Zululuzu: é isto, é aquilo? Ai não pode ser.

A partir do final do deste ano, Zululuzu entrará numa conjuntura muito favorável aos estudos e aprofundamento dos seus conhecimentos no campo da filosofia e de ciências mais ou menos exactas (sociologia ou psicanálise), pois estará mais exposto e sensível às flutuações da sua identidade sexual, correndo sérios riscos de não se identificar com o género humano (por muito absurdo que nos possa parecer) e as suas limitações antropológicas, colocando em crise todo o saber até aí acumulado para, então, tentar tudo de novo.1


Fui ver Zululuzu do Teatro Praga na semana passada. No S. Luiz peguei num jornal que estava em cima da mesa com materiais de divulgação. Na capa lia-se “Zululuzu Fo’sho”2. Num design hipertextual que compunha uma espécie de saturno na capa, fui de imediato atraída por aquele objecto que folheei enquanto aguardava a peça. Parei na entrevista a Jenny Larrue, assinada por Pedro Marum. Conheço-a do show do Finalmente e das marchas LGBT, e sabia que participara em vários filmes (como no último de João Pedro Rodrigues, Morrer como um homem [2009]) e peças de teatro (em várias dos Praga, como Sonho de uma noite de verão [2010] e Tropa-Fandanga [2014]).
Larrue conta um pouco da sua história. De como é ser performer e de como aos sete anos cantava “I love to love but my baby just loves to dance” em frente ao espelho de escova em riste, e de como fora parar ao Finalmente. De quando saia do show praticamente de directa para o curso de costura que estava a tirar durante o dia, dos outros lugares onde trabalhou – restaurantes, livrarias – e da sua relação com o cinema, o teatro em geral, e com os Praga.

A propósito das várias personagens que interpreta, Pedro Marum pergunta-lhe se alguma vez sentiu que o facto de ser uma mulher trans negra fez com que fosse objecto de exotização. Larrue responde despreocupadamente: “Nunca penso nas coisas dessa forma porque não acho que a minha transexualidade seja assim tão importante. Talvez seja para os outros mas para mim é apenas uma questão pessoal, sou igual às outras pessoas. É possível que tenha acontecido, não me apercebi… pelo menos não em contexto de trabalho. Já quando eu estava a tirar o curso [de modelo], era uma sensação: ‘Ai é homem, é mulher, é isto, é aquilo? Ai não pode ser.’” Sobre a questão de identidade mulher-trans-negra lembra um episódio nos discursos finais da marcha LGBT, quando um grupo de lésbicas negras sobe ao palco: “Elas tinham um grande orgulho ao falar como mulheres lésbicas negras. Fiquei admirada. Confesso que não sinto necessidade de debater essa questão da raça negra na marcha mas elas quiseram fazer essa distinção. Terão as suas razões com certeza, quem sou eu para as criticar.”

Apagam-se as luzes e o espectáculo dá início. Entra Maryne Lanaro num ‘monólogo’ com a parede, ambas iluminadas por uma luz branca. A actriz acusa a parede: “tu asfixias-me”, “não me dás espaço”, queixa-se. E acaba a relação como se de um enredo amoroso se tratasse. Segue-se André e. Teodósio e Jenny Larrue, a Ninfa Preta (um dos 72 heterónimos de Fernando Pessoa) e a revolta continua: o actor rebela-se contra a Black Box – a caixa preta cénica do teatro - concebida com o problema original de ser preta. É por isso que apenas vemos os sapatos dourados de Larrue, enquanto Teodósio grita revoltado: “Racista, objecto tecnológico para brancos, puta!”.

Ao longo da peça e sempre em jeito de paródia, no formato de revista à portuguesa, os actores entram num ping-pong discursivo com a Black Box, onde questionam sistematicamente a existência do dispositivo arquitectónico e a forma como este condiciona a criação teatral. Numa entrevista ao DN, Pedro Penim explicava: “A caixa preta é quase um fantasma, mas ao mesmo tempo uma segurança, é a garantia que nós temos que, seja em que teatro for, temos condições para nos apresentarmos. A caixa negra surgiu como espaço neutro, para não interferir nos espectáculos, mas nós questionamos isso: porquê esta cor? Porque se facilita os actores brancos, dificulta a apresentação de tons de pele mais escuros, é um dispositivo racista.”3

A Black Box é e não é uma metáfora

Em todo o espectáculo pressente-se uma tentativa de “tornar visível a norma e a presença de um poder que, habitualmente, é invisível”4, refere José Maria Vieira Mendes, um dos autores e encenadores da peça (com André E. Teodósio e Pedro Zegre Penim). Esse desnudamento do poder é materializado através do confronto com a Black Box, aqui metáfora do sistema, “bode expiatório para um discurso contra todos os discursos”5. Ao longo da peça os actores dão corpo a uma luta constante com o dispositivo, referindo as múltiplas opressões de que são alvo, reclamando um espaço para os que são deixados de fora, as histórias e personagens esquecidas, as vítimas do ‘é assim que as coisas são’6. Uma série de monólogos zangados com a Black Box acentuam o carácter de manifesto do espectáculo que se insurge contra “as normas que têm um poder normativo”. A palavra “normativo/a” é repetida ao longo de todo o espectáculo, enquanto um apontar de dedo ao dispositivo caixa preta. É-nos, portanto, apresentada uma caixa preta monolítica, estanque, que exerce poder sobre as “Outras”, as “Putas”, as “Excluídas” – vangloriadas na cena em que a personagem de Preciado (Joana Barrios) se insurge pela defesa de todas as “Excluídas”, as feias, as com bigode, as com bunda grande, etc.

Esta estratégia política é repetida ao longo do espectáculo. Assistimos a uma espécie de celebração das identidades subalternas - flutuantes ou indecifráveis – que insinua o objectivo de mostrar ao espectador os estigmas da dominação. Mas essa relação de poder dicotómica que nos apresentam - entre opressor e oprimido, entre caixa preta e as “excluídas” (uma caixa invisível?) - acaba por transformar-se, também ela, numa categoria única - a caixa das “Outras, das excluídas”, com algumas limitações. Essa necessidade de colocar em confronto uma identidade vs. Outras, de enumerar os autores da teoria queer e dateoria pós-colonial que são “Zululuzu” e que sustentam a desconstrução, proliferação das identidades – são citados muitos autores, como Deleuze, Donna Haraway, Biniavanga Wainana, Eduardo Metzner, Franz Fanon - em oposição à Black Box, acaba por transformar- se num exercício demasiado literal de “tornar visível a norma”, quase um exercício activista que pretender dar a ver.

Há, em Zululuzu, momentos em que a “identidade” é questionada/desconstruída conseguindo fugir a esse mecanismo. Por exemplo, quando a personagem de Teodósio entra em palco a gritar: “Rua ‘amor à profissão’, ‘autenticidade’, rua ‘temas da humanidade’, rua ‘produto cultural’, rua ‘trabalho com a comunidade’, rua ‘bichinho do teatro’!”. Aqui não há uma identidade vs Outras, antes um interessante desmontar das categorias dominantes que valem por si. Num outro momento entram em cena os 8 actores, circulando freneticamente pelo palco com estandartes coloridos de figuras ou “coisas” que se vão instalando no palco, compondo na sala a big picture de uma nova história da humanidade, com velhos e novos protagonistas.


fotografias de Alípio Padilhafotografias de Alípio Padilha

Aqui o humor e o absurdo de toda aquela apresentação manifestam acutilância na forma como apresentam essa alteridade que se opõe à Black Box. Ao baralharem a identidade “Zululuzu”, nunca fixada enquanto capacidade de resposta, mostram-nos que nela pode habitar tanto o DiCaprio, o Gandhi e golfinhos, como o Godard, o “internet explorer” ou mesmo Jesus Cristo. Já não são as identidades “subalternas” que são Zululuzu mas o Zululuzu que é todas as identidades. No jornal Fo’sho, lemos na contracapa um excerto do espectáculo que explora precisamente isso:

Et tu demandes, c’est qui tous ces gens? Je te réponds, moi on est nombreux. Ce n’est pas parce que les autres sont la majorité que je suis la minorité; je suis la minorité parce que, tous, nous sommes la minorité. Et si nous sommes tous la minorité, le mot majorité n’existe pas. La majorité n’existe pas, Boîte Noire. Le black n’a jamais été black avant d’être appelé black. Tu n’existes pas. Tu es la fiction somatique de tes trois murs, de ce noir raciste avec lequel je te peint et qui sépare le monde en différence et égalité, majorité et minorité, diversité et ressemblance.

Não importa quem era Fernando Pessoa, porque Fernando era muitas
  

Fernando Pessoa viveu em Durban (colónia britânica da África do Sul) durante a adolescência (cerca de 9 anos), pois o seu padrasto era o cônsul português de então. Pouco se sabe sobre a sua vida nesse período (1896-1905). As narrativas biográficas produzidas em torno de Pessoa ou mencionam esta informação e nada mais, ou negam mesmo a “influência de África” na sua obra, pois apenas num dos seus últimos poemas terá invocado o luar africano. “Influência de África” entre aspas porque é precisamente sobre essa ideia estática que os Praga operam. Vestido de Camões, Teodósio, que partilha novamente o palco com Larrue, conta-nos uma “cronologia” da vida de Pessoa nos anos que que viveu em África de Sul, numa espécie de voz-off que vai sendo interrompida com momentos de show musical e sobreposição de Jenny.
Um excerto:

«Em 1986 – Família Rosa recebe passaportes para ir viver para África do Sul
“Leva-me contigoooooooooooo” (…)
“Febre de Julho”, corridas de cavalos na África do Sul onde se passeiam governadores de calças brancas e suas esposas de chapéus emplumados com penas de avestruz, longos vestidos e guarda-sois rendados

Lisboa vs. Durban = terramoto vs. Caótico, aglomerado conquistado à selva tropical e pantanosa adjacente à lagoa baixa, cidade de um quarto indiana e um quarto zulu, metade europeia e um total de 32.000 pessoas
(…) Pessôa entre a selva e o mar: exotismo (…)

Pessôa no colégio de freiras irlandesas e francesas (st. Joseph’s convent school) (…)

(1899) Pessôa no Durban high school
(1903) Black Face: Minstrel Show + Ganguru (Black face japonês) Teca relata: “O Fernando estava sempre com ideias e, nessa noite, lembrou-se de pregar uma partida aos empregados que jantavam numa copa da casa de Durban. Pintou as nossas caras de preto deixando uma rodela branca à volta dos olhos, enfiou-nos uns carapuços que nós próprios fizemos de trapos brancos, retirou duma gaveta lençóis e, assim mascarados, direi melhor, mascarrados, subimos num escadote a uma bandeira de vidros que estava por cima da porta e que dava para a copa. O Fernando fechou o quadro da eletricidade [tocaram as campainhas] e nós apontámos com uma lanterna para as nossas caras. É evidente que os empregados daquela época, gente africana muito simples e ingénua, desataram aos berros e fugiram pela porta for.” O pai foi no dia seguinte ao bairro onde viviam os empregados mostrar os lençóis, o giz de cores e as camapainhas, para os convencer a voltar ao serviço. Não tinha sido fantasmas, nem almas de outro mundo. Foram pseudónimos.”»

A pergunta fica a pairar no ar: mas qual é a África que deveria revelar-se em Pessoa? Não fazendo esta pergunta mas deixando lá o rastilho, propõem-se a questionar uma certa imagem de África que emerge no imaginário colectivo, fazendo-nos pensar que “África” - seja lá o que for será sempre uma ideia de África - pode de facto aparecer de formas completamente diferentes em Pessoa. E que Pessoa é muitas pessoas e
muitas qualidades sem homem, como referem no início do espectáculo.

O problema é que, ironicamente, mostram uma série de imagens “africanas” supostamente contidas em nós, espectadores muito dados aos clichés, confrontando-nos com a nossa própria ilusão/ideia sobre África. Apesar da tentativa de sarcasmo, resvalam numa certa previsibilidade (propositada, é claro) nos exemplos escolhidos: um pôr-do-sol incandescente, leões na savana, crianças subnutridas, safaris, África como um só país, etc. etc. As imagens são exibidas num dos estandartes, e o actor vai folheando cada uma das “imagens-cliché” de frente para o público. Aqui o dispositivo teatral de representação surge como um constante “piscar de olho” ao espectador: os actores representam perante o público de espectadores – frente-a-frente – criando uma espécie de cumplicidade com os mesmos. Cumplicidade essa que nos vai tentando mostrar sim, estão a ver? Nós sabemos que vocês também sabem. Esse formato interactivo que montam com o espectador acaba por definir as regras do jogo que estamos a ver. Se num primeiro momento deixavam espaço para pensarmos essa imagem de África que temos na cabeça - e que até aí não associámos ao Pessoa - aqui, a literalidade visual, revestida de provocação, somada ao tom de denúncia permanente, fazem com que se perca esse espaço de reflexão autónoma e desilude nesse clássico tom de sobranceria perante as evidências. 
Se até aqui o espectáculo tinha a particularidade de ser um enigma cujo sentido tentávamos procurar, relacionar com outras imagens, associar a outras histórias, a partir daqui parece haver uma constante auto-explicação do próprio espectáculo que, quase de forma didáctica, nos vai mostrando por que é que Zululuzu não é sobre “África” ou sobre “Fernando Pessoa”. Nós, espectadores incapazes de compreeder o que vemos, ouvimos então “Ai, meu Deus, o que é que eles estão a fazer ao Pessoa? Que mau gosto.” Ou “Então o espectáculo não era sobre África? An?”. Activa-se uma espécie de relação pedagógica entre actor-espectador, que pretende suprimir a ignorância do segundo através de uma constante explicação do que este está a observar. É aqui, parece-me, que o potencial político de Zululuzu - enquanto ideia, conceito -  perde força.

por Mariana Pinho
Palcos | 3 Outubro 2016 | África, Dispositivo, Espectador, Fernando Pessoa, Teatro Praga, Zululuzu