"O favelado, no fundo, não é visto como alguém que realmente merece viver"

Há anos que não se via, no Rio de Janeiro, uma “operação policial” de tal magnitude e ferocidade. Quem conhece a violência das políticas de segurança e a truculência da polícia carioca, ao receber essa notícia, só pode pensar nas pessoas comuns - os moradores, gente que leva adiante, com grande dignidade e resiliência, o seu cotidiano naquilo que a maioria dos jornais, de modo ignorante, continua chamando de aglomerados de barracos. Se quisermos chamá-los pelo nome correto no Brasil — são, de fato, as favelas (termo já amplamente difundido também pela indústria cultural, talvez a partir do filme Cidade de Deus). Mas o Complexo da Penha e o Complexo do Alemão não são simples favelas. O primeiro é um conjunto de comunidades localizadas dentro do bairro da Penha, uma área popular cuja origem remonta ao século XIX, quando escravizados fugitivos encontraram refúgio na região sob a proteção de um padre abolicionista da Igreja da Penha, de onde vem o nome. O segundo é um bairro da Zona Norte composto por 13 favelas e que abriga cerca de 69.143 habitantes.

Ao ver os números, 128 mortos, deveríamos pensar imediatamente neles, os moradores. Mas não: pensamos nos militares, nos policiais mortos. Estes últimos - e, por um mórbido sensacionalismo, também os traficantes - recebem imediatamente o direito a um nome.
Sem tirar nada da gravidade da perda de uma vida no exercício do trabalho, o fato é que se trata, justamente, de trabalho. Talvez o verdadeiro drama seja outro: muitos desses polícias, que exercem seu ofício com brutalidade - e muitas vezes por necessidade - vivem nas mesmas áreas onde provocam morte, violência e, às vezes, represálias. Em outros momentos, acontece também com eles serem vítimas da mesma violência que a sua chegada a essas áreas, chamadas de “operações”, provoca. Podem morrer em serviço, ou a caminho da padaria, ou enquanto se exercitam na academia. Faz parte.

Enquanto os jornais se apressam em mostrar o quanto foi valiosa e necessária essa operação contra o principal cartel do tráfico de drogas carioca, o histórico Comando Vermelho, ele próprio fonte de inspiração para inúmeros relatos e produções cinematográficas, confirmando a relação perversa que a “cidade maravilhosa” mantém com a violência que a marca e que, com amarga ironia, também a faz ser chamada de Hell de Janeiro — os moradores do Complexo da Penha levaram pelo menos 54 corpos à Praça São Lucas, na madrugada desta quarta-feira (dia 29).

Isso aconteceu no dia seguinte à operação mais letal da história do Estado. Eles colocaram os corpos enfileirados em uma das ruas do bairro, cobertos por lençóis, toalhas - qualquer pano que pudesse devolver a essas pessoas um mínimo de dignidade, de privacidade - mas que, ao mesmo tempo, afirmasse sua existência. Esses são mortos para além dos criminosos e dos policiais: a maioria são vítimas apagadas na barbárie dessas histórias.

Nada disso é novidade para quem mora nas favelas da Zona Norte do Rio de Janeiro. Trata-se apenas da mais recente de uma série de chacinas pelas quais o Rio é tristemente conhecido - episódios cujo resultado se resume a uma enorme quantidade de armas e drogas apreendidas e a pessoas executadas no próprio local onde vivem, sem que isso abale minimamente a estrutura do narcotráfico brasileiro.

Impressionam os dados coletados pela Equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco, disponíveis online.

“Não se faz omelete sem quebrar os ovos!”, dizia Bolsonaro, mas, na verdade, já faz muito tempo, sob diversos governadores e presidentes, que é assim que se conduz a política de segurança no Rio de Janeiro. Segundo Itamar Silva, coordenador do Grupo ECO da favela Santa Marta, ex-diretor do IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) e militante histórico do movimento de favelas do Rio, além de morador da Santa Marta: “Esse discurso só se sustenta porque essas mortes acontecem em determinados endereços: favelas. E, em sua maioria, abatem corpos pretos e pobres. Sejamos honestos: governadores, secretários, comandantes e a maior parte daqueles que vivem no ‘asfalto’ não acreditam que, na favela, existam inocentes. Por essa razão, aceitam a eliminação de parte dessa população como um mal menor e necessário no combate ao tráfico de drogas. Pura hipocrisia! Racismo velado! É esse comportamento da sociedade carioca que alimenta a lógica eleitoral de que violência se combate com mais violência.” 


O governo do Rio anunciou 64 mortos, entre eles quatro policiais. No entanto, segundo a própria Polícia Militar, os corpos levados pelos moradores não estão incluídos nessa contagem oficial. Se as novas mortes forem confirmadas, o número total de vítimas ultrapassa os 100.

(No momento da redação deste artigo, ainda não estavam confirmadas, mas depois verificou-se que foram 128 mortes, tornando a chacina do Alemão e da Penha a mais letal da história do Brasil - superando a do Carandiru, em 1992, que resultou na morte de 111 detentos.)

Os corpos foram encontrados na área conhecida como Vacaria, onde ocorreram intensos confrontos. As perícias deverão determinar se essas novas vítimas fazem parte da mesma operação, enquanto familiares tentam reconhecer os corpos e denunciam um massacre que o Estado, como sempre, tenta tornar invisível.

Continua Itamar: “As imagens dos corpos dispostos lado a lado no chão do Complexo do Alemão são das mais escancaradamente reveladoras da atrocidade cometida. Uma multidão contempla seus amigos, conhecidos, parentes, filhos - gente que cresceu junta - estendidos, lado a lado, sem vida.

E devemos perguntar: pra quê? O que mudou na estrutura do crime no Rio de Janeiro? Se foi uma operação planejada, como disse o governador, o que deu errado? Como considerar exitosa uma ação com tantas mortes? E a pergunta que todos os cidadãos do Rio de Janeiro deveriam fazer: quem cuida das famílias destroçadas por essa operação? Quem remenda as casas perfuradas pelos fuzis? É possível blindar as crianças desses horrores? Como explicar a elas que o Brasil não tem pena de morte — e que justiça também é para pretos e pobres?”

Segundo Itamar, o governador Cláudio Castro sabe que a segurança pública será tema central no próximo debate eleitoral e escolheu iniciar sua campanha para 2026 apresentando-se como xerife e justiceiroNa internet, multiplicam-se comentários que elogiam a ação da polícia, reproduzindo a velha máxima ignorante: “bandido bom é bandido morto”, sem levar em conta a existência, nessas áreas, de milhares de moradores sem qualquer ligação com o tráfico.

Os apoiadores de Bolsonaro fazem amplo uso das redes sociais - um fator decisivo em sua eleição -, mas também há muitas vozes que lembram:

“Os verdadeiros chefes do narcotráfico, os de colarinho branco, estão entre a Faria Lima, a Barra e a Tijuca, não nas favelas.”

É a mesma lógica que se vê com o garimpo na Amazónia: não são os garimpeiros, os buscadores de ouro, que se enriquecem - os lucros não ficam no território. Descem para o Sul do país ou cruzam as fronteiras, indo parar em bancos suíços ou do Norte global. Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (CUFA), descreve a situação com precisão:

“A guerra no Rio é antiga — e o mais triste é que sempre foi contada com certo romantismo, como se o crime fizesse o que o Estado não faz.
Enquanto isso, o crime da favela, o do asfalto e o político - o dos colarinhos brancos, continuam crescendo.
A regra é velha: os policiais morrem, os bandidos morrem, as famílias choram, e os governos não se importam.
As suas declarações públicas são apenas reprises de filmes antigos. Mas as vidas que se perdem são novas. 95% dos mortos são negros. 70% dos policiais que matam também são negros. As suas mães parecem irmãs, e choram dos dois lados da guerra.
Agora, em tempos de eleição, começa o velho jogo de empurra: o governador culpa o ministro, o ministro culpa o prefeito, o prefeito culpa o presidente, e o presidente devolve a culpa ao Estado. E a favela, na prática, que se lixe.
O favelado, no fundo, não é visto como alguém que realmente merece viver. Mas é bom lembrar: são os negros que estão morrendo, são os negros que estão matando, e são as mães negras que estão chorando - tudo isso sob o olhar sanguinário e o comando dos amigos brancos, gentis e extremamente civilizados.”

por Laura Burocco
Cidade | 30 Outubro 2025 | comando vermelho, massacre, Rio de Janeiro