O pavilhão Sami e o encontro Indígena "aabaakwad" ocupam a Bienal de Veneza

A 59ª edição da Exposição Internacional de Arte de Veneza verá o Pavilhão Nórdico (Noruega, Suécia e Finlândia) transformar-se no Pavilhão Sámi como reconhecimento ao movimento de soberania Sami ao qual pertencem os três artistas indígenas Pauliina Feodoroff, Máret Ánne Sara, e Anders Sunna.

O pavilhão abre às 18h do dia 22 de abril no Giardini. Originários do povo Sami, os três artistas vêm da região de Sápmi, comumente intitulada de Lapônia, da qual, com relutância, tomaram o seu nome. O território inclui agora territórios do norte da Noruega, Suécia, Finlândia e a maioria da Península de Kola na Rússia. Desde a sua estreia, em 1962, é a primeira vez que o Pavilhão Nórdico é inteiramente representado por povos originários, confirmando uma participação que se alastra no mundo da arte.

Em 2017, a 57ª edição da Bienal de Veneza, com curadoria da francesa Christine Macel, incluiu ainda um Pavilhão do Xamã. Embora questionável a justaposição entre xamãs e missionários (‘estilo Duchamp’), bem como uma certa obsessão eurocêntrica com a indigenidade representada por uma ‘espiritualidade exorcizante’ (ainda mais da responsabilidade e medo dos outros) foi um espaço de visibilidade.

Na mesma edição, o pavilhão da Nova Zelândia apresentou Lisa Reihana originária do povo Maori. Ainda em Veneza, em 2019 o pavilhão nacional do Canadá apresentou o coletivo Isuma (Zacharias Kunuk, Norman Cohn, Paul Apak, Pauloosie Qulitalik) cujos membros são originários do povo Inuit, também chamados “esquimós” em termos considerados ofensivos.

Não menos interessante é a performance/protesto No tin shack de Richard Bell, artista aborígene que, após entrar na lista dos candidatos do pavilhão australiano da Bienal de 2019 e não ser selecionado, conseguiu trazer o seu projeto para Veneza através de financiamento privado e apoio do Australian Council e Arts Queensland. Por fim, a curadoria da Bienal de Sydney 2020 foi confiada a Brook Andrew, nativo do povo Wiradjuri. É importante fazer circular estes nomes.

O conteúdo político da arte dos três artistas é impactante. Em 2016 Máret Ánne Sara fez uma performance/protesto intitulada Pile o´ Sápmi. A obra apresentava uma montanha de cabeças de renas, visivelmente exposta na entrada dos tribunais em que se discutiu o processo judicial que o povo Sami moveu contra o Estado norueguês. O estado impôs o abate massivo de renas a fim de desapropriar terras onde os Sami e os animais, dos quais depende não apenas boa parte da economia deles, mas também estão envolvidas relações ancestrais, para uso industrial.

Máret Ánne SaraMáret Ánne Sara

Máret Ánne SaraMáret Ánne Sara

A crueza, as cabeças decapitadas manchadas de sangue expostas no gelo de temperaturas árticas, convive com a sensibilidade na representação do nomadismo, e na presença desses animais tanto na luta quanto na definição de uma identidade coletiva que não vê barreiras entre homem, animal e natureza. A representação dos 400 crânios de rena foram então expostos na Documenta14 em 2017 e, num ato bastante contraditório, adquiridos pelo Museu Nacional de Oslo. Paulina Feodoroff é diretora de teatro, guardiã da natureza, e foi presidente do Conselho Saami, uma ONG desde 1956 engajada nas lutas políticas dos Sami. No seu trabalho artístico combina conservação ecológica, teatro e cinema. Anders Sunna entrelaça o seu trabalho com a história pessoal da sua família, e os direitos destes à terra enquanto pastores de renas da floresta. Em 2020 participou da Bienal de Sydney com um trabalho site-specific concebido em conjunto com representantes de povos indígenas locais que criaram um elo entre o projeto colonial do Capitão Cook e as questões abordadas em Sápmi.

Office for Contemporary Art Norway—OCA, comissário do Pavilhão Nórdico, quer lembrar a urgência da situação vivida hoje por muitos Sami – tal como por todos os povos indígenas do mundo - em relação à autodeterminação, desmatamento e governo da terra e da água. O que une o trabalho desses artistas é a experiência coral compartilhada por muitos indígenas no nosso mundo contemporâneo. Nenhum artista aparece como um indivíduo desvinculado da sua identidade coletiva. O Pavilhão torna-se assim um ato de soberania indígena que, ao apresentar terras e gentes de uma região originalmente sem fronteiras, quer simbolicamente derrubar uma história colonial que na sua imposição de Estado-nação quis apagar a terra e a cultura Sami.

Em sinergia com o Sami Pavilion, a edição 2022 do aabaakwad acontecerá em Veneza entre 22 e 25 de abril, um encontro internacional de artistas, curadores e pensadores indígenas que - alternando todos os anos entre Toronto e um espaço internacional - promove uma reflexão sobre arte por aqueles que criam, curam e escrevem sobre ela. Fundado em 2018, o aabaakwad reúne mais de 70 artistas, curadores e pensadores de mais de 39 First Nations e 8 países (entre eles Gerald Vizenor, rea sanders, Vernon Ah Kee, Jeffrey Gibson, Ursula Johnson, Darlene Naponse, Alan Michelson, Brook Andrews, Jolene Rickard, Megan Temati-Quenell e muitos outros). O objetivo é facilitar contactos que permitam iniciar um diálogo informal, acessível e intercultural. Nesse sentido, a iniciativa destaca os desafios associados à complexidade do multilinguismo, tema central do debate sobre a descolonização. Nesse caso, não se trata apenas de considerar o desequilíbrio de poder entre a língua nativa e a língua do colonizador, mas também da dominação da língua inglesa sobre todas as demais línguas impostas (espanhol e português) sobre os povos indígenas da América do Sul, por exemplo.

A edição de 2022 promovida pela Art Gallery of Ontario (AGO), Office of Contemporary Art Norway (OCA) e Canada Council for the Arts apresenta um diálogo entre artistas indígenas e negros que representam os seus países pela primeira vez em Veneza sobre as suas práticas artísticas e sobre o pensamento para além do nacionalismo. O evento começa na sexta-feira, 22 de abril, às 11 horas, no Centro de Congressos Dom Orione, onde se seguirão uma série de apresentações e conversas durante três dias. Estes incluem ‘What is nation?’, promovido pelo Iniva (Instituto de Artes Visuais Internacionais) em colaboração com aabaakwad, com os artistas Sonia Boyce, Zineb Sedira, Alberta Whittle e Stan Douglas. A conversa faz parte do Drift, um pavilhão digital, que faz parte do European Pavilion cuja intenção é questionar a limitação de trabalhar dentro das construções impostas pela nação e nacionalidade.

A noite de abertura de sexta-feira é co-apresentada pela AGO, OCA, o festival Riddu Riddu e o Parlamento Sami no Conservatório de Música Benedetto Marcello, e inclui música e performances. Na mesma noite, os artistas Sami conversarão com seus knowledge keepers, os detentores do conhecimento, Asta M. Balto, Káren EM Utsi e Ande Somby. Entretanto, uma série de leituras e performances continuarão no Centro Don Orione e no Ocean Space até domingo 24, (entre elas aquela de Denilson Baniwa, Rebecca Belmore, Paulina Feodoroff, etc) a edição de 2022 do aabaakwad terminará na segunda-feira, 25, com o programa de tutoria curatorial cuja chamada foi aberta há alguns meses. O programa foi organizado em colaboração com o Indigenous Curatorial Collective e contará com curadores seniores envolvidos no evento, liderando curadores emergentes selecionados da Austrália, Noruega e outros países.

por Laura Burocco
Vou lá visitar | 20 Abril 2022 | anders sunna, cultura, exposição internacional de arte de veneza, Máret Ánne Sara, Pauliina Feodoroff, pavilhão nórdico, povo sami