O fogo do purgatório

‘[T]he single most uncontroversial thing one
can say about the institution of slavery vis-à-vis
contemporary time, is that it haunts us all’

Toni Morrison. Mouth Full of Blood.1

Romuald Hazoumé | La bouche du roi (1997-2005) | (Col. Museu Britânico, cortesia do Rijksmuseum)Romuald Hazoumé | La bouche du roi (1997-2005) | (Col. Museu Britânico, cortesia do Rijksmuseum)

Planeada em 2017, a exposição sobre ‘Escravatura” (Slavernij) devia ter aberto em Fevereiro de 2021, mas foi adiada devido à pandemia, sendo inaugurada pelo Rei Willem-Alexander a 18 de Maio, embora limitada praticamente a ser virtual,2 com exceção feita para grupos escolares, até finalmente abrir as portas ao público em geral no dia 1 de Junho. Da longa lista de expectativas que se foi acumulando pode-se destacar a de uma abordagem séria de um assunto a que muitos se esquivam: o papel fundacional da escravatura com toda a sua crueldade e desumanidade na constituição do âmago da modernidade europeia em geral, e, neste caso particular, do Reino dos Países Baixos. A chave para isso assentava não só em proporcionar grande visibilidade para a exposição – o Rijksmuseum é uma das principais instituições culturais da nação – como também em assegurar que todos poderiam ter acesso.  Essa acessibilidade implicava não só que todos, de uma forma ou outra, quer ao vivo quer virtualmente, mediante uma presença dedicada e extensiva na internet, ou através de um catálogo ricamente ilustrado e de preço comedido pudessem tomar conhecimento da exposição, como também se pudessem identificar em e com ela.3

A exposição sobre ‘Escravatura’ tem de ser considerada dentro do vasto panorama de um movimento dirigido ao questionamento e reconceptualização da nossa ideia do passado europeu, que tem vindo a ser conduzido em vários países embora com graus diferentes de sucesso.  Nos Países Baixos é necessário referir outras exposições em locais prominentes tal como o Centraal Museum em Utrecht – ‘What Is Left Unseen?’ (o que fica invisível?) de 2019 – ou ‘HIER. Zwart in Rembrandts Tijd’ (Aqui, Ser Negro no tempo de Rembrandt), no Museu Casa de Rembrandt de 2020.4  Para além de gerar uma atenção de outro nível devido ao Rijksmuseum ser o Museu Nacional, aquilo que é novo na exposição sobre ‘Escravatura’ é o modo em que foi concebida – para usar os termos atribuídos a Taco Dibbits, o Diretor Geral do Rijksmuseum num artigo do Guardian – ‘não para ser “woke” mas sim um “blockbuster” que apresenta uma versão mais verdadeira da Época de Ouro dos Países Baixos’.5  Ora, tal alegação, a ser verdadeira, deve ser vista principalmente como uma estratégia para evitar alienar grande parte do público que a equipa de curadores, Eveline Sint Nicolaas, Valika Smeulders, Maria Holtrop, e Stephanie Archangel, deseja alcançar.  O que não deixa de ser de difícil equilíbrio, mesmo se os curadores o consigam de modo exemplar. Até porque, como Dibbits afirma na sua introdução ao catálogo, a equipa estava bem consciente de trabalhar numa ‘época de mudança sociais radicais’, e que, como a ‘[e]scravatura é uma parte essencial da História Colonial dos Países Baixos’, ‘todos nós temos a ver com isso’.6

Eveline Sint Nicolaas e Valika Smeulders deixam claro que ‘[n]um período inicial, o museu decidiu que o foco da exposição seriam pessoas: dez vidas diferentes no período esclavagista. Pessoas relacionadas de todos os modos com o sistema mais vasto de poder e dinheiro’.7  Não quer isto dizer que não haja igualmente um olhar concentrado sobre objetos e o que mostram e escondem, tal como no caso do duplo retrato de Marten Soolmans e sua mulher, Oopjen Coppit, pintado por Rembrandt em 1634. Mesmo assim, o foco é certamente em pessoas, quer escravizadas, como um tal João Mina, que fugiu ao seu ‘dono’ português e foi capturado por holandeses por volta de 1646; quer aqueles que foram colhendo os benefícios da escravatura e seus produtos, tal como o açúcar, no caso do casal memorializado por Rembrandt; quer ainda a pessoas que lutaram ativamente contra a opressão da escravatura, como foi o caso da lendária figura de uma mulher, agora conhecida como ‘Uma-Tété-Lohkay’, que, após ser recapturada, foi ‘castigada com a amputação de um seio’ e ainda assim conseguiu escapar de novo.8  Uma das lições maiores desta exposição é que, apesar da escravatura ser o sistema mais completo para a reificação de seres humanos, a sua humanidade permanece e revela-se-nos sempre de novo. Ao mesmo tempo, os que beneficiavam da desumanização são dados a ver também, e francamente, na sua humanidade e não como monstros tal como os retratos de Soolmans e Coppit evidenciam na sua representação paradoxal dos trajes negros austeros em contraste com os ricos pormenores dos acessórios de alto luxo como as rendas e as joias.  O casal no duplo retrato, além de outras ligações com a escravatura, possuía uma das mais importantes refinarias de açúcar em Amsterdão, ironicamente apelidada como ‘t vagevuur, ou seja, o Fogo do Purgatório.  De certo modo esta exposição, embora não invoque o conceito de ‘sujeito implicado’ exposto por Michael Rothberg, oferece-nos uma visão bastante complexa da escravatura e de como isso tocou em tudo e estigmatizou todos e todas.9

Como sempre, que tipo de impacto uma exposição como esta pode vir a ter junto ao público geral, é imprevisível. O equilíbrio procurado e conseguido pelos curadores não deixa de comportar riscos e até, talvez, alguns problemas impossíveis de enxergar. Por exemplo, no caso da narrativa de João Mina, os curadores conseguiram fazer com que a vida desse homem chegasse até nós e nos interpele, embora quase nada se saiba sobre ele. O que temos é somente o relatório escrito do interrogatório a que foi submetido pelos oficiais holandeses, ansiosos por obter informações sobre as forças militares portuguesas, já que estavam ainda em guerra na tentativa de colocar nas suas mãos o controle do Brasil, para assim deixarem de ter de comprar aos portugueses essa mercadoria preciosa, o açúcar. No entanto, é como se a perspetiva que nos é dada continue ainda amarrada a esse sonho holandês de assumir o Brasil como sua colónia e à ilusão ainda hoje vigente que o colonialismo holandês, em comparação com o português, teria sido mais benigno. Outra oportunidade perdida – talvez a mais problemática – é a evasão a qualquer referência que estabeleça a correlação entre capitalismo e escravatura, se bem que amiúde nas várias narrativas, essa seja uma conclusão óbvia e inescapável.  Talvez isso resulte, conscientemente ou não, duma tentativa de evitar interpretações meramente economicistas, ou do medo que o grande público possa ser afastado da exposição por qualquer conotação Marxista?10 Podemos pensar que o público se sentirá na necessidade de questionar mais a fundo, e de investigar, como o mito da ‘inocência branca’ que está por detrás da ilusão nacional a respeito do ‘Brasil Holandês’ continua bem vivo hoje ainda, tal como Gloria Wekker expõe por extenso.11 Ou será que em vez disso se limitarão a querer saber mais sobre a Oopjen?

Sem sombra de dúvida ‘Escravatura’ por muitas e muitas maneiras, no seu posicionamento no coração da cultura de elite do país, enquanto dirigida a um público não intelectual, ou ao ir além da coleção histórica e trazer a si arte extremamente contemporânea e até interativa, é uma exposição não só de grande importância como até exemplar.  Em vez de entender um museu nacional como um repositório de objetos artísticos emblemáticos dos valores da elite ou então da sua fetishização de todos os que exclui e rejeita, os curadores aceitaram integralmente a sua responsabilidade educacional e o seu dever em contribuir para a vida cultural no presente. O que, mesmo assim, não evita de todo de nos deixar com a impressão que o fogo do Purgatório afinal ainda arde e muito há ainda a fazer para o extinguir.

*MEMOIRS é financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) no âmbito do Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação Horizonte 2020 da União Europeia (n.º 648624); MAPS - Pós-Memórias Europeias: uma cartografia pós-colonial é financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT - PTDC/LLT-OUT/7036/2020). Os projetos estão sediados no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

  • 1. Toni Morrison. Mouth Full of Blood: Essays, Speeches, Meditations. London: Chatto & Windus, 2019, 283.
  • 2. A exposição está prevista continuar até 29 de Agosto de 2021. Além disso, o foco paralelo em ‘Rijksmuseum e Escravatura’, em que rótulos adicionais que exploram as ligações com o passado colonial holandês serão adicionadas a 77 de obras da colecção permanente até de Fevereiro de 2022.
  • 3. O custo de um bilhete é de €20.00 com entrada gratuita a menores atá aos 18 anos de idade. O site internet proporciona acesso às dez narrativas que constituem o centro da exposição assim como a algumas das obras expostas. O catálogo, Slavery (Amsterdam and Antwerp: Rijksmuseum – Atlas Contact, 2021), pode ser encomendado por €27.00 diretamente da loja virtual do Museu ou através de várias livrarias na internet.
  • 4. A exposição no Centraal Museum de Utrecht foi realizada em parceria com ‘MOED: The Museum of Equality and Difference’, um projecto do Grupo de Estudos sobre Género liderado pela Professora Rosemarie Buikema na Universidade de Utreque. Sobre a exposição no Museu Casa de Rembrandt ver mais informação aqui.
  • 5. Para o contexto português ver a entrevista com António Pinto Ribeiro, ‘Representar a escravatura nos museus portugueses: que balanço?’ de 3 de Julho de 2017; e também o seu Peut-on décoloniser les musées?, Paris: Fondation Calouste Gulbenkian, 2019.
  • 6. Taco Dibbits, ‘together we write history’, Slavery, 7.
  • 7. ‘Slavery: An Exhibition of many voices’, Slavery, 13.
  • 8. Valika Smeulders, ‘Lohkay: beads versus laws’, Slavery, 266.
  • 9. Michael Rothberg, The Implicated Subject: Beyond Victims and Perpetrators, Stanford: Stanford University Press, 2019.
  • 10. Ver Cedric J. Robinson, Black Marxism, London: Zed Books, 1983; Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 2000; e John Bellamy Foster, Hannah Hollerman, and Brett Clark, ‘Marx and Slavery’, Monthly Review 72.3 (2020).
  • 11. Gloria Wekker, White Innocence: Paradoxes of Colonialism and Race, Durham, NC.: Duke University Press, 2016. A minha questão seguinte é um eco da ‘Coda’ deste livro, ’”But What About the Captain?”’. Refiro-me à questão colocada por um homem branco, liberal, que após ouvir uma palestra dada por Saidya Hartman em Amsterdão, em que ‘Hartman lê do seu livro Lose Your Mother, a comovente contra-história de uma jovem escravizada a bordo de um navio negreiro, o Recovery, severamente abusada física e sexualmente pelo capitão’ (168).

por Paulo de Medeiros
A ler | 15 Agosto 2021 | cultura, exposição, Memoirs, rijksmuseum, sociedade