O ar em suspenso, sobre o filme 'Ar Condicionado'

Não é irrelevante que Ar Condiconado, um importante filme angolano (Geração 80, 2019 realizado por Fradique), carregue no nome o elemento mais fundamental da vida: é preciso respirar.

São setenta minutos de cinema potente em que as ações parecem suspensas no ar, e vamos junto com Matacedo (José Kiteculo), o personagem principal, em busca de momentos em que seja possível parar de verdade, sugar o ar com profundidade e se deixar apenas viver.

Matacedo é segurança de um prédio em Luanda, capital de Angola. É a personificação de muitos que, como ele veteranos de guerra, empunham um uniforme de combate para guardar um edifício caindo aos pedaços. E como o senso comum e preconceituoso apela constantemente, ele parece fazer muito pouco, ou passar a vida entre o contemplar do nada e as pequenas tarefas diárias de manutenção de algo que, provavelmente, não tem muito remédio.

Os edifícios históricos do centro de Luanda são a metáfora de um país que pouco progrediu no atenuar de suas mazelas internas. Tudo está por fazer. E quanto mais se faz, menos se conserta, pois que os problemas são estruturais e não perfumaria. E Matacedo, pelo seu caminhar, sabe que é tudo pura perfumaria, que os mesmos mandam, os mesmos obedecem. E que aos fracos sempre caberá dar uma resposta que pareça fazer algum sentido.

Eu ainda respiro absorta e quase levito ao som do fliscorne da banda sonora de Aline Frazão, compositora da música original do filme. Ela usa instrumentos de sopro potentes — que aspiram ar para devolver poesia — que ajudam a seguir. É pelas escadas acima e abaixo do edifício que fui me perdendo no caminhar de Matacedo, em seu passo pacato e contínuo, em seu respirar para não morrer.

Faz imenso calor na cidade e o rádio já adivinha que mais temperaturas altas espreitam na esquina. Mas, cuidado, algo estranho está a acontecer: os ares condicionados dos prédios estão a despencar, como maçãs que caem maduras das macieiras. Assim começa o filme que, a meu ver, apresenta imediatamente uma distopia quase possível num lugar como Luanda. A forma de abordar uma situação tão insólita é a magia do realizador. 

Filho de Angola, Fradique é de uma geração herdeira das sequelas coloniais e das guerras sem fim que fizeram do país aquilo que é, e também o objeto pelo qual é conhecido ou estigmatizado mundo afora. Caos, vibração, criatividade, pobreza, opressão. Mas talvez por saber tanto mas ter nascido nos anos 80 e portanto com alguma distância, o realizador tenha encontrado um modo próprio e particular de lidar com todas estas facetas, sem necessariamente falar delas.

Fradique criou um lugar onde caem ares condicionados como frutos de árvores, onde a carência de natureza é notável. Não há sequer uma planta, um verde, um pequeno quadrado de relva naquela selva de pedras. O símbolo da fotossíntese, do pulmão, do ar puro, é a falta constante nesta fantasia tão real. Luanda não tem árvores? Naqueles quarteirões onde se passa o filme, não. Nada. 

Então o ar vem de um aparelho, feito pelo homem. Aliás, assim como aquele prédio, o uniforme de Matacedo e até mesmo o calor profundo que acomete nossos tempos, tudo produzido pelos homens. Pode-se estender um pouco mais e pensar que os traumas de guerra que, certamente, motivam silêncios de um protagonista tão forte quanto misterioso, também são nossa responsabilidade.

Para quem assiste Ar Condicionado e desconhece cidades africanas ou especificamente Luanda, pode ser arremessado para um cenário pós-apocalíptico. Para mim, trata-se daquilo que sobrou num lugar depois de os homens tudo destruírem, especialmente a natureza. É um manifesto sobre o que será de nós, humanidade, quando tivermos que usar ares condicionados para lidar com —>os nossos problemas. Ar condicionado, aqui, como a metáfora de qualquer objeto eletrónico que tente mitigar os gigantescos problemas que restam quando todo o resto não restar mais. Estamos em um cenário de degredo ambiental e um salve-se quem puder de sobrevivência. Será que Luanda já não é isso? Ou o resto do mundo? Mas pode sempre piorar e talvez seja para lá que estejamos caminhando.

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Os ares condicionados estão caindo, estão podres. Um calor que não se aguenta - pelo menos os ricos não aguentam pois que aos demais só resta a resiliência. A ideia de que eles despencam sem aviso prévio e são, ao mesmo tempo que salvadores, armas perigosas, colocam lado a lado vida e morte. Mas novamente Matacedo parece imune ao medo de morrer atingido por um resfriador sintético na cabeça. Caminha e olha pouco para cima. Na verdade, caminha olhando para baixo, como que indiferente também aos prédios que são construídos pelos homens e depois abandonados, ou aos mandos e desmandos de um patrão rico ou mesmo de sua empregada doméstica, numa cadeia hierárquica perene e quase imutável. Este contexto todo, cenário decadente, desafio impossível, perigo iminente e personagens que levam a vida a pensar em si próprios, é o caldo que se perpetua pelo filme e vai descortinando camadas sociais. O filme é um constante descamar de subtilezas. Não espere por um momento catártico em termos de roteiro porque ele não vem. Mas as nuances estão todas naquilo que não é dito. 

A impressionante cena dos homens que jogam na calçada enquanto dividem o almoço talvez seja o anunciar de alguma humanidade. E, claro, o adentrar o mundo do Kota Mino, interpretado pelo veterano David Caracol, um andar sete e meio, um mundo suspenso, que eu sei em primeira mão que teve uma história real a inspirar este personagem, mas que, uma vez performado e impresso na tela, tomou ares, para mim, de esperança. Alguém que guardou a natureza possível. Há enfim, uma espécie de estufa, onde o ar pode sair frio e as plantas respiram junto com os personagens. Talvez o momento considerado surreal do filme seja o culminar de uma Luanda cujos resquícios da guerra que passou são o cenário futurístico do que pode ainda estar por vir. 

É muito bom poder acompanhar o amadurecimento do cinema de Fradique e sua parceria potente com a compositora e cantora Aline Frazão, que eleva o filme a um patamar mágico. Foi especial ter assistido à estreia mundial de Ar Condicionado no Festival Internacional de Cinema de Roterdão em 2020, pouco tempo antes do nosso mundo, este que habitamos agora, incorporar a distopia.

por Fernanda Polacow
Afroscreen | 17 Agosto 2020 | ar, Ar Condicionado, cinema angolano, distopia, Geração 80, mário bastos