Caros amigos brasileiros

Permitam-me que não vos fale por inteiro, pois dá-me mais jeito começar primeiro com o amigo preto? Tá certo?… Porreiro! 

Caro amigo brasileiro preto (da africanidade)

Caro amigo brasileiro preto, lamento imenso ter de te colocar este peso, mas creio que devo informar-te que, ao contrário do que por aí se diz, África não é um país. Pra ti pode ser triste, mas a chamada “Cultura Africana”, como tu dizes, não existe, porque a África não é homogénea, mas cheia de diferenças. Segura esta ideia a título de exemplo, só na Guiné-Bissau, no presente tempo, um país de cerca de dois milhões de habitantes, embora não sejam mais tão distantes como antes, há uma coisa de dezenas de culturas não semelhantes. Agora imagina toda a África e os seus bilhões de habitantes. Entendes, portanto?… Avante!

Caro amigo brasileiro preto, de novo lamento, meu mano, mas também tens de saber, no entanto, que preto não é sinónimo de africano. Preto é cor da pele, africano tem a ver com o continente. Há pretos europeus, há brancos africanos. Há africanos de todos os tons e feições, mas são de África, estão ligados a África. Por isso, então, muitas vezes não fica bem a tua tática, pois só conheces a África de nome, mas ainda assim não controlas a fome de inventar os teus movimentos para partir a loiça e cunhá-los de afro-qualquer-coisa, quando nem percebes o que querem os africanos. Bolas!, nem o próprio africano sabe o que querem os africanos, meu mano, pois somos tantos. Eu entendo a tua necessidade da procura de raízes, mas não te plantes num continente dividido por países, com se ele fosse apenas uma simples referência e uma muleta, quando é essência e vivência para os tantos africanos que querem relevar a sua africanidade, respeitando a sua unicidade. Parece uma contradição, não? Também acho, mas é assim. Enfim. 

Caro amigo, essa obsessão de falar de PALMITO que carregas por aí, não tem nada de bonito. Chamar aos mulatos de palmito, como se não tivessem já problemas infindos, é só mais ódio a ser cuspido. Cada indivíduo deve decidir o seu caminho, escolher com quem quer ter filhos, sem ter uma polícia negro-nazista a dizer que trai a sua raça porque escolheu casar ou procriar com alguém de outra praça. Já pensaste nas crianças que nascem dessa trança… Trança, rapaz, eu disse trança, não transa… Caro amigo preto, para quem a eito no pleito da cor reclama direito pra si mesmo, não estás a agir direito.

Caro amigo brasileiro negro (da identidade)

Caro amigo brasileiro preto… desculpa… negro… sim?… Okay! Olha, gostava apenas de te dizer para que mudes essa tua atitude de me ensinar como devo me comportar perante a minha pretitude. A minha origem não me causa nenhuma vertigem nem traz fantasmas que me afligem. Eu não sou afro-lusófono, afro-português, afrodescendente ou nada disso. Não me dilui no AFRO porque eu vim da Guiné, eu sei onde tenho o pé, entendes? E a minha origem é só um ponto de referência e não faz a minha essência, eu vivo pelas minhas migrações e pelas minhas próprias transformações e não por um ponto fixo fora da minha decisão. Não fui eu que escolhi a minha partida, mas escolho eu as metas da minha vida, mesmo que não consigam ser atingidas. E isso nem é ser não-panafricanista.

Caro amigo, incomoda-me imenso, a sério, o jeito néscio como criticas o meu modo de ser preto (como se existisse sobre isso um acerto), e a forma como achas que só tu sabes o modo certo de se ser preto. Caraças!, és tão intransigente com a questão da raça, e falas de maneira prolixa a tratar a raça como categoria fixa, enquanto prefixas tudo com AFRO ou NEGRO. Incomoda-me muito isso, amigo, principalmente porque há já anos que te conheço, mas só descobri que eras preto… desculpa, negro… depois de ter visto o teu post na internet a dizer que o eras. 

Também pudera!, olha, a Guiné foi onde eu nasci, mas só aos meus quinze é que descobri que também era preto, quando um branco me fez esse obséquio, porque até lá sempre fui chamado de vermelho. E nos últimos anos na Guiné sou chamado de branco, meu mano, não de preto, nem de vermelho, e adivinha de quê mais?, poizé!, de brasileiro. Portanto, meu caro, acho que está explicado o facto por que eu te achava branco. 

No entanto, aclaro, não tenho nada contra a tua identificação, sê preto, sê branco, sê arroz e feijão, isso não me causa nenhuma comoção, porque eu acredito na migração, acredito na trans-racialização ou raça-fluidismo, ou outro termo qualquer que represente a ideia, o que seja. Só te peço e agradeço que fales mais avulso e moderes os teus discursos quando falas da raça, caraças!, porque da minha perspetiva, às vezes parece que és só chalaça e pura pirraça.

Mas olha, não tomes as minhas palavras como verdades exatas, porque eu não dou as cartas, e nem falo em nome de toda a malta africana. E mais, há bilhões de nós que não concordariam com a minha voz; mete isto na tua noz e desata as tuas nós. Sou um simples africano (e acredita, mano, também sou europeu, ou como já me chamaram outros fulanos: negropeu!), não sou dono da África, nem da africanidade, nem da cor preta, por isso seja o que for que eu diga, não deixe que isso que te leve à fadiga. Mas, por favor, por favor, por favor, controla o teu motor. Aqui ninguém te nega, mas pega leve, pega, e para de cagar regras em nome da raça negra. Combinado? 

Caro amigo brasileiro académico (da existencialidade)

Caro amigo brasileiro académico, eu sei que é fixe estabelecer paralelos entre realidades, pois apesar de sermos pessoas diferentes, por sermos todos sociedades humanas, haverão sempre pontos tanto convergentes como divergentes entre Brasil, um país, e África, um continente. Mas acho inteligente que tu queiras estabelecer paralelo apenas entre o Brasil e a Guiné-Bissau, mas deixa-me dizer-te que os bairros e o urbanismo de Bissau não têm nada a ver com as favelas do Brasil. Ambos sim, podem ser reflexos de mau planeamento e da pobreza, mas a realidade social é diferente. 

Pretos nas favelas brasileiras resultam da política separatista do apartheid produzida num país de maioria negra e indígena, governado por pilantras brancos, enquanto que na Guiné, meu mano, os bairros são resultados de ausência de políticas de planeamento num país negro, governado por pilantras negros. Não há uma política racista na Guiné, caso queiras ver, o nosso buraco é mais embaixo. 

Acho que quando falo dos bairros, também falo de outras comparações que teces nas tuas teses, como as lutas sociais, as religiões tradicionais, o feminismo, ou a discriminação social. E mais, rapaz, a língua kriol, as nossas danças, as religiões de balobas, não são expressões de resistência ou de resiliência, são simplesmente expressões culturais e formais e modos de ser que tem os seus próprios ares, que se fixam ou se alteram conforme as ondas populares, aproximando-se ou afastando-se dos seus pares. 

As religiões locais também não são resistências, tem paciência, a Guiné-Bissau não é um terreiro de axés, orixás e candomblés; não vestimos roupas brancas a escravos de plantação para fazer cerimónias e dizer que são tradições… africanas… as nossas opressões tiveram outras configurações. Temos a nossa própria complicação acerca da questão da tradição. Só te faço este alerta: a África é imensa, procura a África certa para o que esperas.

Repito, amigo, A NOSSA EXISTÊNCIA NÃO É MERA RESISTÊNCIA, NÃO É MERA SOBREVIVÊNCIA. É vida e alegria e confusão e harmonia e choros e risos e festas e amigos e bestas e esgares e pesares e desaires. Portanto, pelamordideus, amigo, para de fazer os teus artigos… científicos… a chamar de resistência à nossa forma de existência, porque na Guiné somos nós que metemos o pé nos nossos próprios rabos. 

E só mais este parecer: o termo indígena tem conotações diferentes no Brasil e na Guiné. Na Guiné chamar a alguém de indígena é uma coisa indigna, portanto, toma cuidado com os termos quando fazes paralelos. E mais isto África não é toda ela uma savana com mulheres com capulana a cobrir o corpo, não é só cabanas onde só cabem uns pouco, não é só estradas esburacadas e crianças esfomeadas; na África há também países com cidades “modernas”, há cabrões engravatados sentados nos bancos dos bancos a chupar o povo, gordos como porcos por causa de excesso de mantimentos, tanto eles como os seus rebentos; há mulheres a viver em apartamentos e sem pano no corpo de todo, sem filhos às costas, e que achariam que é uma bosta aquilo que tu postas. A África é maior que a tua imaginação, é maior que a minha limitação.

Caro amigo brasileito branco (da colonialidade)

Caro amigo brasileiro branco, espero que não tenhas ficado chateado por te ter deixado por último. Ótimo!, porque é curto o que te vou dizer. 

Sabes, quando te ouço falar todo indignado sobre o Brasil ter sido colonizado pelos portugueses “branco”, fico admirado. Não achas que essa dissertação seria mais legítima se fosse feita pelos indígenas?… Ou mesmo pelos pretos brasileiros, que perderem o poleiro, quando os antepassados foram comprados como gado e levados amarrados para o Brasil, rebaixados e desumanizados e cuja ninhada ainda hoje sofre por causa de uma fracturação identitária que lhes foi forçada? Sim, Portugal transportava, mas Brasil comprava e punhas as cangas.

Sabes, o Grito da Ipiranga foi uma grande tanga, porque às tantas foi o filho do rei de Portugal que declarou independência, mas ficou com a residência e manteve a regência e foi a sua descendência portuguesa e a da sua nobreza e vassalagem egrégia que continuaram a construir a dominação, a comercialização humana e exterminação dos indígenas, a criação das insígnias, e mais ações opressoras.  Quer dizer, caso não consigas ver, que os opressores continuaram a ser os mesmos VELHOS PORTUGUESES, só mudaram a denominação, mudaram o reino dos reis, retocaram as leis, e passaram a chamar-se NOVOS BRASILEIROS. 

Por isso, mais uma vez, amigo brasileiro branco, acho que há um ponto em que devias deixar essa indignação para os outros, porque tu és um beneficiário direto do trabalho dos teus antepassados e não és prejudicado pela inferiorização racial, criação da colonização. Controla a indignação! 

por Marinho de Pina
Mukanda | 5 Novembro 2021 | África, africanidade, Brasil, colonialismo, identidade, pos-colonialismo, sociedade