Com a boca cheia de sangue: da responsabilidade dos intelectuais
The graves are bleeding trauma,
The memories say, let me out
The massacres say, remember me
The graves say, it still hurts
The skeletons point to where it does
Koleka Putuma1
Quando Misan Harriman publicou a sua fotografia de uma jovem, Darcy Bourne, empunhando um cartaz durante uma das marchas de protesto do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) em Londres, em Junho de 2020, talvez não tenha imaginado o impacto que essa imagem iria ter. Deixando de lado os atributos visuais específicos da imagem, apelativos quer do ponto de vista político, quer mesmo ao nível estético, a mensagem daquele cartaz interpela diretamente um dos assuntos mais espinhosos em relação à luta contra o racismo. A questão colocada por aquele cartaz improvisado, ‘Porque é que acabar com o racismo é um debate?’ indicia uma das falácias flagrantes em torno da discussão sobre ‘raça’ que assegura a continuidade da opressão sistemática como um marco distintivo das nossas sociedades avançadas. Apesar de tudo o que já tem sido feito para combater o racismo, e apesar de todos os avanços e conquistas reais para os quais foi necessário lutar fortemente, a noção de ‘raça’ como ferramenta para a desumanização de vastas camadas da população persiste ainda.
Na realidade, apesar de algumas noções esperançosas, e outras ingénuas, sobre a possibilidade de se entrever uma sociedade em que a ‘raça’ não tivesse qualquer importância, o oposto impera. Nem sequer se pode dizer que ‘raça’, enquanto categoria tenha alguma vez desaparecido; portanto, não se trata de regresso nenhum. Não, essa categoria esteve sempre bem presente, nunca nos largou, mesmo se alguns de nós nos tivéssemos esquecido dela, ou o desejássemos. E é exatamente devido a essa suposta abolição do racismo para os confins da História, que o confronto com o racismo e tudo aquilo que ele acarreta, é agora, mais do que nunca, urgente.
Toni Morrison, uma das maiores escritoras do nosso tempo – e de sempre – sempre insistiu connosco para que confrontássemos os legados da escravatura, e especialmente a imbricação do racismo na nossa sociedade. Os seus romances marcam-nos, ferem-nos, através da mais pura intensidade e beleza da sua escrita assim bem como através de um forte sentido da necessidade de prestar testemunho – tanto para os mortos como para os vivos – confrontando-nos incessantemente com a dor da nossa humanidade comum e a desolação, miséria, e o sofrimento infligido a milhões e milhões de pessoas ao longo de gerações e gerações até nosso ao presente flagelado pelo racismo. Beloved2 geralmente considerado como um dos seus romances mais importantes, oferece-nos um assombramento que não termina, não pode terminar, até que a nossa sociedade, em vez de ocasionalmente repetir as ladainhas do progresso e da civilização, erradique o racismo de forma definitiva.
Mas em A Mercy, romance publicado imediatamente após a eleição de Barack Obama como Presidente dos EUA, em Novembro de 2008, Morrison vai mais longe e imagina como poderia ter sido se, apesar das estruturas opressivas do capitalismo e da escravatura, o racismo não tivesse constituído o alicerce fundador das nossas sociedades modernas3. Através de um longo e distinto percurso, Morrison também escreveu ensaios e palestras que são fundamentais para que qualquer um de nós tome consciência do nível de dificuldade que o processo de emancipação ainda hoje enfrenta e qual é o nosso dever intelectual para trabalhar em conjunto no sentido de expor e de desmantelar as estruturas do racismo sistémico.
Toni Morrison faleceu a 5 de Agosto de 2019. Mas deixou-nos um dos legados mais importantes, uma dádiva imensa e um pesado dever, não só de lembrar milhões de vítimas, mas de agir para a mudança de modo a possibilitar uma vida digna para todos. E esse também é um dever intelectual, tantas vezes ignorado. Alguns meses antes Morrison tinha publicado um volume reunindo muitos dos seus ensaios e outros textos críticos, com o título de A Mouth Full of Blood [uma boca cheia de sangue].4 Também este volume em particular é um legado profundo e aqui desejo salientar apenas dois pontos: em primeiro lugar, o modo como Morrison estrutura o seu livro, como se fosse uma extensa invocação aos mortos; e em segundo lugar, o modo em como não hesita ligar o racismo ao fascismo.
A questão da memória, ou mais rigorosamente, da ‘rememória’ perpassa todos os textos de Morrison, mas tornou-se extremamente visível em Beloved, tal como Morrison diz: ‘Rememory as in recollecting and remembering as in reassembling the members of the body, the family, the population of the past. (…) “Nobody in the book can bear too long to dwell on the past; nobody can avoid it’ (324). A tensão entre lembrar (‘remembering’) e esquecer tem paralelo na pós-memória. Mas, enquanto a pós-memória representa um esforço para montar uma forma narrativa tão unificada quanto possível face aos silêncios, hiatos, e ruturas através de várias gerações, a ‘rememória’ expõe esses hiatos, reconhece os vazios abissais, e aceita que, por vezes, um compromisso entre lembrar e esquecer seja necessário para sobreviver.
Cada uma das três partes em que A Mouth Full of Blood está dividido abre com um exórdio aos mortos; primeiro, Aos mortos do 11 de Setembro; segue-se um Tributo a Martin Luther King Jr., e depois um Elegia para James Baldwin. Falar com os mortos é simultaneamente uma forma de lembrar e uma reivindicação de pertença. Uma pertença assumida pela inclusão e não pela exclusão, uma pertença que inclui a humanidade inteira aqui configurada nos mortos do 11 de Setembro, e centrada na herança de uma luta corajosa para construir uma sociedade mais livre e uma responsabilidade intelectual rigorosa de assumir a palavra. James Baldwin e Toni Morrison eram não só contemporâneos (Morrison mais nova sete anos), como amigos e aliados. As suas lutas pessoais foram diferenciadas, mas ambos estavam seriamente comprometidos na luta para mudar o mundo através da sua escrita de modo a torná-lo um lugar mais inclusivo e menos doloroso. E mantêm-se extremamente contemporâneos. Esta atualidade pode ser comprovada no modo como Morrison interpela a relação simbiótica entre racismo e fascismo, embora hoje tanto o racismo como o fascismo apresentem novos disfarces: ‘In 1995 racism may wear a new dress, buy a new pair of boots, but neither it nor its succubus twin fascism is new or can make anything new. It can only reproduce the environment that supports its own health: fear, denial, and an atmosphere in which its victims have lost the will to fight’5.
Em 2020 esta crítica tornou-se ainda mais urgente: não só assistimos a uma escalada da violência racial à luz do dia por todo o lado, como também assistimos ainda a uma plena impunidade. Morrison nunca deixou de se pronunciar sobre o terror abjeto, a crueldade inominável, e a dor assombrosa. Ao ligar de forma explícita o racismo ao fascismo, não se esqueceu do capitalismo, e a sua acusação é acompanhada por outras duas: ‘Fascism talks ideology, but it is really just marketing—marketing for power’. Morrison enumera várias das alterações que o fascismo como ‘marketing do poder’ exerce sobre as pessoas, transformando ‘citizens into taxpayers’ e ‘neighbors into consumers, para concluir: ‘[a]nd in effecting these changes it produces the perfect capitalist, one who is willing to kill a human being for a product (a pair of sneakers, a jacket, a car) or kill generations for control of products (oil, drugs, fruit, gold)’.
Uma maneira de resistir a este esvaziamento do âmago daquilo que significa ser-se humano é manter a memória e não deixar que a morte imponha o silêncio. Quando George Floyd, Marielle Franco, Bruno Candé, e tantos outros, são assassinados abertamente, temos que resistir ao medo, invocar as memórias de resistência, e falar. Tal como Morrison também assevera, o fascismo acaba por destruir todos, passo a passo: “Let us be reminded that before there is a final solution, there must be a first solution, a second one, even a third’ (14). Mesmo que as nossas bocas estejam cheias de sangue ao testemunhar as violências sistemáticas sobre os nossos companheiros seres humanos, ao assistir à sua degradação, à sua desumanização, e ao seu assassínio, temos de continuar a falar. Morrison salientou o que poderia parecer um paradoxo ao constatar: ‘Speaking to the broken and the dead is too difficult for a mouth full of blood. Too holy an act for impure thoughts. Because the dead are free, absolute; they cannot be seduced by blitz’ (3). Mas temos de continuar o diálogo com os mortos, seja qual for o assombro que nos cause, porque, tal como Koleka Putuma, poeta da África do Sul, afirma: ‘The graves say, it still hurts /The skeletons point to where it does’.
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MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624) e está sediado no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
- 1. Koleka Putuma, ‘Ressurection’. Collective Amnesia. Cape Town: Uhlanga, 2017, 108.
- 2. Toni Morrison. Beloved. New York: Alfred A. Knopf, 1987. Toni Morrison. A Mercy. London: Chatto & Windus, 2008. Existem várias traduções em português, ora mantendo o título original, Beloved (Presença, 2018), ou então traduzindo para Amada (Companhia das Letras, 2007).
- 3. Toni Morrison. A Mercy. London: Chatto & Windus, 2008. Tradução portuguesa: A Dádiva. Lisboa: Presença, 2009. O termo ‘Mercy tal como Morrison o usa, especialmente como ‘A’ ‘Mercy’ é complexo, e talvez um equivalente mais rigoroso fosse ‘Mercê’ pois ‘Dádiva’ traz outras conotações. Mas o termo ‘Mercê’ em português pode estar agora demasiadamente associado a um certo arcaísmo popular representativo de hierarquias sociais, o que seria diametralmente oposto ao sentido procurado por Morrison, como uma forma de ‘Graça’ humana e já não atributo divino.
- 4. Toni Morrison. A Mouth Full of Blood. London: Chatto & Windus, 2019.
- 5. Toni Morrison. ‘Racism and Fascism’. A Mouth Full of Blood. London: Chatto & Windus, 2019, 14-16.