O asfalto invade o morro

por Marsílea Gombata

Poderia ser um réveillon em Búzios: gente jovem, produzida, moças com roupas leves, bijuterias que valorizam o bronzeado e combinam com a maquiagem nude. Mas estamos no Pavão-Pavãozinho, favela da zona sul carioca acostumada até há bem pouco tempo ao espetáculo macabro dos enfrentamentos entre policiais e traficantes.

Desde a chegada das UPPs, os disparos de armas pesadas e os bailes funk deram lugar a outros sons e outras pessoas. O asfalto invadiu o morro. A moda do momento no Pavãozinho (e também em Vidigal, Rocinha e Ladeira dos Tabajaras) são as festas dos playboys de Ipanema e do Leblon. Os ingressos custam entre 30 e 120 reais, em geral inacessíveis aos moradores, e os participantes pagam pelo privilégio de dançar cercados de esplêndidas vistas do Rio de Janeiro. Mangueira, teu cenário é uma beleza, diz o samba antigo, adaptável à maioria dos morros da cidade.

“A pacificação dos morros fez com que a ‘playboyzada’ começasse a frequentar as oficinas de escolas de samba nas comunidades. A partir daí, começaram a surgir eventos nesses lugares”, explica Cesar Batas, sócio da produtora Rio Prime, organizadora de festas em boates da zona sul. A empresa, criada em 2009, tem explorado o novo filão e promove eventos na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana.

Território controlado. Moradoras do Vidigal observam a entrada na festa Lamparina. As festas dos “playboys” continuam a perturbar o sono da comunidade, a exemplo dos bailes funk agora praticamente proibidosTerritório controlado. Moradoras do Vidigal observam a entrada na festa Lamparina. As festas dos “playboys” continuam a perturbar o sono da comunidade, a exemplo dos bailes funk agora praticamente proibidos

As festas acontecem, em sua maioria, onde antes pulsavam os bailes funk e trazem sons variados como hip-hop, soul music, samba e jazz. Apesar da mudança de público, as baladas causam aos moradores da comunidade os mesmos transtornos de antes: a privação do sono por um som ensurdecedor até o amanhecer. Em algumas comunidades, o barulho leva moradores a protestar e a exigir uma lei do silêncio. Com pouco resultado. No Vidigal, por exemplo, as baladas da Oficina do Jô, frequentadas por gringos e cariocas da planície, não acabam antes das 5 da manhã.

“Não pode ter baile funk, mas pode ter festas como essas”, protesta Thais (que não quis dizer seu sobrenome), 29 anos. Segundo ela, nascida e criada no Vidigal, as rodas de samba dos moradores precisam ser encerradas às 11 da noite. “Dizer que o problema do baile funk é o barulho é mentira. A diferença é que, como essas festas são voltadas para o público mais elitizado, tudo é permitido.”

Maiara Yamada, estudante de 20 anos frequentadora das baladas nos morros, ironiza: “O barulho que reclamam do funk é outro. Para eles não é conveniente ter baile funk, onde a -comunidade -reafirma seu espaço. Me pergunto se essa pacificação das UPPs é para quem mora aqui ou para a gente lá de baixo.”

Com um público crescente e endinheirado (no Vidigal, a média de público é de 600 convidados e na Tabajaras, uma festa pode reunir até 1,3 mil), as baladas geram renda para a comunidade local. O ambulante Juarez Souza, vendedor de água e chiclete na subida da Rua Saint Roman, um dos acessos ao Pavão-Pavãozinho, dá boas-vindas aos novos frequentadores do morro onde mora desde 1994: “Essas festas são ótimas, trazem novas pessoas, novas amizades e não têm violência”.

Na subida do Vidigal, o boteco virou um restaurante japonês. As marcas mais populares de cerveja cederam espaço para as importadas Stella Artois e Heineken. Batizado de Fênix Sushi Bar, o estabelecimento simboliza a -mudança no perfil da clientela: saíram os moradores, entraram os “turistas”.

“A grande pergunta é: até que ponto uma festa a mais para nós é uma festa a menos para eles?”, indaga o jornalista Nuno Virgílio Neto durante uma parada no novo restaurante japonês. “É isso que  não paramos para pensar, mas deveríamos.”

O novo bar sushi é um pit stop na subida do Vidigal. Para aqueles que ainda enfrentarão a pista de dança da Oficina do Jô, o local é sinônimo de “esquenta”. Para quem não pode pagar 40 reais de entrada e 8 -reais por uma cerveja long neck, a noite acaba por ali, com uma latinha na mão e ouvidos atentos ao som que vaza das festas. Alguns eventos oferecem lotes de ingresso com preço acessível aos moradores, mas são pouco divulgados. “Nem temos notícias desses ingressos mais baratos”, reclama Maria Lúcia Bastos, moradora do Vidigal, que trabalha como analista contábil. “Uma festa que custa 40 reais é feita justamente para as pessoas da comunidade não participarem. É uma discriminação contra o pessoal daqui, no nosso próprio espaço.”

Sobre o possível ressentimento dos moradores, a produtora Nina Franco afirma: “Já pensei muito sobre isso. Mas sempre falamos com a associação dos moradores, convidamos os vizinhos. Em algumas festas, quando chegam e dizem que são da comunidade, tentamos fazer um preço mais em conta ou damos um ingresso. Tem de haver flexibilidade, pois, teoricamente, nós invadimos o espaço deles.”

Danilo Cymrot, estudioso da marginalização do funk, a onda de festas em morros pacificados revela um movimento sutil da política das UPPs. “Essa moda deixa clara a invasão do asfalto nas áreas de favela, das quais a classe média já se apropriou para lazer. Você permite que os jovens do asfalto tenham o que os jovens da comunidade tinham e não têm mais”, reflete. “Para mim, só reforça a tese de que a criminalização do funk é um processo seletivo que esconde a criminalização da população identificada por esse estilo de música: negra, jovem e favelada.”

publicado em Carta Capital 27/2 

28.02.2013 | por martalanca | asfalto, baile funk, descriminação, favela, festas, morro, ruído