Conexão Brasil-Portugal pelo cinema negro

Se a imagem desempenha um papel fundamental na sociedade contemporânea, para falar em democracia é necessário descolonizar o olhar.

Começa esta semana em Portugal e no Brasil, a 2ª Mostra Taturana de Cinema: Antiracismo e Democracia. A Mostra tem diversas parcerias de peso, como Coalizão Negra por Direitos, Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN)Wonder Maria Filmes (Portugal), Buala (Portugal), SOS Racismo (Portugal) e INMUNE (Portugal).

Entre os dias 14 e 19 de Setembro, o público de ambos os países terá acesso a curtas e longas metragens gratuitamente, além de debates e oficinas. A Mostra traz a premissa de que não é possível falar em democracia sem se comprometer com a luta antirracista.

A curadoria foi feita em conjunto por pessoas do Brasil e de Portugal comprometidas com uma visão do cinema que une arte, linguagem e narrativas potentes e capazes de gerar um debate construtivo sobre a sociedade que habitamos. O racismo e o seu combate é o eixo central. Os filmes foram pensados segundo eixos temáticos que nortearam as escolhas das obras:

  1. Experiências do corpo e da fé: religiosidade, estética e antirracismo

Este eixo traz dois filmes muito potentes que se complementam na mesma medida em que são absolutamente diversos esteticamente. Se por um lado o longa metragem Cavalo (Brasil, 2020, dir. Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti) traz na tela a potência artística e visual do processo criativo de jovens dançarinos, passando pela busca pela ancestralidade, o curta Joãosinho da Goméa - O Rei do Candomblé (Brasil, 2019, dir. Janaina Oliveira ReFem e Rodrigo Dutra) também trabalha esta temática, porém com uma linguagem diferente, mais crua e real. Ambos trazem a questão do racismo religioso, mas trabalham o tema sob a luz da dança, do corpo e da potência da transcendentalidade.

Em defesa da vida: direito ao território e ao modo de viver.

Como podemos falar sobre outras possibilidades de vida sem estigmatização nem fechitização? Quem pode contar estas histórias, e como se revelam as camadas fílmicas de quem busca um olhar em acordo com a ideia de que território e tradição são a base do que nos torna humanos? Três filmes lindos nos conduzem por caminhos distintos na observação do outro. Entremarés (Brasil, 2018, dir. Anna Andrade) e a sua beira da água, Nhemonguetá Kunhã Mbaraete (Brasil, 2020, dir. Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro) e o chão indígena e A Sússia (Brasil, 2018,  dir. Lucrécia Dias) com a dança e o quilombo fazem o caminho da imagem que grita.

Árvore da memória: busca da ancestralidade e combate ao apagamento e à invisibilidade

Raízes (Brasil, 2020, dir. Simone Nascimento e Well Amorim) é o caminhar de um homem em busca do seu passado, absolutamente instigado por seu próprio corpo. O ato de filmar uma descoberta é em si mesmo o encontro e o impedimento da invisibilidade. Pontes sobre Abismos (Brasil, 2017, dir. Aline Motta), Travessia (Brasil, 2017, dir. Safira Moreira) e Febre Amarela (Quénia, 2012, dir. Ng’endo Mukii) completam este eixo temático no qual diretores e protagonistas tentam não apenas questionar, mas dar soluções, propor formas de fazer com que a busca pelo passado não seja apenas onírica, mas traga concretudes poéticas, respostas que apontam rumos.

Muros do racismo: estruturas e fronteiras geográficas, materiais e simbólicas; Vidas negras importam: violência de Estado e genocídio da população negra; 

Sementes: mulheres pretas no poder (Brasil, 2020, dir.  Éthel Oliveira e Júlia Mariano) traz Marielle Franco e o seu legado na política. Como se dá a ocupação dos espaços institucionais pelas mulheres negras? Essa pergunta não vem sem dor, mas traz também a esperança de tempos que mudam. Este filme é um retrato de quem veio junto e vem depois de Marielle, nos fazendo crer que é possível novo futuro, mas que as lutas são eternas e o perigo não abandona.  Filhas de Lavadeiras (Brasil, 2018, dir. Edileuza Penha de Souza) e Thinya (BrasiL, 2019, dir. Lia Letícia) completam este eixo. Thinya é um filme belíssimo e extremamente provocador ao propor novas memórias por meio de uma sátira bastante interessante.

Vidas Negras importam: violência de Estado e genocídio da população negra

Três filmes potentes e distintos, produzidos e realizados em lugares absolutamente diferentes, mas que trazem a mesma ideia: existe um projeto de violência de Estado que é constantemente negligenciado por parte dos governos e dos cidadãos. Vive-se uma espécie de paz na guerra. O Caso do Homem Errado (Brasil, 2017, dire. Camila de Moraes), Eu Pareço Suspeito? (Brasil, 2018, dir. Thiago Fernandes) e O Bocado da Cova da Moura que Há em Nós (Portugal, 2014, 21’, dir. Edson Diniz e Edu Semedo)merecem ser vistos e amplamente discutidos enquanto ferramentas de ampliação das vozes contra a morte sistêmica.

Outras histórias possíveis: memória, vozes e disputa de narrativas.

Bastien (Portugal, 2016, dir. Welket Bungué), Arriaga (Portugal, 2019, dir. Welket Bungué), Dor Fantasma (Angola, 2020, dir. Kiluanji Kia Henda) e Eu Preciso destas Palavras Escrita (Brasil, 2017, dir. Milena Mafredini) são filmes que trazem experiências individuais e coletivas como forma de lidar com o colonialismo e a territorialidade. Quem habita as margens?

Cada um dos filmes que compõe esta Mostra completa um pedaço do ecossistema complexo da questão racial que vivemos em ambos os países, não obstante as particularidades de cada um.

O cinema pode ser uma ferramenta privilegiada para combater e romper com esses modelos hegemónicos de ver, pensar e representar o outro dentro de uma lógica de opressão. Ver-se em outra perspectiva, imaginar-se, descrever-se e reinventar-se pelo cinema é uma forma de descolonizar imaginários, interrogar as matrizes de representação opressoras e criar estratégias para a construção de outras, que em vez de reduzir, multiplicam as possibilidades de existência na ideia de diversidade.

A programação se encerra com a Caminhada São Paulo Negra, que faz um resgate de lugares importantes da histórias dos negros na cidade de São Paulo. O tour será realizado pelo Guia Negro, no Brasil. Em Portugal, a Caminhada Lisboa Negra será conduzida pela Batoto Yetu Portugal. Aqui nos apropriamos da história e da cidade, imergindo na experiência de olhar o entorno e pensar naquilo que nunca nos mostraram antes.

CURADORES:

Carol Misorelli (Taturana Mobilização Social), Fernanda Polacow (Wonder Maria Filmes), Jéssica Ferreira (Coalizão Negra por Direitos), Lívia Almendary (Taturana Mobilização Social), Maíra Zenun (Nêga Filmes), Patrícia Toni (Coalizão Negra por Direitos), Uilton Oliveira (APAN) e Anna Andrade.

Serviço

2ª Mostra Taturana de Cinema - DEMOCRACIA E ANTIRRACISMO

Realização:  Coalizão Negra por Direitos, Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) e Wonder Maria Filmes (Portugal)

Data: 14 a 19 de setembro

Preço: gratuito

por Fernanda Polacow
Afroscreen | 15 Setembro 2021 | antirracismo, Brasil, cinema, cinema negro, democracia, mostra taturana, Portugal