A tessitura da memória

Tendo em conta os desenvolvimentos importantes no campo dos estudos sobre memória que tiveram lugar nos últimos vinte anos, poderíamos ser perdoados por pensar que havíamos entrado numa fase de profunda amnésia cultural. Em todo o mundo assistimos ao ressurgimento de forças empenhadas em reverter todas e quaisquer conquistas emancipatórias dos últimos dois séculos, seja no campo da política, das relações de gênero, das questões raciais, ou mesmo da ciência básica. Vocabulários há muito pensados como tendo sido expostos como fascistas e totalitários atingem-nos de novo em todos os meios de comunicação social, desde as salas de bate-papo pessoais mais suspeitas da internet até à imprensa séria e estabelecida. Comentando em The Guardianrecentemente, Owen Jones não usou eufemismos quando afirmou sem rodeios que “quando a história do renascimento da extrema-direita for escrita, o julgamento pronunciado sobre os meios de comunicação  britânicos será merecidamente brutal” (28 de setembro de 2018). Longe de ser algo de relevo apenas na comunicação social, a tentativa de voltar ao passado mais sombrio como se não houvesse memória nenhuma é repetidamente e tragicamente levada às ruas, seja em Charlottesville quando Heather Heyer foi morta em 12 de agosto de 2017 ; no Rio de Janeiro, quando Marielle Franco foi assassinada em 14 de março deste ano; no Porto, em 24 de junho de 2018, quando Nicol Quinayas foi brutalmente agredida por um guarda de segurança; ou em Chemnitz, em 26 de agosto de 2018, onde confrontos violentos entre grupos de extrema-direita deixaram claro até que ponto os males do passado parecem esquecidos. Neste último caso, a resposta rápida e maciça dos cidadãos alemães com a intenção de reafirmar a integridade de seu país foi um importante raio de esperança de que nem tudo está perdido ainda.
Space to Forget (óleo sobre tela) | 2014 | Titus Kaphar. Cortesia do artista e da galeria Jack Shainman, Nova IorqueSpace to Forget (óleo sobre tela) | 2014 | Titus Kaphar. Cortesia do artista e da galeria Jack Shainman, Nova Iorque
Outro desses raios de esperança, que esperamos possa reverberar e ser sentido fora do seu contexto imediato, é a exposição sobre “Histórias Afro-Atlânticas”, inaugurada a 29 de junho de 2018 no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MASP e no Instituto Tomie Ohtake, e que se manterá até 21 de outubro. Tudo nela é sobre memória e, no entanto, a memória raramente é mencionada em alguma das descrições ou textos teóricos que foram incluídos no segundo volume do catálogo que a acompanha. Fossem qual fossem as suas circunstâncias, esta seria sempre uma exposição impressionante, para não dizer monumental, que realiza uma variedade de funções em diferentes estratos. Por um lado, é uma educação sólida sobre a importância, o significado, e o alcance da arte Africana e da diáspora Africana, tal como é o sofrimento incomensurável trazido pela escravidão e suas consequências para os dias de hoje. Por outro lado, é tanto uma celebração da grandeza humana, quanto um recado lancinante de que não se pode esquecer; que o passado vive; e que, apesar de todas as tentativas de silenciar os oprimidos, negar a sua humanidade ou até mesmo apagá-los da História, a sua memória é um elo crucial entre gerações: os seus sucessos perduram e ajudam a informar e transformar o nosso mundo atual.
O número total (mais de quatrocentos), o alcance, e a variedade de artefactos reunidos é notável. Embora a maioria venha do próprio Brasil, muitos objetos também foram cedidos por outras instituições de vários países, incluindo os EUA, Angola e vários países europeus, com a notável exceção de Portugal. Várias razões podem ser imaginadas para tal situação, mas isso aponta para outra falta: Portugal ainda não conseguiu aceitar o seu passado imperial e colonial. Em certo sentido, outra função da exposição MASP / ITO - por mais afastada da sua intenção que seja - é levantar a questão de como esta discussão pode, ou deveria, ser debatida em Portugal, de como Portugal se situaria em tal discussão? Alguém pode talvez imaginar uma exposição destas em Portugal? Quando a opinião pública parece estar ativamente envolvida com a possibilidade, o desejo ou talvez a inevitabilidade de criar um museu para celebrar (mais uma vez) as “descobertas” e a contribuição de Portugal para a expansão europeia, pareceria igualmente, se não mais urgente, discutir em termos concretos, um museu que celebrasse todas aquelas pessoas e culturas com as quais Portugal travou contato, muitas vezes com as mais terríveis consequências, ao longo dos séculos, e que enriqueceu Portugal de todas as formas. Até que possamos ter essa discussão, até que possamos alcançar esse reconhecimento, resta uma ausência tremenda que não pode, e não deixa mesmo, de nos assombrar a todos.
Da imensa variedade de obras de arte em exposição no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, há uma em particular que gostaria de considerar brevemente: Space to Forget (Espaço para esquecer, 2014) de Titus Kaphar. É uma pintura a óleo grande e quadrada, medindo 162,5 por 162,5cm. Retrata o que se poderia facilmente confundir com uma cena surrealista: uma mulher negra cujo vestido azul se assemelha ao grande sofá por detrás dela, de quatro, olhando para nós. Sentado sobre ela, vemos, ou melhor, não vemos a figura recortada de uma criança. A mão esquerda da mulher segura uma escova de limpeza alongada, apesar de a mão e o braço serem quase transparentes, como se não estivessem realmente lá, ou se misturarem ainda mais do que o vestido com a casa. Este é um retrato altamente complexo, não apenas pelo que mostra, mas também pelo que escolheu não mostrar. A imagem com a qual dialoga principalmente é uma fotografia de 1899 do fotógrafo germano-brasileiro Jorge Henrique Papf. A impressão em preto e branco de 20 x 22cm mostra uma cena semelhante, exceto que não há mobília - o cenário de estúdio do fotógrafo mostra uma paisagem tropical - e a criança branca é claramente visível. Pode-se dizer que, ao remover a figura branca de sua pintura, Kaphar torna-a ausente, anulando a sua centralidade inerente à política racial que informa a imagem original e tantas outras como esta. No entanto, ao mesmo tempo, também a torna excessivamente branca, já que o vazio deixado na cena está em alto contraste com o restante da pintura. Não se pode deixar de ler isso como uma forma de representar a brancura como constituindo sempre uma forma de excesso e uma ausência vazia.
Stephanie Berzon, em Artslant, observou a importância que o confronto com o passado tem em grande parte do trabalho de Kaphar: “Kaphar dá forma e autoridade não apenas aos homens negros, mas também às mulheres que foram objetificadas ou apagadas completamente do cânone histórico da arte. Eles aparecem através de interrupções formais no processo de pintura - seja através de uma abertura rasgada na tela para expor um caso de amor inter-racial em Falling from the Gaze ou camuflar uma mulher com as cortinas verdes atrás dela em Lost in the Shadows”. Observa-se ainda um efeito semelhante em Space to Forget. A pintura regista a violência racial inerente à fotografia original e obriga-nos a concentrar a nossa atenção na mulher negra, precisamente a figura que deveria ter sido invisível, tal como a mobília, na imagem original. Obviamente, a pintura de Kaphar seria uma denúncia eloquente do racismo, mesmo se vista isoladamente e desprovida de qualquer contexto. Justaposta à fotografia de Papf, no entanto, ela assume uma outra camada importante, pois serve para lembrar e testemunhar a violência e a crueldade da escravidão até mesmo nos espaços mais íntimos e domésticos. Escusado será dizer que a pintura de Kaphar, longe de constituir qualquer tipo de memorial ou reflexão sobre a História, é muito mais um poderoso instrumento para canalizar o sofrimento e a resistência do passado para o nosso presente. Como tal, é útil referir pelo menos uma outra das pinturas de Kaphar, também de 2014. Intitulada Another Fight for Remembrance, com mais de dois metros de altura (228,6 x 182,88 cm), foi encomendada pela revista Time para uma capa destinada a comemorar os “manifestantes de Ferguson”, que haviam tomado as ruas após o assassinato de um adolescente afro-americano de 18 anos de idade, Michael Brown Jr., por um polícia branco em Ferguson, Missouri, a 9 de agosto de 2014. A pintura mostra os manifestantes negros com as mãos levantadas no ar, mas só se pode vê-los em parte porque a pintura foi adicionalmente coberta em grande parte com tinta branca. Esta técnica permite criar um modo de proteger a identidade dos retratados, mas acima de tudo, e isso pode ser visto em conjunto com outros trabalhos da mesma série, obriga-nos a ter em conta os processos de invisibilidade profunda e sistemática que a nossa sociedade ainda hoje inflige na grande maioria das pessoas. O embranquecimento proporcionado pelas camadas extra de tinta que velam, mas não apagam totalmente, as figuras que pedem justiça, torna-se uma metáfora igualmente poderosa, comparável em todos os sentidos ao vazio deixado pelo recorte da figura da criança branca em Space to Forget. De fato, os títulos de ambas as pinturas podem ser lidos em conjunto como significando aspectos complementares do trabalho da memória que permanecem cruciais para que se possa compreender como a nossa sociedade ainda perpetua as formas mais cruéis de desigualdade. A exposição em São Paulo não seguiu nenhuma forma de cronologia. Escolhendo, em vez disso, permitir o emparelhamento de objetos diferentes e criar um diálogo através do tempo e do espaço, os organizadores conseguiram uma maneira mais poderosa de aprender com o passado e deixar a memória daquelas vozes e figuras remotas – mesmo aquelas destinadas a permanecer no mesmo nível dos objetos, se é que eram visíveis –  assumir a sua dignidade humana e falar com eloquência a todos nós no presente para que possamos ganhar esperança através da sua resistência.

 

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Artigo produzido no âmbito do projeto de investigação MEMOIRS– Filhos de Império e Pós memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (nº648624), Programa Europeu para a Investigação e Inovação Horizonte 2020.

 

por Paulo de Medeiros
A ler | 18 Outubro 2018 | Histórias Afro-Atlânticas, Memoirs, memória, pintura, Titus Kaphar