Divertimentos sinistros de verão:
 da “responsabilidade dos intelectuais” (I)

Ont-elles coulé sous la mer
Mais où sont passées les îles (1)

 
O Verão acaba sempre cedo demais. Este ano, no entanto, o seu fim real, assim como a sua continuação metafórica, foram sentidos de maneira mais brusca, devido aos ataques intensificados às democracias europeias e a qualquer tipo de futuro para uma Europa unida e em paz. Muitas causas podem ser invocadas, mas prefiro, neste momento, concentrar-me apenas em uma: a incapacidade de muitos europeus em aceitarem a condição pós-imperial da Europa e a sua voluntária falha de memória. Se o Verão pode ser visto como a “silly season” — dado que tradicionalmente tanto o sector político como muitas outras áreas essenciais da organização societal ficam suspensos ou agem de forma mais reduzida e as notícias, consequentemente, em geral são reduzidas a níveis mais triviais — então este ano o Primeiro Ministro do Reino Unido assegurou que a silly season continue, aparentemente para sempre, mas com tons sinistros. Pelo menos até ao grande final prometido, no Dia de Todos os Santos, como se, num golpe de magia, o corte dos seus laços com a União Europeia, seja a que custo for.
 
Noutros tempos, pelo menos imagino ainda, teria sido impensável que um país desenvolvido e estável, com uma longa tradição de valores democráticos e uma aderência firme e segura aos princípios de direito, exibisse as manobras que se seguiram a tal promessa, que se assemelha muito mais a uma ameaça e não só para os que se encontram desapontados com a situação atual. Isto porque o senhor Johnson agiu sem qualquer consideração, de modo a esmagar toda e qualquer forma de oposição dentro do seu próprio partido, provocando mesmo aquilo que grande parte dos observadores declaram como uma crise constitucional. Na verdade, a decisão de encerrar e suspender o Parlamento durante cinco semanas, na madrugada do dia 10 de Setembro de 2019, deu logo azo a acusações de ser uma espécie de golpe e levou a vários processos, em especial os casos levantados contra o governo nos altos tribunais de Inglaterra e do País de Gales, assim como da Irlanda do Norte, e da Escócia. Nos primeiros dois casos, os tribunais decidiram que o assunto seria fora da sua jurisdição. Na Escócia, entretanto, o alto tribunal (Court of Session) em Edimburgo declarou que a ação do Primeiro Ministro seria ilegal, remetendo o caso para o Supremo Tribunal. Por outras palavras, o senhor Johnson conseguiu estender a silly season em mais do que um sentido, enviando os deputados em férias forçadas e conseguindo, assim, que não possam nem discutir o que de certo constitui um dos momentos mais significantes da história do país, nem escrutinar as ações de um governo que, para todos os efeitos, parece disposto a impor a sua vontade a todo o custo, mesmo que para isso destrua a união de nações que constitui o Reino Unido e inflija prejuízos económicos elevadíssimos.

da série Mãos | 2015 | Teresa Dias Coelho (cortesia da artista)da série Mãos | 2015 | Teresa Dias Coelho (cortesia da artista)
 
Este mês de Setembro também já ocasionou outros eventos, bem diferentes, claro está. Um que sobressai em contraste com o desdém do governo para com os processos democráticos — ao mesmo tempo que apregoa a ficção de estar a cumprir “a vontade do povo” — foi a publicação de um livro com a chancela da Imprensa da University College de Londres, com o título de The Responsibility of Intellectuals: Reflections by Noam Chomsky and others after 50 years (A Responsabilidade dos Intelectuais. Reflexões de Noam Chomsky e outros passados 50 anos). Organizado por vários académicos daquela Universidade, na sequência de um colóquio em celebração do ensaio original de Chomsky com aquele título, e com o intuito de discutir sobre a sua renovada atualidade, este volume importante leva-nos, a todos nós, para uma reflexão sobre questões que, embora sejam diretamente aplicáveis à situação que acabo de descrever, também a transcendem. A bem ver, todo o turbilhão em volta da questão do Brexit poderia ser visto como menor e local, face a outros assuntos demasiado alarmantes tal como as condições catastróficas de clima que criámos, não fosse o facto de que o Brexit se insere totalmente no mesmo molde de denúncias ferozes da realidade nas suas tentativas de destruir toda e qualquer segurança para os trabalhadores, incluindo as relativas ao meio ambiente através de um desregulamento massivo e o ataque aos princípios básicos da democracia. O ensaio de Chomsky, publicado originalmente em 1967, foi uma intervenção direta na questão mais urgente do seu dia, a guerra levantada pelos Estados Unidos contra o Vietnam. No entanto, muito dos seus pontos não perderam nenhuma lucidez, tornando-se, se possível, ainda mais relevantes hoje em dia.
 
Qual é a responsabilidade dos intelectuais na perspetiva de Chomsky? A sua afirmação não poderia ser mais explícita: “É RESPONSABILIDADE dos intelectuais dizerem a verdade e desmascararem a mentira”. Ao mesmo tempo, Chomsky também sabe, e parte do princípio, que tal visão não é tão simples como aparenta porque a verdade na maior parte dos casos é completamente abusada e pervertida pelos poderosos. Chomsky especifica além disso, ao refletir no ensaio anterior de Dwight Macdonald, que servira de ponto de partida para o seu:
 
No que diz respeito à responsabilidade dos intelectuais, ainda há outras perguntas inquietantes. Os intelectuais estão posicionados para expor as mentiras dos governos, para analisar ações de acordo com as suas causas, motivos, e, frequentemente, intenções ocultas. No mundo ocidental pelo menos, os intelectuais têm o poder que advém da liberdade política, do acesso à informação, e da liberdade de expressão. Para uma minoria privilegiada a democracia ocidental proporciona o tempo livre, as ferramentas, instrumentos e outras necessidades, assim como o treino, para procurar a verdade escondida por detrás do véu de distorção e embuste, ideologia, e interesse de classe, através dos quais os eventos da história contemporânea nos são apresentados. As responsabilidades dos intelectuais, portanto, são muito mais profundas do que aquilo que Macdonald apelida de “responsabilidade do ser humano”, dados os privilégios singulares ao seu dispor (2).
 
Neste novo livro, refletindo sobre o ensaio de 1967 de Chomsky, Neil Smith e Ahmal Smith referem-se ao que consideram a “sardónica” classificação de Chomsky de dois tipos de intelectuais: “O contraste é entre ‘intelectuais tecnocratas e vocacionados para a política’ (os ‘tipos bons’ na perspetiva do poder estabelecido e que servem exclusivamente o poder externo) e os ‘intelectuais virados para os valores’ (os ‘maus da fita’, na ótica do poder estabelecido, que praticam a análise crítica e a deslegitimação)” (3). Não se trata apenas de mais uma reiteração da distinção importante lançada por Gramsci entre intelectuais tradicionais e intelectuais orgânicos. Na verdade, a bem ver, no mundo de hoje em que mesmo conceitos aparentemente estáveis como “classe operária” se tornaram mais indistintos, a divisão entre intelectuais “tecnocráticos” e intelectuais “orientados para valores” pode ser analiticamente mais útil. No entanto, também ela não é necessariamente auto-explícita. No seu comentário ao ensaio de Smith e Smith, Chomsky explicita a origem da distinção e proporciona um contexto importante. Essa parte do comentário tem de ser citada por extenso:
 
A minha descrição era mesmo sardónica, mas não posso reivindicar originalidade quando se trata da caracterização das duas categorias de intelectuais que, originalmente, nada tinha de sardónico. Era, sim, extremamente séria, um facto de bastante importância e com considerável relevância para a questão da Responsabilidade dos Intelectuais. Eu estava a citar um documento revelador, a primeira — e, penso, a mais significante — publicação da Comissão Trilateral, A Crise da Democracia (4). A Comissão era composta principalmente por internacionalistas liberais dos três centros da democracia capitalista: EUA, Europa e Japão. A sua orientação política pode ser observada no facto de que a maior parte da administração do Presidente Carter — e até o próprio Carter — provinha dos seus quadros. O relatório da Comissão elogia os “intelectuais tecnocráticos e orientados para a política” como sendo sérios e honrados, cumprindo com as suas responsabilidades para criar e implementar políticas de forma sóbria e responsável (um conceito da Responsabilidade dos Intelectuais). O relatório critica fortemente os “intelectuais virados para os valores”, que vêm a sua responsabilidade de forma diferente. Aos olhos da Comissão, esses intelectuais são sentimentais e deixam-se levar pelas emoções (ou têm até outras intenções mais insidiosas). Eles promovem a desordem e corrompem a juventude, e assim ajudam a criar a “crise da democracia” (5).
 
Talvez outra maneira de encarar esta divisão seja a de apontar para o facto de que enquanto os “intelectuais tecnocráticos” se constituiriam como os agentes necessários para legitimar o poder, os “intelectuais virados para os valores” estariam principalmente ocupados em criticar o poder. Esta é uma distinção que encontra eco nas palavras de Jackie Walker, que se apoia em Chomsky para refletir na situação atual do Reino Unido, especialmente no que diz respeito a questões de racismo, partindo da sua posição como uma mulher negra e judia. Eis o que ela afirma: “À medida que o Reino Unido avança na direção do desconhecido na situação de um pós-Brexit, a pressão para haver um alinhamento mais estreito com o Tio Sam aumentará, seja qual for o seu Presidente, e quão louco ele pareça ser. Os ataques às minorias aumentam e o pronunciamento de Chomsky de que os intelectuais têm a responsabilidade de dizer a verdade cada vez mais se assemelha a um arauto, seja qual for a cor da nossa pele” (6). Deixo esta questão para outra ocasião próxima. De momento quero apenas referir dois incidentes que, a meu ver, ilustram de forma ampla e trágica a situação política resultante da negação da condição pós-imperial do Reino Unido e da Europa.
 
O primeiro incidente que desejo referir aqui é a decisão recente de utilizar o imaginário – e as imagens – do Império para sugerir a extensão do florescimento da Grã Bretanha depois de se separar da União Europeia, propagado numa campanha governamental. Aqui, a breve descrição num artigo publicado pelo Guardian: “O anúncio do Departamento de Transportes mostra navios tal como as ‘fluyts’ [uma variante do Galeão], East Indiaman [nome geral dado a navios de carga dos vários impérios marítimos europeus] e vapores, usados do século XVI ao século XIX para estabelecer o Império Britânico, transportar escravos e trabalhadores em regime esclavagista, através do Atlântico e trazer carregamentos de mercadorias preciosas para a Grã-Bretanha”. Kim Wagner, historiador associado à Queen Mary Universidade de Londres, tira a conclusão lógica: “Isto é o que acontece quando a memória histórica se limita a uma narrativa em que simplesmente abolimos a escravatura – é incrivelmente cega e historicamente analfabeta”.
 
O segundo é o esforço contínuo por parte do Ministério do Interior de fazer com que imigrantes deixem o Reino Unido, usando toda uma série de meios que deveriam levantar questões graves e que já tiveram consequências trágicas e de custo pessoal incalculável. Noutra ocasião já pude refletir brevemente sobre a questão da dita “Geração Windrush”, e tenciono voltar a esse assunto em pormenor mas não aqui. Por agora desejo referir a prática de incitar pessoas a se deportarem a si próprias através de intimidação violenta, incluindo o aprisionamento de indivíduos fragilizados em centros de deportação. Amelia Gentleman, num artigo do Guardian de 14 de Setembro de 2019, explicita o custo elevado da política de “ambiente hostil” levada a cabo pelo Ministério do Interior:
 
Achei a escala da miséria devastadora. Uma manhã, cheguei ao trabalho e tinha 24 mensagens no meu atendedor de chamadas de pessoas desesperadas, cada uma convencida que eu poderia ajudar. Queria chorar sentada à minha secretária quando abri a carta da mãe de uma mulher jovem que tinha chegado ao país, vinda da Jamaica, em 1974, quando tinha um ano de idade. Em 2015, depois de ter sido classificada como imigrante ilegal e enviada para o centro de detenção de Yarl’s Wood, tomou uma sobredose e morreu. “Se não fosse a estadia em Yarl’s Wood, que, ao que sabemos, foi extremamente desagradável, e a ameaça de deportação, a minha filha estaria viva hoje”, escreveu essa mãe. O governo tem tido como alvo reduzir a imigração a todo o custo, ela continuou. “Um dos custos, no que me diz respeito, foi a vida da minha filha”.
 
Há mais do que razão para pensar que a situação atual no Reino Unido, em que, para usar as palavras de Jackie Walker, “habitamos um mundo em que a política cada vez mais se assemelha a uma fraude cometida por grupos de interesses particulares com o apoio de uma elite económica e política que controla o que é dito e o que se pode dizer (…)”, será não só continuada mas intensificada. O senhor Johnson não só escreveu ao Supremo Tribunal e avisou-o de que o Tribunal não tinha jurisdição sobre as suas ações, como várias fontes governamentais indicaram que embora o Governo acatasse a decisão do Supremo Tribunal, o senhor Johnson poderia suspender o Parlamento outra vez.
 
Por outras palavras, respeitar as normas de um Estado de Direito, na perspectiva deste Governo, tornou-se em algo discricionário e arbitrário, dependendo se fazê-lo iria servir os interesses do Governo ou não. Embora o judiciário por enquanto deva em princípio ainda ser respeitado, também deveria ser visto como irrelevante. Vindo de um país que ainda é membro da União Europeia, e que ainda recentemente era visto como um dos seus pilares, tal estratégia constitui uma ameaça não só para com a estabilidade do Reino Unido — e muito especialmente em relação à Irlanda do Norte como é sabido — mas também em relação à democracia na Europa. Visto de outro ângulo ainda, o Governo de Sua Majestade neste momento está a tentar expandir a silly season eternamente. A decisão do Supremo Tribunal, anunciada na manhã de terça-feira, 24 de Setembro, de que o conselho dado à Rainha pelo Primeiro Ministro, para encerrar o Parlamento, foi ilegal e, portanto, a suspensão do Parlamento foi nula e sem efeito, não podia ser nem mais clara nem mais incisiva e representa um ato de resistência ao ataque direto contra o princípio de democracia na Europa. Eis a imagem final do veredicto, sóbria e majestosa ao mesmo tempo: “Isto significa que quando os Comissários Reais entraram na Câmara dos Lordes, foi como se entrassem com uma folha de papel em branco. A suspensão também foi nula e sem efeito. O Parlamento não foi suspenso. Este é o julgamento unânime de todos os onze juízes” (7). No entanto, isso não é motivo para afrouxar a vigilância. De certo modo, por este andar todas as estações estão a virar silly season e a única certeza é de que o Inverno está a chegar. A responsabilidade dos intelectuais de dizer a verdade ao poder nunca foi tão clara.

(1) Soha, ‘Café Bleu’, D’ici et d’ailleurs, Parlophone/Warner, 2008.
(2) Nota: todas as traduções do inglês são da minha autoria.
(3) ‘Reflections on Chomsky’s ‘The Responsibility of Intellectuals’ in The Responsibility of Intellectuals: Reflections by Noam Chomsky and others after 50 years, edited by Nicholas Allott, Chris Knight and Neil Smith (London: UCL Press, 2019), 8.
(4) Michel Crozier, Samuel Huntington and Joji Watanuki, The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission (New York: New York University Press, 1975).
(5) Noam Chomsky, ‘Commentary on Smith and Smith’, in The Responsibility of Intellectuals: Reflections by Noam Chomsky and others after 50 years, edited by Nicholas Allott, Chris Knight and Neil Smith (London: UCL Press, 2019), 76.
(6) Jackie Walker, ‘”I don’t want no peace’ – a black, Jewish activist’s take on the responsibility of intellectuals’ in The Responsibility of Intellectuals: Reflections by Noam Chomsky and others after 50 years, edited by Nicholas Allott, Chris Knight and Neil Smith (London: UCL Press, 2019), 27.
(7) O resumo oficial do Tribunal Supremo pode ser consultado aqui.
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por Paulo de Medeiros
A ler | 1 Outubro 2019 | Chomsky, Inglaterra, intelectuais, Memoirs