Hélio Oiticica e a destruição das máquinas identitárias

I

Museu é o mundo; é a experiência quotidiana: os grandes pavilhões para mostras industriais são os que ainda servem para tais manifestações: para obras que necessitem de abrigo, porque as que disso não necessitarem devem mesmo ficar nos parques, terrenos baldios da cidade (como são bem mais belos que os parcotes tipo Aterro da Glória, no Rio) – a chamada estética de jardins é uma praga que deveria acabar – os parques são bem mais belos quando abandonados porque são mais vitais (meu sonho secreto, vou dizer aqui: gostaria de colocar uma obra perdida, solta displicentemente, para ser ‘achada’ pelos passantes, ficantes e descuidistas, no Campo de Santana, no centro do Rio de Janeiro – é esta a posição ideal de uma obra – como fazem falta os parques! – são uma espécie de alívio: servem para passar o tempo, para malandrear, para amar, para cagar, etc. 
Hélio Oiticica, “Programa Ambiental” (1966)

Hélio Oiticica em Núcleos, 1960. Hélio Oiticica em Núcleos, 1960.

No texto “Programa Ambiental”, escrito em 1966, Hélio Oiticica dá-nos pistas fundamentais para o entendimento do seu percurso artístico.
Como pano de fundo, o Golpe militar de 1964 que inaugurou uma ditadura que durou até 1985, marcada pelo famoso “Ato Institucional nº 5” (Al-5)1, em 1968, que ficou conhecido como o ano que não acabou. Um ano marcado pela forte agitação social e por uma constelação de protestos, manifestações, ocupações e greves, sobretudo no seio do movimento estudantil e no movimento operário2. Este imaginário de revolução e de transformação social mobilizou uma série de manifestações artísticas que se radicalizaram e procuraram, através de um percurso mais experimental, intervir nos debates do tempo e responder à repressão. 
As diversas tendências procuravam experimentar o carácter interdisciplinar da arte e convergir num espaço estético aberto, que pretendia romper com o programa evolutivo racionalista dos construtivistas e questionar o estatuto existencial da obra de arte3. É contra o regime estético convencionalista, acompanhado pelo culto da celebridade do autor que esta geração se insurge e desenvolve a sua prática artística, alargando as suas experiências plásticas e procurando ligar a arte à vida. Contudo, podemos observar uma diferente concepção de colaboração artística que, ao contrário da geração anterior, recusava constituir um grupo formal. Daí que, apesar de partilharem desde cedo a mesma atitude crítica face ao construtivismo, sempre recusaram estruturas de identificação e nunca se formaram num “movimento” organizado.
Ora, este modo de colaboração, aberto à contingência e à multiplicidade de encontros, procurava não apenas questionar a crise do objecto artístico mas o próprio artista enquanto elemento do fetichismo da mercadoria. Não admira, pois, que um dos aspectos que mais esteve no centro das preocupações artísticas tenha sido a reflexão sobre o espectador e a questão da participação, na qual se procuravam inventar novas formas de suspender a própria categoria de autor e espectador.

II

É neste ambiente experimental do início da década de 60 que Hélio Oiticica constrói “Penetráveis”, dispositivos tácteis, geralmente labirínticos, que poderiam ser experimentados e vivenciados pelo espectador. A ideia era transportar o espectador para um terceiro espaço, que não era nem o da obra nem o real, mas um espaço subjectivo. O “Projecto Cães de Caça” (1961), o seu primeiro “Penetrável”, era uma maquete de um jardim labiríntico, composto por cinco penetráveis, o Poema Enterrado, de Ferreira Gullar, e o Teatro Integral, de Reynaldo Jardim. O jardim seria um lugar “não-utilitário”, que remeteria a uma reintegração do espaço e das vivências quotidianas nessa outra ordem espácio temporal e estética4. A proposta era não mais produzir imagens para “contemplação” mas algo para ser experimentado em tempo real pelo espectador.
Maquete do “Projeto Cães de Caça”, 1961.Maquete do “Projeto Cães de Caça”, 1961.Esta ideia de “contemplação” não parece enquadrar-se, por exemplo, na crítica situacionista dos anos 60 do mesmo século, onde a mesma – sempre passiva - constituía a alienação que sustentava a sociedade do espectáculo. Oiticica parece referir-se à contemplação não como algo negativo ou intrínseco à condição do espectador mas como algo que deve ser superado pela arte, não para retirar o espectador da sua condição supostamente passiva, mas antes para operar uma participação que o implique corporalmente e que promova experiências e agenciamentos que se libertem das intenções do artista.

Entretanto, em 1964, Oiticica começa a frequentar a Escola de Samba Primeira da Mangueira (situada no morro da Mangueira, uma favela no centro do Rio de Janeiro), com o seu amigo e escultor Jackson Ribeiro, onde mais tarde vai morar e tornar-se passista5. A experiência nos terreiros de ensaios e nos botecos da Mangueira foi importante tanto na sua vida como nas suas experiências artísticas e podemos afirmar mesmo que constituiu o momento chave para as suas reflexões sobre a arte e a sua função social. A descoberta do ritmo e dança do samba marcou uma viragem na sua expressão, ameaçada pelo que dizia ser uma “excessiva intelectualização”6.

Luis Fernando Guimarães veste “Parangolé”, Nova Iorque, 1972.Luis Fernando Guimarães veste “Parangolé”, Nova Iorque, 1972.

Nesse ano constrói os primeiros “Parangolé”, que podiam ser estandartes, tendas, ou capas, que envolviam o corpo como uma espécie de abrigo. Os “Parangolé” eram como que
actos de extensão do corpo, que procuravam a incorporação dos elementos da obra como tal, numa vivência total do espectador, que chamaria agora de “participador”, onde toda a síntese da obra estaria baseada na ‘estrutura-acção’: “o acto do espectador ao carregar a obra, ou ao dançar ou ao correr, revela a totalidade expressiva da mesma na sua estrutura: a estrutura atinge aí o máximo de acção própria no sentido do ‘acto expressivo’”7A ideia das capas, que surgira no ano seguinte, consolidava essa efectividade da participação. O espectador vestia o “Parangolé”, que era formado por várias camadas de pano de cor que se iam arquitectando à medida que este se movimentava.
O primeiro “Parangolé” iria ser apresentado na exposição Opinião 658(1965), projectada por Jean Boghici e Ceres Franco, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mas Oiticica – acompanhado por uma multidão de pessoas da Mangueira, das escolas de samba e das ruas -, logo é proibido de entrar. A proposta-performance era ocupar o museu, com um cortejo de passistas da Escola de Samba. Ao ser impedido de entrar no museu, Oiticica acaba por apresentar a performance nos jardins do MAM. A propósito desse acontecimento, Rubens Gerchmann dizia: “foi a primeira vez que o povo entrou no museu, ninguém sabia se Oiticica era génio ou louco”9.
Se podemos encontrar algumas características dos happening 10em Parangolé, podemos notar, contudo, que Oiticica adopta uma estratégia de participação diferente: os Parangolés são construídos com e pelas pessoas do contexto onde o artista actua, no qual se explora precisamente os efeitos da indeterminação, reconfigurados agora em situações criadas pelo espectador-obra. Numa entrevista com Mário Barata, é até o próprio artista que afirma: “Não se trata de um happening, mas de uma tentativa de devolver as prioridades criativas para as ruas, para uma colectividade: neste ponto, mais do que um happening, seria a proposta de uma anti-arte; oposta inclusive aos conceitos que regeriam o próprio sentido de Bienal e, ao mesmo tempo, a sua salvação: elas, as Bienais, ou vão para propostas de ordem ampla, colectiva, ou cairão num academicismo universal, uma espécie de ONU das artes, o que seria lamentável e já começa a acontecer”11.
Oiticica procurava assim criticar a elitização do museu como espaço onde era operada uma impossibilidade de habitar, de fazer a experiência. A este respeito Giorgio Agamben refere-se mesmo ao Museu como o espaço onde “a impossibilidade de usar tem o seu lugar tópico”12, daí a analogia que faz entre museu e capitalismo13: É nesse sentido que propõe o acto de profanação como a tarefa política da geração que vem. Por acto de profanação entende o processo que retira as coisas do templo (fanum), ou seja, da esfera do sagrado (sacer), restituindo-as ao livre uso e à propriedade dos homens. Para o autor, o acto de profanar implica uma neutralização daquilo que profana, ou seja, um acto que desactiva os dispositivos do poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado14. Mas de que outro uso se trata? Agamben remete-nos, por exemplo, para a imagem de um gato que brinca com um novelo de lã como se fosse um rato15, usando conscientemente de forma gratuita os comportamentos da própria actividade predatória; ou para a imagem de uma criança que brinca com uma arma de fogo ou com um contrato de trabalho transformado em brinquedo o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito16
Em ambas as situações, o dispositivo não é cancelado, porém, quando se substitui o novelo pelo rato ou o brinquedo pelo sacro, o dispositivo é desactivado da sua finalidade, e, dessa forma, aberto a um novo uso possível. É nesse sentido que afirma que a actividade resultante dessa inoperância se torna um puro meio, ou seja, “uma prática que, embora conserve tenazmente a sua natureza do meio, se emancipou da sua relação com uma finalidade, esqueceu alegremente o seu objectivo, podendo agora exibir-se como tal, como meio sem fim. Assim, a criação de um novo uso só é possível ao homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante”17. Para o autor, a arte é por isso constitutiva da política por ser uma operação que a torna inoperante e que contempla os sentidos e os gestos habituais dos homens e que, desta forma, os abre a um novo possível uso.
Em Parangolé observarmos, pois, um novo possível uso da arte, onde a categoria de artista é ultrapassada pela troca constante de lugares e de coordenadas que cada Parangolé proporciona. A criação já não é nem tarefa nem privilégio do artista, pois a sua tarefa é simplesmente mudar o valor das coisas. Para Oiticica, a arte não deveria constituir-se na base de um assistencialismo nem o artista deveria ser um educador, no sentido de indicar um modo de vida às pessoas, deveria ser antes uma forma de disponibilizar e de organizar momentos criativos. É a partir de “Parangolé”, que formula o conceito de anti-arte, que pretendia:

estender nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc, e ao próprio conceito de ‘exposição’ – ou nos modificamos ou continuamos na mesma18.

O Parangolé é, pois, a chave para o que Oiticica vai chamar de arte ambiental: “o eternamente móvel, transformável, que se estrutura pelo acto do espectador e o estático, que é também transformável a seu modo, dependendo do ambiente em que se esteja participando como estrutura; será necessária a criação de ‘ambientes’ para essas obras – o próprio conceito de ‘exposição’ no seu sentido tradicional já muda, pois de nada significa ‘expor’ tais peças, mas sim a criação de espaços estruturados, livres ao mesmo tempo à participação e à invenção criativa do espectador”19.
Para Oiticica, a invenção desta nova forma de expressão não se tratava, como poderia fazer supor o nome parangolé, de uma folclorização na sua experiência ou a tentativa de uma valorização da “cultura popular”, que considerava uma camuflagem opressiva do “mostrar o que é nosso, os nossos valores…”20 mas de uma reinvenção da própria ideia de uma arte política. Tanto que sempre se distanciou dos projectos culturais da esquerda, de tradição marxista, que pretendiam figurar discursos sobre a “realidade brasileira”21 como estratégia de luta contra o regime militar.
Para o artista, a arte não era política só pelas mensagens que transmite ou pela forma como representa as estruturas, conflitos e identidades sociais, mas antes pela forma como configura a distribuição das regras sociais e modifica as relações entre as formas sensíveis e a vida colectiva, por isso, sobre a função política da arte dizia, “Sempre tem e deve ter, mas não deve ter isso como um alvo especial, mas sim como elemento; se a actividade é não-repressiva, será política automaticamente”. 

III

O conceito de anti-arte surge em Oiticica pela primeira vez em 1966 como “necessidade colectiva de uma actividade criadora latente”22. Para o artista, não se tratava mais de uma tentativa paternalista de “elevar um espectador a um nível de criação ou uma meta-realidade, ou impor-lhe uma ideia ou um padrão estético”23 mas de convidá-lo a vivenciar a obra de uma forma criativa. Esta perspectiva, por um lado, procurava libertar a arte das intenções do artista, e, por outro, retirava o espectador de uma condição supostamente inferior.
Podemos aproximar esta ideia da reflexão de Jacques Rancière sobre a condição de espectador. O autor faz uma análise da evolução das formas da arte crítica e da reflexão sobre a política na arte, procurando nessa crítica da crítica reequacionar a ideia que desde Platão faz do espectador um ser ignorante e passivo. Rancière põe em oposição, por um lado, o “furor direitista da crítica pós-crítica” e, por outro, a “melancolia da esquerda”. Por um lado, diz, “temos a ironia ou a melancolia de esquerda que nos pressiona no sentido de confessarmos que todos os nossos desejos de subversão continuam a obedecer à lei do mercado” e “(…) convida-nos a reconhecer que não há alternativa ao poder da besta e a confessarmos que estamos satisfeitos com tal facto”, e, por outro lado, “o furor da direita adverte-nos de que, quanto mais queremos destruir o poder da besta, mais contribuímos para o seu triunfo”24. É por isso que para o autor é preciso regressar ao sentido original da palavra emancipação, a saída de um estado de menoridade:

A comunidade harmoniosamente tecida que constitui objecto de nostalgias é aquela em que cada ocupa o seu lugar dentro da classe a que pertence, ocupado com a função que lhe compete e dotado do equipamento sensível e intelectual que convém a esse lugar e a essa função (…)25.

Para o autor a emancipação significa, pois, a ruptura desta conciliação entre uma “ocupação” e uma “capacidade” que traduzia uma incapacidade de conquistar um outro espaço e um outro tempo. É precisamente neste terreno que Rancière pretende reenquadrar as práticas estéticas, “como formas de visibilidade das práticas da arte, do lugar que ocupam, daquilo que fazem ao comum”. Por práticas artísticas o autor entende então as maneiras de fazer que “intervêm na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações que estas estabelecem com as maneiras de ser e as formas de visibilidade”26Podemos enquadrar esta concepção de arte naquilo que Rancière entendeu como regime estético das artes, ou seja, “a eficácia da suspensão de toda e qualquer relação directa entre a produção das formas de arte e a produção de um efeito determinado sobre um público determinado”27. Para o autor subsiste, na base da política, uma estética primeira, um modo de dividir e de compartilhar a experiência sensível comum. A estética é, assim, um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído, que define, simultaneamente, o lugar e o intuito da política enquanto forma de experiência”28.            
Trata-se, pois, de perceber de que modo as duas se articulam nesse espaço que ele chamou de partilha do sensível. O que chama de partilha do sensível designa a articulação entre a estética e a política, através de um “sistema de evidências sensíveis que dá a ver, simultaneamente, a existência de um comum e os recortes que definem, no seio desse comum, os lugares e as respectivas partes. Uma partilha do sensível fixa, simultaneamente, o comum partilhado e as partes exclusivas. Esta repartição das partes e dos lugares funda-se numa partilha dos espaços, dos tempos e das formas de actividade que determinam o modo como o comum se presta a ser partilhado e a forma como uns e outros tomam parte dessa partilha29.
É pois a partir destas questões que procuramos pensar as práticas artísticas de Oiticica, como “maneiras de fazer” que intervêm na distribuição geral das possibilidades e na produção de processos de subjectivação, onde a participação não é uma forma privilegiada de acção, mas um novo campo de possibilidade no campo da arte, onde o artista se coloca na mesma situação que o espectador. Numa entrevista, Marisa Alvarez de Lima, perguntava-lhe: “Está você querendo destruir todo um conceito de arte-artista?”. Oiticica dizia: É exactamente isto – chega de posições privilegiadas para ‘arte’ e ‘artista’: não podem mais pertencer a uma ‘elite’: ou participam da colectividade ou morrem com a sua posição beux-arts antiga e improdutiva”30.
Não se trata de escolher entre a passividade/actividade do espectador mas de a reconfigurar numa única experiência. Esta proposição é especialmente notável em “Parangolé”, onde, por exemplo, todo o espectador é participante; todo o participante é espectador; todo espectador-participante é obra, pois ela só existe com a sua presença. A anti-arte torna-se assim a proposição da fusão criador-espectador, que se transforma em conflito de relações estabelecidas e promove, segundo Rancière, uma eficácia estética: “eficácia da própria separação, da descontinuidade entre as formas sensíveis da produção artística e as formas sensíveis através das quais essa mesma produção é apropriada por espectador, leitores ou ouvintes. A eficácia estética é a eficácia de uma distância e de uma neutralização”31. Porque a política, para Rancière, é antes de mais a capacidade de quaisquer corpos tomarem com as suas mãos o seu destino.

IV

Eu acho que o trabalho criador não é nem sintoma nem reflexo da sociedade. Pode ter alguns sintomas e alguns reflexos, mas não é uma coisa nem outra. Eu acho que o trabalho criador propõe uma nova sociedade. 
Hélio Oiticica

Tropicália, 1967.Tropicália, 1967.

Em abril de 1967 Oiticica constrói a instalação “Tropicália”, que integra a exposição
Nova Objectividade Brasileira e se torna uma das suas obras mais importantes. “Tropicália” era uma instalação que se parecia com um cenário tropical – com plantas, árvores, areia, pedras, araras -, onde o espectador era confrontado com várias experiências “tácteissensoriais” até chegar ao labirinto, num espaço escuro, onde uma televisão estava em permanente funcionamento, a transmitir vários programas de entretenimento. Na instalação podíamos ainda encontrar vários poema-objectos, penetráveis e parangolés.
Em “Tropicália” observamos a passagem de um construtivismo para o que Oiticica chama de construtivismo favelar, onde constrói as suas obras com a mesma precariedade e engenhosidade com que as pessoas constroem as suas barracas na favela, ao invés da “coisa limpa e asséptica”. A instalação recriava a favela como oposição à visão da cidade totalizante32, onde Oiticica se propunha a criar um “ambiente para o comportamento”, baseado no contacto directo do espectador com os elementos da instalação – onde este é incentivado à pura disponibilidade criadora, ao prazer, ao lazer, ao mito de viver. A recriação do espaço-favela não se tratava de uma “estetização da pobreza” ou de uma folclorização da cultura popular mas, justamente, de uma valorização dos recursos artísticos fornecidos por aquele cenário precário. A esse respeito, o curador Fernando Cocchilarale observava: “Não se trata de um adesismo de um sociólogo que vai lá e faz uma residência e depois vai para Paris contar a sua experiência. (…) esse mergulho [na Mangueira] aparece na obra dele mediado de uma experiência e não de uma ilustração”33.
O ponto fulcral de Tropicália era, por um lado, operar uma crítica às condições de vida de uma sociedade que se formava a partir do empobrecimento da maioria da população e, por outro, elevar a potencialidade da favela como lugar de dissenso e de riqueza sensível partilhável. A favela surge aqui não como imaginário pobre e miserável mas como lugar singular de criação, de dança, de invenção e de alegria. Ou, como o próprio refere, “a descoberta de elementos criativos nas coisas consideradas cafonas34, questionando o culto conservador do “bom gosto”. O encenador José Celso Martinez Corrêa afirmava que Oiticica operava uma crítica não através “do teatro do oprimido, da lamúria, da lamentação ou do sofrimento do povo, mas com a vida que o povo produz, seja na arquitectura, na dança, no ritmo”35.
A atenção dada por Oiticica às particularidades do quotidiano em detrimento das grandes narrativas tem novamente a capacidade de baralhar as identidades (a figura do pobre como miserável) e contestar as imagens totalizantes brasileiras, promovendo assim potencialidades novas à paisagem da ‘exclusão’ e aos seus processos de subjectivação política. Para Oiticica, a emancipação só poderia ocorrer num mundo desligado de identificações, daí que recuse a ideia de “povo” como representação de um sujeito colectivo nacional. Tratava-se antes de pensar a subjectividade política do indivíduo na relação entre o indivíduo e o colectivo, não fixando o sujeito a uma existência individual ou a uma identidade colectiva36.
É uma comunidade não pressuposta, sem nome e sem povo, que Oiticica propõe com a ideia de Crelazer, uma comunidade do “lazer-prazer-fazer”, que tem como desígnio a criação de espaços de lazer “não repressivo”. A partir do conceito de suprassensorial (1967), que se conjugava com a arte com o objectivo de “criar, por proposições cada vez mais abertas, exercícios criativos, prescindindo mesmo do objecto tal como ficou sendo categorizado”37, que monta a sua primeira “cama-bólide”, uma cabine onde as pessoas se poderiam “deitar, experimentar sensações e recobrir modos de viver, de estar no mundo”38. O ponto essencial do crelazer prendia-se com a crítica à cidade modernista, onde o lazer, segundo o artista, não possuía qualquer conflituosidade com a lógica do sistema mas, pelo contrário, nela se inseria como extensão natural do trabalho. Tal como a arte, que, segundo Oiticica, se transforma em puro valor de troca, o lazer é cooptado pelo entretenimento ficando restrito apenas à “classe média”. É nesse sentido que propõe a criação de espaços “improdutivos, totalmente inúteis” como condição de um novo imaginário de sociedade que se constitui como uma comunidade que dependeria essencialmente da valorização do lazer criativo e experimental, fora da lógica sistémica do entretenimento.
O crelazer pressupunha estratégias de deriva e deambulação, que funcionavam como proposições de alteração dos fluxos urbanos, operando redistribuições na circulação comum. É essa proposta que, entre 1969-70, dá origem à instalação Éden, na exposição intitulada Whitechappel Experience, em Londres, na qual constrói espaços onde “o comportamento se abre, para quem chega, e se debruça no ambiente criado, do frio das ruas londrinas, repetidas, fechadas e monumentais, e se recria como de volta à natureza, ao calor infantil de se deixar absorver: auto-absorção, no útero do espaço aberto construído, que mais do que “galeria” ou “abrigo”, era esse espaço”39.
A experiência do crelazer dialoga de perto com algumas experiências urbanas situacionistas desses mesmo anos. A título de exemplo, podemos olhar para a “Nova Babilónia”40 (1959-1974) de Constant Nieuwenhuys, uma projecção de uma cidade futurista de “nível macro-arquitectónico e micro-urbanístico”41, nómada, anti-utilitária e permeável à criação de situações. Diz Constant: “Enquanto na sociedade utilitária se persegue a optimização do espaço, garantia de eficácia e economia de tempo, na Nova Babilónia priviligia-se a desorientação que promove a aventura, o jogo, a mudança criadora. O espaço da Nova Babilónia tem todas as características de um espaço labiríntico onde os movimentos podem ocorrer sem impedimentos de ordem espacial ou temporal”42. Sobre a circulação dizia Debord: “temos de passar da circulação como suplemento do trabalho à circulação do prazer”43, sendo o mais simples do acto situacionista a abolição de “todas as recordações da utilização do tempo. Uma época que até agora tem vivido muito abaixo das suas possibilidades”44.
Em Éden Oiticica reúne então todas as suas experiências e propõe o “Barracão”, um “ambiente comunitário de crelazer”:

Eu quero fazer uma comunidade enorme, uma coisa que seja totalmente construída pelas próprias pessoas, de uma forma totalmente orgânica. Por isso eu chamo Barracão, pois, embora eu não imite as favelas, é a forma de arquitectura que mais se aproxima de uma forma orgânica. Daí a analogia45.

A exposição, realizada na Whitechapel Gallery, além de fazer uma retrospectiva de praticamente todo o seu trabalho, é talvez o momento onde a sua obra se radicaliza. Em Éden, instalação constituída por penetráveis, tendas, ninhos, camas, bólides, camas-bólides, permeados por um piso com areia, palha, pedras, onde as pessoas se podiam deitar “à espera do sol interno, do lazer não repressivo”46, o artista pretendia criar espaços vivenciais que propunham figurar um “mundo-lazer”, em oposição ao utilitarismo característico do entretenimento da sociedade e da própria arte. Tratava-se, nesse sentido, de uma proposta radical para refundar o próprio espaço museu, que passaria a ser utilizado como espaço quotidiano – o espectador poderia literalmente ‘viver’ dentro da instalação artística, onde poderiam ser experimentados momentos de improdutividade pública. Uma diversão que procura, através do estranhamento, abrir uma passagem para outra dimensão da realidade.
Na comunidade do lazer proposta por Oiticica, os encontros entre os sujeitos quaisquer estão permanentemente abertos à contingência e ao acaso, daí que considere que já não se trata mais de uma forma de construir arte, mas antes uma forma de vida: “é muito mais uma forma de vida. (…) se eu disser que quero criar uma nova forma de arte, a coisa vai ser deturpada. Ela se transforma em objecto. É mais importante a relação das pessoas com as coisas no sentido relação em si”47.
Podemos aproximar esta ideia na concepção agambeniana de comunidade, uma comunidade sem povo, pois “o ser que vem é o ser qualquer”48. O Qualquer não supõe a singularidade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum, mas apenas no seu ser tal qual é. O autor descreve uma comunidade formada por singularidades quaisquer, tomadas independentemente das suas propriedades, que identificam a sua inclusão em determinado conjunto. Qualquer, do latim quodlibet, “contém, desde logo, algo que remete para vontade (libet), o ser qualquer estabelece uma relação original com o desejo”49. É na forma de vida que o ser qualquer habita a comunidade por inventar, “uma vida que não pode ser separada da sua forma, é uma vida para qual, no seu modo de vida está o seu próprio viver e no seu próprio viver o seu modo de vida – uma vida que não pode ser isolada numa vida nua. O que está em jogo então é uma vida nos quais os singulares actos, modos e processos nunca são simplesmente factos, mas sempre e acima de tudo possibilidades de vida, sempre a cima de tudo potência”50.
No cerne desta questão está precisamente a ideia de uma potência que é sempre uma potência de não-ser ou não-fazer51. É neste contexto que Agamben propõe repensar a fenomenologia operativa do político, a partir do conceito de inoperância. Para o autor, pensar a existência de uma potência é pensá-la sem qualquer relação com o ser sobre a forma de acto, ou seja, pensar uma potência de não ser, não fazer, de não passar ao acto. Nesse sentido a inoperância não é mera passividade nem ausência de obra mas uma práxis. Não se trata de uma forma de impoder mas uma forma de poder não fazer. É nesse sentido que a figura de Bartleby, o escrivão do conto de Melville, representa essa experiência contemporânea da pura potência, uma potência que nunca passa ao acto e que está sempre na plena posse de escrever no momento em que decide não escrever. “I would prefer not to” torna-se a essência da inoperância. A emancipação não passa por isso por uma construção de um existencialismo mas de uma ética de si que não se reduza à individualidade. É por isso que sugere que não se trata mais de pensar um poder constituinte de uma nova ordem política e jurídica mas precisamente de pensar a emancipação enquanto potência destituinte, a ideia de uma potência que se subtrai à máquina, tornando-a inoperante:

o resultado é uma transformação da ontologia do sujeito. Não um sujeito que usa um objecto, mas um sujeito que se constitui apenas através do uso, o ser em relação com um outro. O uso, neste sentido, é a afectação que um corpo recebe tanto quanto está em relação com um outro corpo52.

A inoperância refere-se, pois, a um processo que liberta o humano de qualquer naturalização fixa do seu, libertando-a de toda e qualquer finalidade e abrindo-a a nova usos possíveis. É nesse sentido que podemos inscrever o crelazer de Oiticica no paradigma destituinte, um acontecimento (no sentido que propõe Deleuze) que toma um tempo para celebrar a abstenção de todo o trabalho de finalidade produtiva. Tudo aquilo que se realiza – ou não realiza – no crelazer está liberto na sua economia da necessidade de um motivo ou finalidade.

  • 1. O Al-5 foi um decreto que dissolveu o Congresso Nacional e restaurou os direitos civis garantidos pela Constituição de 1967, instaurando uma série de medidas de censura à imprensa, e instituindo a tortura como uma forma de repressão generalizada. Este decreto foi considerado um dos instrumentos de censura mais duros de todo o regime.
  • 2. A este respeito ver Ridenti, Marcelo e Ricardo Antunes (2007), “Operários e estudantes contra a ditadura: 1968 no Brasil” in Mediações, vol. 12, n. 2, p. 78-89, Julho/Dezembro (http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/23370.pdf)
  • 3. Ainda em 1959 é publicado o “Manifesto Neoconcreto”, escrito por Ferreira Gullar e assinado por vários artistas, que defendia que a obra de arte teria de ser tornar uma espécie de organismo vivo, transportado para dentro do espaço real. Os artistas procuravam superar a dicotomia sujeito-objecto, característica da arte objectual da representação e da contemplação, e abrir caminho para novas experiências no campo da arte.
  • 4. Oiticica, Hélio (2011), Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 38
  • 5. Passista é um dançarino de uma Escola de Samba.
  • 6. Oiticica, Hélio (2011), Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 75
  • 7. idem: 73
  • 8. A exposição Opinião 65 provém do antológico “show-protesto” do teatro Opinião (1964), dirigido por Augusto Boal, do qual faziam parte João do Vale, Zé Keti e Nara Leão, que se tornou um símbolo político contra a repressão da ditadura militar. A música “Opinião”, de Nara Leão, foi cantada nesse concerto (“Podem-me prender, podem-me bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião”).
  • 9. Cit. in Salomão, Waly (1996), Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Relume/Dumará, p. 52
  • 10. Happening: género artístico que se desenvolveu precisamente nos anos 60 do século XX, que propunha realizar acções efémeras, retirando a arte das telas no sentido de a aproximar e envolver com a vida. O primeiro happening foi realizado em 1959 pelo artista Allan Kaprow (“18 Happenings in 6 parts”). Deste género performativo fizeram parte artistas como John Cage, Robert Rauschenberg e Claes Oldenburg.
  • 11. Filho, César Oiticica e Sérgio Cohn e Ingrid Vieira orgs. (2009), Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, Coleção Encontros, A Arte da Entrevista, p. 49
  • 12. Agamben, Giorgio (2007), Profanações, trad. Selvino José Assmann, São Paulo: Boitempo, pp. 73-74
  • 13. idem
  • 14. idem: 68
  • 15. idem: 74
  • 16. idem: 67
  • 17. idem: 74-75
  • 18. Oiticica, Hélio (2011), Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 78
  • 19. idem: 78
  • 20. idem: 65
  • 21. A este respeito, Marcelo Ridenti refere-se mesmo à existência de dois campos artísticos contestatários – os artistas “nacionalistas” e a “vanguarda artística”. Os artistas “nacionalistas”, mais próximos dos ideais do PCB (Partido Comunista Brasileiro) que procuravam, a partir do “sentimento de brasilidade revolucionário”, a defesa de uma identidade nacional e política do povo brasileiro e das suas raízes autênticas, que posteriormente abriria caminho para uma revolução socialista. A “vanguarda artística” – na qual Oiticica será incluindo –, que se afastava desse sentimento de nacionalidade e procurava aproximar-se das vanguardas europeias.
  • 22. Oiticica, Hélio (2011), Helio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 79
  • 23. idem
  • 24. Rancière, Jacques (2010), O Espectador Emancipado. Lisboa, Orfeu Negro, 2010, p. 71
  • 25. idem
  • 26. Rancière, Jacques (2010), Estética e política: A Partilha do sensível, Porto: Dafne Editora, p. 14
  • 27. idem: 88
  • 28. idem: 14
  • 29. idem: 13
  • 30. Filho, César Oiticica e Sérgio Cohn e Ingrid Vieira Orgs. (2009), Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, Coleção Encontros, A Arte da Entrevista, p. 4
  • 31. Rancière, Jacques (2010), Estética e política: A Partilha do sensível, Porto: Dafne Editora, p. 89
  • 32. É importante lembrar que o Brasil vivia nessa altura num turbilhão político, social e cultural, iniciado com a instauração da ditadura militar em 1964 e é precisamente no início dos anos 60 que se dá uma explosão de favelas no Rio de Janeiro, motivada pelo processo de industrialização que origina a expansão da área urbana para a periferia metropolitana, ao mesmo tempo que se inicia a construção de condomínos fechados e shoppings pelos bairros mais caros da cidade.
  • 33. Vídeo sobre a exposição “Museu é o mundo”, obtido em www.youtube.com/watch?v=FipU4XoPAsI
  • 34. Oiticica, Hélio (2011), Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 164
  • 35. https://www.youtube.com/watch?v=wq6ta7RXr0g
  • 36. A este respeito ver: Neves, José e Bruno Peixe Dias (2010), A Política dos Muitos. Povo, Classe e Multidão, Lisboa: Tinta-da-China
  • 37. Oiticica, Hélio (2011), Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 106
  • 38. Favaretto, Celso (1992), A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: EDUSP, p. 185
  • 39. idem: 112-113
  • 40. A este respeito ver o texto “Uma outra cidade para uma outra vida”, de Constant, que pode ser consultado em http://www.revistapunkto.com/2014/02/uma-outra-cidade-para-uma-outra-vid...
  • 41. Lefebvre, Henri (1972), Le droit à la ville, Paris: Editions Antropos, Collection Points, p. 258
  • 42. Nieuwenhuys, Constant (s/d), “New Babylon” in Paola Berenstein org. (2003), Apologia da deriva: Escritos situacionistas sobre as cidades, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, p. 29
  • 43. Debord, Guy (1959), “Posições situacionistas sobre a circulação” in Júlio Henriques org. (1970) Antologia, Lisboa: Antígona, p. 49
  • 44. idem: 56
  • 45. Oiticica, Hélio (2011), Hélio Oiticica. Museu é o Mundo. Cesar Oiticica Filho (Org.). Rio de Janeiro: Beco do Azougue, p. 89
  • 46. idem
  • 47. idem
  • 48. Agamben, Giorgio (1993), A comunidade que vem, Lisboa: Editorial Presença, p. 11
  • 49. idem
  • 50. idem
  • 51. Agamben, Giorgio (2007), Bartleby, Escrita da Potência - «Bartleby, ou Da Contingência», Lisboa: Assírio e Alvim
  • 52. Agamben, Giorgio. “What is a Destituent Power”. in Environment and Planning D: Society and Space, Vol. 32, nº 1. Consultado dia 10 de abril, 2015, consultado em http://envplan.com/abstract.cgi?id=d3201tra

por Mariana Pinho
A ler | 19 Abril 2017 | arte, Brasil, Construtivismo, ditadura, emancipação, Giorgio Agamben, Golpe militar, Hélio Oiticica, identidade, inoperância, Jacques Rancière, mangueira, Parangolé, partilha do sensível, penetrável, política, potência destituinte, Programa Ambiental, Projeto Cães de Caça, Rio de Janeiro, samba, Tropicália