Reforçar os alicerces: contra o apagamento da memória

So if you are the big tree

We are the small axe

Ready to cut you down (well sharp)

To cut you down

Bob Marley (‘Small Axe’ 1973)

Small Axe (antologia), Steve Mc Queen | 2020 Small Axe (antologia), Steve Mc Queen | 2020

Em 2014, Paul Gilroy proferiu as  Tanner Lectures na Universidade de Yale. Na primeira intervenção, refletindo sobre a função dos estudos humanísticos, Gilroy assumiu um tom realista ao refletir sobre o contraste entre a importância, e a relativa escassez, dos estudos dedicados a compreender o modo como o racismo é fundamental na estruturação da nossa sociedade e como nos afeta a todos e afeta o nosso conceito de Humanidade. Nas suas palavras:

Embora não esteja na moda, estudar processos de hierarquização racial e de desigualdade proporciona um importante meio para expandir essas inquirições, para localizar as fronteiras do ser-se humano, de modo tão contundente como incisivo. Consequentemente, isso significa recusar o abandono da ideia de raça e das formas de conhecimento sistemático que tal ideia tem proporcionado, para, pelo contrário, as abraçar e explorar como uma oportunidade para melhor nos conhecermos, e ao nosso mundo precioso. (Gilroy 2014: 22)

Os acontecimentos destes últimos seis anos deram uma maior acuidade às observações de Gilroy. Simultaneamente, tornaram cada vez mais evidente que, não obstante o progresso real alcançado, as tentativas de manter privilégios baseados na desigualdade estrutural e sistémica, no tocante à classe, ao género ou à raça, se tornaram ainda mais obstinadas. Tentativas que vão de mãos dadas com os esforços, inúteis, mas devastadores, de negar a História e impor o apagamento da memória.

A série de cinco filmes para televisão dirigida por Steve McQueen, Small Axe, foi exibida primeiro na BBC 1 entre 15 de Novembro e 13 de Dezembro de 2020 e encontra-se disponível em vários países e em formato DVD. Constitui um importante antídoto contra tal apagamento da memória. Ao tematizar episódios específicos da vida da comunidade caribenha em Londres dos anos 60 aos anos 80, os filmes possibilitam-nos uma aprendizagem de muitos aspetos do passado tanto no plano histórico como pessoal. Ao mesmo tempo, os filmes também contribuem muito para reavivar as memórias dos que viveram os eventos em causa, criando uma espécie de pós-memória para todos os que não só nasceram depois, mas não tiveram ninguém que rompesse com o pacto de silêncio sobre as vidas de pessoas negras, as suas lutas contra toda e qualquer forma de violência, as falhas nada incomuns do sistema educacional que ainda perduram, e o espírito de vitalidade e força criativa dessas pessoas. A receção crítica dos filmes, tanto de cada um como da série no seu conjunto, tem sido esmagadoramente positiva. Num ano marcado por tanta devastação, causada pela pandemia, assim como pela turbulência política derivada da rápida expansão de forças reacionárias por todo o lado, com a sua retórica incendiária e os seus ataques abertamente xenófobos e racistas, os filmes de Steve McQueen ofereceram um raio de esperança e um mais que necessitado contrapeso.

Frente a formas repetidas, hostis e abertamente violentas de negação e supressão da história, a educação e a memória tornam-se elementos fundamentais de resistência e de criação de uma visão mais verdadeira do passado. Uma visão que possa servir não apenas para prevenir um retorno futuro das mais nefastas e inumanas formas de opressão, mas também para assegurar que o nosso presente possa refletir melhor todas as partes da sociedade em vez de continuar a perpetuar a exclusão até ao infinito. Assim, a educação e a memória constituem baluartes na salvaguarda da democracia. O facto de a democracia, a educação e a resistência constituam elementos chave dos cinco filmes não é coincidência. Em Mangrove, o primeiro filme a ser lançado, que relata os eventos que levaram ao notório julgamento dos ‘Mangrove Nine’, e a subsequente absolvição total ou parcial dos acusados, o foco incide na possibilidade de se afirmar o Estado de Direito uma sociedade democrática, mesmo quando ela é perpassada pelo racismo sistémico e pela desigualdade. Alguns observadores poderão chamar a atenção para o precedente jurídico estabelecido quando o juiz que presidiu, Edward Clarke, declarou que o julgamento tinha ‘trazido à luz provas de ódio racial’. Mas o elemento mais importante, sugiro, foi, em conjunto com o abandono de muitas das acusações e as cinco absolvições totais, o reconhecimento de que a prática de uma advocacia radical – neste caso, uma aliança entre dois advogados progressistas brancos, Michael Mansfield e Ian Macdonald, e os arguidos, alguns dos quais se representaram a si próprios em tribunal – tinha possibilidades de sucesso.  Ife Thompson, especialista de assuntos jurídicos e ativista, explica no blogue da editora Verso a importância do restaurante Mangrove: ‘Para a comunidade Negra no Reino Unido, a criação de lugares de resistência negra era vital para a sobrevivência coletiva.1 Ter a possibilidade de defender a sua causa em tribunal e, uma vez iniciado o processo, poder demonstrar como o racismo estrutural funciona, também foi fundamental, não apenas para sobreviver, mas também para reclamar alguns dos direitos tantas vezes negados, quer como indivíduos, quer como cidadãos. Ao incidir naquele momento decisivo na luta pela igualdade, o filme de McQueen reacende memórias supostamente soterradas de luta e de vitória que são cruciais para a atual geração compreender e, assim, assumi-las como herança sua.

Small Axe constitui uma aplicação formidável da memória e da imaginação para combater a negação continua e sistémica da identidade com que a população negra ainda se confronta no seu quotidiano. A série, quer na totalidade, quer nas suas componentes individuais, oferece às pessoas negras do Reino Unido a possibilidade de se verem a si e à sua história representados no ecrã de múltiplas maneiras, não como figurantes, mas como cidadãos e cidadãs plenamente imersos nas suas comunidades e nas várias formas de luta necessárias numa sociedade estruturada fundamentalmente na desigualdade e na opressão. Pode mesmo dizer-se que McQueen toma o conceito de Althusser (1970) sobre os aparelhos ideológicos do Estado,2 e o dramatiza, mostrando como a ideologia dominante é reforçada e reproduzida através da repressão policial, dos preconceitos do Direito, das falhas do sistema educativo, e até da função ambivalente das estruturas familiares, que tanto dão apoio e alimento como exigem conformismo. Isto pode ser visto em muitos momentos, por exemplo, na consternação de um pai em Red, White, and Blue, que fora espancado em público de maneira brutal pela polícia, ao ouvir que o filho, investigador científico, deseja abandonar a sua carreira para integrar a polícia e, assim, tentar introduzir mudanças a partir de dentro da instituição.  Baseado em acontecimentos históricos e na figura de Leroy Logan (John Boyega), o filme acentua a importância da educação para tentar introduzir mudanças, mesmo se a decisão do filho se depara tanto com a desaprovação resoluta do pai, como com o racismo, dominante e indisfarçado, dos seus novos colegas.

O papel fundamental da educação volta a ser colocado em destaque em Education, o filme que encerra a série. No curto resumo da BBC pode-se ler: ‘[q]uando Kingsley, aos 12 anos de idade, é transferido para uma escola especial, um grupo de mulheres das Caraíbas denuncia uma prática de segregação não-oficial que impede muitas crianças negras de receberem a educação que merecem.’  O filme baseia-se, em parte, na própria experiência de Steve McQueen em criança, tendo sido excluído da escolaridade normal tal como muitas outras crianças negras que eram então colocadas em ‘escolas especiais’ para ‘crianças sem sucesso educativo.’ Em entrevista com Lola Okolosie, que escreveu sobre o filme e as questões que este levanta em The Observer, McQueen disse: ‘Embora fossemos de origens e raças diferentes, […] todos nós sabíamos que estávamos a ser lixados’.  Apesar de ser disléxico, continua McQueen, ‘não havia ajuda nenhuma […] éramos abandonados a nós próprios, […] não havia interesse algum.’ (15 de Novembro de 2020). Mas este não é bem um filme histórico, embora também o seja. É, como o resto da série, um filme sobre o presente e não apenas no Reino Unido.  Se se tivesse a ideia de que o sistema educacional não pôde deixar de mudar nestes cinquenta anos que passaram, pelo menos no que diz respeito a questões raciais, basta olhar para os protestos ininterruptos contra as práticas atuais de desigualdade e racismo sistémico para imediatamente nos desenganarmos. Okolosie, professora e jornalista, dá-nos uma noção sombria do contexto ao indicar que ‘rapazes afro-caribenhos têm três vezes mais probabilidades de serem excluídos permanentemente do que os outros. O problema é pior ainda se considerarmos alunos oriundos da classe operária no conjunto: crianças com direito a refeições grátis na escola – tanto negras como brancas – perfazem 40% das exclusões permanentes.’3 E Okolosie observa ainda que as estatísticas do governo indicam a estimativa de que 4.2 milhões, ou 30%, de todas as crianças no Reino Unido, vivem em condições de pobreza, um número alarmante que tende a aumentar mais ainda. O relatório do relator especial das Nações Unidas sobre Pobreza Extrema e Direitos Humanos, publicado em 2019, não deixa lugar a dúvidas: ‘Embora o Reino Unido seja a quinta maior economia do mundo, um quinto da sua população (14 millhões de pessoas) vive na pobreza, e 1.5 milhões dessas pessoas sofreram privações em 2017. A política de austeridade introduzida em 2010 continua praticamente sem alívio, apesar das consequências sociais trágicas. Prevê-se que perto de 40% das crianças esteja a viver na pobreza em 2021.’

A primeira longa-metragem de Steve McQueen, Hunger (2008), foi galardoada com o Caméra d’Or em Cannes, entre outros prémios. A sua visão da greve de fome na penitenciária Maze na Irlanda do Norte e da morte de Bobby Sands (Michael Fassbender), em 1981, continua a assombrar ainda hoje. Tal como nessa película, os cinco filmes que formam Small Axe, e que ele começou a preparar assim que terminou o trabalho com Hunger, também têm o poder de acordar fantasmas.  E ainda bem, porque, sem um confronto com esses espetros ainda no centro da nossa sociedade, não há possibilidade de avançar. Ambos os projetos partilham a ênfase na coragem e capacidade de resistência humanas, assim como na força derivada da oposição à injustiça do poder. Mas Small Axe também é uma explosão de vida no modo como nos mostra o dinamismo da cultura negra. Seja na forma da grande, intensa e quase interminável festa em Lovers Rock , seja em qualquer outro dos cinco filmes. E não é só a música, a dança, a beleza dos jovens a expressarem-se que os filmes celebram, mas também a intensidade do trabalho, a alegria de preparar a comida em conjunto e a pertença a uma comunidade. Small Axe denuncia vigorosamente a podridão no centro do sistema e atravessa-a como se fosse madeira carunchosa. Mas é muito mais do que isso. Tal como Steve McQueen recentemente afirmou numa conversa com Paul Gilroy no University College de Londres a 26 de Outubro de 2020: ‘[…] para mim, Small Axe tinha que ver com o reforçar dos alicerces de quem somos e donde vimos e aquilo que contribuímos para este país em tantos planos e como o influenciámos em tantos planos. Pois, isso é o que Small Axe significa para mim.’

MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624).

MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Ife Thompson. ‘The Mangrove 9 and the Radical Lawyering Tradition’. Verso Blog, 20 November 2020.
  • 2. Louis Althusser. ‘Idéologie et appareils idéologiques d’État’. La Pensée, 151 (1970). Tradução de Joaquim José Moura Ramos. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença, 1974.
  • 3. Lola Okolosie. ‘Discrimination at School: is a Black British History Lesson Repeating Itself?’. The Observer. 15 November 2020.

por Paulo de Medeiros
A ler | 18 Fevereiro 2021 | hierarquização cultural, Memoirs, Passado, Paul Gilroy, política, racismo, small axe, Steve McQueen