaira, 'Thuë a paiximuu, uma mulher na floresta adornada com 'folhas de mel'', 2021. Fundação CartierO/As realizadore/as fazem parte de um grupo formado em 2018 pela Hutukara Associação Yanomami, com o apoio do Instituto Socioambiental, para capacitar comunicadores e divulgar o trabalho da associação entre os yanomami, outros povos, e não indígenas. A intenção é tornar o povo yanomami e seus saberes mais conhecidos; ampliar a luta pelos direitos dos povos indígenas; mas também promover a circulação do conhecimento ancestral entre jovens e idosos para garantir que este não se perca. Esse elemento de autopreservação torna-se fundamental, principalmente diante da enorme perda de idosos durante os anos da pandemia e de Bolsonaro, mas também seguindo um processo de distanciamento dos jovens de suas comunidades de origem.

Vital Warasi, Urihihamï caminhando (na mata) e dois escorpiões, 1976. Acervo Claudia Andujar.Vital Warasi, Urihihamï caminhando (na mata) e dois escorpiões, 1976. Acervo Claudia Andujar.

A exposição Nhe’ẽ Porã: Memória e Transformação, com curadoria de Daiara Tukano, artista indígena do povo Tukano, ativista, educadora e comunicadora do Museu da Língua Portuguesa de São Paulo, vai na mesma direção, e pode ser visitada de forma virtual e versão gratuita, de qualquer parte do mundo. No Brasil, a abertura da exposição marca o lançamento da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032), instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) e coordenada pela UNESCO. A exposição tem uma lógica circular, não importa onde comece ou termine. Percorrendo todo o espaço, o visitante encontrará um rio de palavras escritas em diferentes línguas indígenas, criando um fluxo que conectará as salas em um loop contínuo. Num dos possíveis pontos de partida da exposição, o visitante depara-se com uma floresta de línguas indígenas que representam dezenas de famílias linguísticas às quais pertencem as 175 línguas faladas hoje pelos povos indígenas no Brasil – cada uma delas veiculando diferentes formas de expressão e compreensão da existência humana.

Desde os anos 2000, uma nova geração de artistas indígenas no Brasil passou a produzir e expor seus trabalhos fora de seu território, estabelecendo um novo olhar que, além de abrir cada vez mais caminhos no mundo das artes, representa um convite - e um presente que nos é dado - para experimentar outras visões de mundo. Se ninguém está nu na floresta, o olhar ocidental muitas vezes continua querendo buscar a nudez, a miséria, a tristeza que quase sempre ele mesmo produz. 

Membros do povo Awá fazendo um ritual na abertura da mostra. Exposição Nhe’ẽ Porã, Memória e Transformação, Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, foto Ciete SilvérioMembros do povo Awá fazendo um ritual na abertura da mostra. Exposição Nhe’ẽ Porã, Memória e Transformação, Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, foto Ciete Silvério

Sala 'Ninho do Japó', exibição de filmes de diretores indígenas, Mostra Nhe’ẽ Porã Memória e Transformação, Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, Foto Ciete SilvérioSala 'Ninho do Japó', exibição de filmes de diretores indígenas, Mostra Nhe’ẽ Porã Memória e Transformação, Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, Foto Ciete Silvério

 

Artigo publicado originalmente Il Manifesto. 

 

por Laura Burocco
Vou lá visitar | 23 Fevereiro 2023 | arte, Cláudia Andujar, fotografias, índigenas, Yanomami