Caro amigo branco (da privilegiação)

Caro amigo branco,

Antes de mais, vamos pôr isto em pratos lavados. De facto, com frequência é ignorado que não és o culpado do estado das coisas, apenas um beneficiário, ativo ou passivo, de um sistema de enganos criados e estruturados para reduzir a cacos determinados fulanos quando não são brancos. E quando não fazes parte dos prejudicados, és um privilegiado. Quando não tens de lidar com uns quantos obstáculos só pelo facto de seres branco, é isso, bacano, que é chamado de privilégio branco.

Sim, é certo, confesso que acho um exagero alguns dos meus companheiros que, por viverem no espeto e se verem a ferros, já não veêm o espectro e incorrem no erro de te apontarem o dedo como se na tua vida não houvesse medos e anseios e como se a tua vida fosse só alegrias só por teres nascido naquele dia com essa pele que te veste.

Caro amigo branco, é claro que os privilégios não foram criados por ti, quem te acusar disso está a ser indigno contigo. Todavia quando fazes a manutenção de privilégios, mesmo vendo que isso custa a outros os seus direitos, aí, com efeito, o objeto deste texto toma outro aspeto. Repito, embora haja gente que aja diferente, geralmente, quando a conversa recai sobre o tema privilégio é para pôr em considerações muitas situações pelas quais não tens que passar para ter uma vida mais ou menos desafogada nesta sociedade branca. A questão dos privilégios é, como tudo o resto, uma questão de contexto, por isso sem desleixo deve ser visto dentro do seu próprio eixo, para que o desfecho depois das análises não seja só uns pares de resultados grátis e um tanto rápidos.

A verdade é que os privilégios estão presentes em todos os sistemas existentes, tanto nos naturais quanto nos sociais, mas, porque somos animais supostamente racionais, por uma questão de justiça, podemos tentar alterar esta premissa e assim a liça facilita a vida a mais almas nesta trama.

detalhe de ‘O banquete 1’ de Thó Simões, 2021detalhe de ‘O banquete 1’ de Thó Simões, 2021

Muitos nascem com vantagens dados por um acaso chamado totoloto genético, nascem gordos ou famélicos, nascem rotos ou atléticos, nascem netos dos hércules, nascem restos de sémenes, num ignoto genérico, nascem meros nus gerados lá na rua, ou de métodos de médicos que medem cus virados para lua, de médicos profetas que usam provetas que aproveitam para produzir colheitas e alegam reduzir maleitas.

Toma nota que não importa a porta pela qual se transporta para este plano de existência, na essência, contudo, de modo contundo os pais fecundos trazem alguém para o mundo, mas ninguém no mundo escolheu ou pode escolher quando nascer ou onde nascer ou em que família nascer ou com que sexo nascer ou com que pele nascer. Somos todos, neste caso, frutos do acaso. Portanto, é claro que nasceres privilegiado não foi o teu plano, e cresceres privilegiado é o mais acertado também ser obra do acaso; portanto, nada digo de quando eras puto, no entanto, agora adulto, quando os teus atos têm impacto no quadro, meu bacano, aí deixas de ser um passivo, deixas de ser um mero cativo de um sistema educativo, e passas a ser um ativo de um sistema defetivo que reproduz desigualdades e não induz à equidade.

O contexto deste texto é o privilégio branco, que não é sobre ti, caro amigo branco, mas sobre esse sistema indutor de ódio baseado simplesmente na cor de todos. E quando não repeles esse jogo, no entanto, em reles confrontos, reduzes a nada os outros só para defender o seu ponto e dizes que o afronto quando o apodo de racista e de oco, então estás a ser dono e reprodutor deste sistema baseado na cor. Então aí já é mais do que sobre o sistema em si, é mais sobre ti, e com muita pena, caro amigo, porque nesta cena te tenho na perna como uma sarna que escarna.

Caro amigo branco, quando se fala de privilégio branco, não se está a falar que o branco não passa por trancos e barrancos, mas que o racismo estrutural cria resmas de mal que só as vão enfrentar pessoas de cor desigual à chamada ideal: a tua. O racismo estrutural atua e pactua com divisão que acentua a separação e conceitua segregação que perpetua a colocação dos outros em maus lençóis, nunca desfazendo os nós. 

Para não ficar para depois, vou dar-te uma série de exemplos de que me lembro. Se esses exemplos te surpreendem é só, apenas e somente só, porque nunca tiveste que pensar neles, porque nunca os sentiste na pele e porque te são exteriores ou porque te arrastam para fora da tua zona do conforto e te dizem o quão torto está o teu modo de ver e de perceber esta sociedade quando o assunto não te roça, e isso seria bom, sem troça. Sem querer causar mossas, nota que não te julgo com tanta força, porque eu também tenho a minha rota, eu também tenho os meus privilégios, e eu também não sei quanto esforço empenho para tornar o meu conforto em direitos para todos os outros perto de mim ao menos.

Dito isto, caro amigo, prossigo, quando nunca te tens visto em cenas como isto, descrito abaixo, considera-te por isso um privilegiado:

1. Muito comum: és uma criança e os teus professores e os teus padres e pastores e as figuras mais destacadas dos arredores e da tua comunidade e do teu país não têm a tua cor, parece-te que apenas os serventes e as gentes de limpeza, nos mais baixos patentes das empresas, têm a tua cor, não te vês representado e sentes-te atrapalhado a sonhar mais alto, ficas acanhado e parece-te que de facto só consegues ser apto, se quiseres destaque, se fores um atleta, se fores um rapper, ou ser fores um futebolista francês e não muito mais além.

2. Olha pois: és um petiz e os heróis do teu país que te ensinam ali na escola, são pessoas que foram da Europa para outras zonas, como “descobridores”, dominar pessoas de outras cores e arrebanhar pessoas da tua cor como mercadorias; quando és petiz e o teu pastor, feliz, te afirma que a pele preta é uma maldição concreta que Noé deu ao filho como emenda, para que a sua descendência seja serva da descendência dos irmãos; quando és petiz e a TV te diz que os criminosos e os perigosos, os violentos e detentos odientos são pessoas da tua cor, isso aumenta a tua dor e alimenta com fervor ideias fraturantes sobre a tua personalidade, levando-te a flutuar entre ódio e amor à tua própria cor, entre revolta e louvor aos feitos do teu “conquistador”, leva-te à alienação.

3. De repente te vês a não saber como explicar aos teus sobrinhos de um modo correto que os tipos pretos, típicos dos desenhos animados, só são burros ou maus por causa do racismo, porque os meninos são demasiados novos para entenderem o conceito, mas ao mesmo tempo demasiado velhos para serem influenciados pelos preconceitos televisionados contra eles mesmos.

4. Todo baralhado, assustas-te quando os teus sobrinhos voltam da escola e chamam à cor-de-rosa de cor-da-pele, eliminando assim a sua própria pele da normalidade cromática, tornando assim axiomática a ideia de estarem fora do padrão da cor, aceitando que são eles pessoas de cor e que o “branco” não tem cor, porque é cor-da-pele. Parece algo leve essa coisa da cor-de-rosa, mas causa sérias mossas.

5. Com ou sem brinco, os miúdos andam com uns ténis imundos, mas só é problema se ele for preto, tanto que a própria mãe já mete os ferros aos berros: “Hey lá, tu, queres ser parado pela polícia, é isso? Ajeita aí esse capuz e tira o brinco que te dá ar de bandido! Eu trabalho em três serviços para andares limpo. Está a comparar-te com esses miúdos? Eles são brancos filhos de ricos (mesmo quando não se trata disso), podem andar por aí, todos sem juízo que isso não lhes causa nenhum prejuízo”. Pois, caro amigo, ténis sujos nos pés de preto pode até ter como efeito um aperto da polícia, pois em preto é sinal de carência e a carência, na mente de suas excelências, é como uma evidência da delinquência.

6. Apesar das leis, é muito comum veres-te aflito e precisares de chamar um amigo, branco, para alugar a casa em seu nome para ti, porque o senhorio, com todo o brio, diz que não aceita indivíduos de outros países, para não ter que dizer cores, pois nem ouves as vozes que dizem que és português.

7. Também tem este: envias o teu currículo sem foto a candidatar-te para um posto, bom texto, bom contexto, e és chamado para entrevista, mas mal te pões em cima a vista, o lugar magicamente é ocupado por outra pessoa da lista, e ficas tu a pensar se foi do penteado ou se foi porque vestiste o fato errado e se facto, com esse quadro, chegarás ao descanso, pois, apesar do descaso e de saberes o motivo exato, não queres que o caso seja sobre a tua pele que te veste.

8. Nunca notaste, aposto, que num parlatório, entre outros, sobre o racismo, assim digamos, enquanto o branco fala sobre o preto e o que acha correto e quer tirar do peito nos plenos cinco minutos do seu tempo, o preto tem de usar quatro minutos desse tempo para mostrar o enquadramento e explicar com discernimento o seu intento, com cuidado extremo para não deixar a esmo pontos pequenos que podem ser tornados gigantescos e usados contra si mesmo. Sim, às vezes o mesmo vale para ti, confesso. Mas quando o preto tem sempre de te ensinar a história, a lógica e a filosofia para poder conversar contigo, isso é, caro amigo, supercansativo.

9. Só ouve: já viste (acho que sim) anúncios de casting para um filme? Nesses anúncios, para o elenco, o branco é genérico e entre parênteses o preto; e dos quarenta atores (se forem tantos), não há muitas cores, como se não houvesse um Martim Moniz em Lisboa, e quase só há lugar para um preto, que vem especificado até ao esqueleto (negro, entre 40 e 42 anos, com o dente do siso alongado, de 1,743 centímetros exatos, com voz de soprano e sotaque afro-cabo-verdiano, que anda com canadianas e come francesinhas). A descrição é exagerada para fazer piada, mas acho que entendes a parada.

10. Já vês, não vês? Quando te ligam para fazeres parte da lista de candidatura de um outro artista, porque a DGArtes exige um preto pelo menos no elenco para dar financiamento, reduzes o teu valor à cor da tua pele e não às tuas capacidades mentais. E mais, ao mesmo tempo que dizes “ainda bem agora que há este sistema de cotas”, também notas que olham para ti como um enjeitado, como se não valesses um pataco, e só estás nesse círculo por causa dos pós-colonialismos.

São estas coisas que se chamam de privilégio branco, porque não tens de lidar com esses trabalhos sendo branco. Não é uma questão de economia, ou de estar bem na vida, pelo menos neste contexto, porque sabemos certo que o capitalismo não brinca em serviço e patrocina cada vez mais ismos para nos manter divididos. Repito, caro amigo, repito, é tudo uma questão de contexto, o chamado privilégio branco é uma questão de contexto. Tanto que é irritante ver brancos bem-intencionados que não sabem um caralho sobre mim a olharem para mim, porque conseguiram comprar umas quantas caixas de pastel-de-nata na feira-da-ladra, com atitude de proprietários a dizerem-me inchados: “o meu privilégio branco”, sem nenhuma noção do ridículo. Mas sobre isso digo mais numa outra carta.

Caro amigo branco, a lista é extensa sobre o privilégio branco, e eu acho que já falei demais, e, mais, os exemplos são tantos e bem claros, suponho, para te ajudar a dar um reparo no teu ato de atacar o contrário. 

Caro amigo branco, não te peço para seres santo, só, apenas e somente só, não sejas um diabo. Existe sim, privilégio branco, apesar de, no resto, meu bacano, não seres ou não pareceres privilegiado.

por Marinho de Pina
A ler | 17 Novembro 2022 | branquitude, privilégio branco, racismo estrutral, sistema