O que não se resume à face fria da “massa”

São 17h30 em São Paulo e estão 30º mais 2º induzidos por práticas de auto-sugestão. Num bairro colado a Anhangabaú, num apartamento quente e sem plantas, dois humanos, tal como duas bandeiras, queimam-se numa cama sem lençóis, enquanto na cozinha um bule de água a aquecer demonstra-nos a lei da ebulição das coisas e na rua, entrando na boca do metrô, o choque de gorduras localizadas de 5 milhões de paulistas saídos de trabalhos e pseudo trabalhos engendra o rush diário. O fogo apesar de fátuo é a demonstração da maravilha terrestre do aquecimento global dos acontecimentos e eu acendo mais um cigarro perto da gasolineira. Sento-me a escrever.

O  que não se resume à face fria da “massa”

Queridos leitores de revistas e edições independentes:

Não sei se frustrarei as vossas expectativas. Só consigo escrever as coisas mais óbvias. Por exemplo: que as manifestações no Brasil que levaram milhões de brasileiros às ruas no mês de junho não são “conceitos”, isto é, procedimentos claros para livre uso nos jogos globais. Por exemplo: que tenho dificuldade em utilizar termos no plural como “PrimaveraS árabeS”, “acampadaS” ou “praças tahirS” porque, apesar da facilidade linguística, não existe tal coisa como singularidades “repetíveis”. Por exemplo: que as verdadeiras manifestações do Brasil, foram sobretudo manifestações de potência, isto é, de potência de obter mais potência para a sua população. E que essa potência é difícil de cercar através  de datas, números, testemunhos e trajetórias e também não se resume à face fria da “massa”,  impenetrável conceito de bolo humano que se move uma única direção.

Por exemplo, que a manifestação não acabou,  amanhã há mais, dura até que os corpos parem, ou até que se escreve um texto (por exemplo agora, o meu espírito para por uns instantes sobre o écran do computador) para logo recomeçar. Por exemplo, que os movimentos da América Latina não podem ser um foco de luz para “inglês ver”, isto é, para virar a pele branca do europeu do avesso e criar uma nova fé,  apaziguando um desencantamento arrastado das ultimas décadas de história europeia porque agora “na ásia e na américa latina é que está  a dar”.  Por exemplo, que existe uma expressão no Brasil que eu amo. Você pode até dizer que eu estou por fora, canta a Elis Regina em “Como nossos pais”. “Estar por fora”, é não se enturmar, isto é, não se sabe o que está a realmente a acontecer, não se domina o contemporâneo e fica-se fora da discussão. Ora, eu adorava pensar que “estamos todos por fora” no que respeita entender o que se passa no Brasil hoje. Enquanto as nossas antenas subjetivas, as nossas galáxias visuais de mundo, não param de tentar eleger uma nova fé para a política, falta replantar a raiz do inadvertido. Se um movimento esmagador de pessoas servisse apenas para dar luz a outros cantos do mundo, de que serviria, de facto, pensar alguma coisa a partir do Brasil, que não fosse apenas para dar a chave da repetição a uns (por exemplo, os europeus), e o estatuto de referência a ser ultrapassada a outros (por exemplo, os brasileiros)?

Na verdade, gostaria de saber falar-vos melhor sobre este país que hoje me habita. Porém sou uma “brasileira imberbe”, uma portuguesa com as barbas velhas da europa, que se mudou para São Paulo há menos de 12 meses e que ainda está plantando a raiz do inadvertido por aqui. É uma raiz forte mas acho que não conseguiria dar conta da tarefa sem me socorrer de outras vozes.

Ora, dois dias depois de uma das maiores saídas à rua dos brasileiros – dia 20 de junho de 2013 estiveram milhões na rua  passando em todos os canais da TV – reparei  numa figura curiosa do Rio de Janeiro que eu vinha seguindo pelas redes sociais desde que cheguei ao Brasil.  O nome de guerra desta figura nas redes sociais já era irresistível – Paula Vândala Profissional Kossatz – e eu vinha seguindo todas as suas notícias, pois reparei no seu engajamento profundo e tentei de alguma maneira não “ficar por fora”.

Nesse dia, Paula postou um longo texto sobre os acontecimentos desde a sua primeira saída à rua ainda em 2012, descrevendo pormenorizadamente o horror da violência policial da Polícia Militar. Claro, falta dizer que no Brasil, não existe polícia civil, mas apenas uma polícia militar que vem do tempo da ditadura. Falta dizer também que, na altura das manifs em Junho,  jornalistas na TV chamavam as bombas de gás lacrimogénio lançadas por essa polícia militar de “bombas de efeito moral”.

Mas avancemos. Quando vi o texto da Paula Vândala Kossatz tive a certeza de que a queria entrevistar para o Jeux Sans Frontières.  O retrato que esta Vândala (“vândalos” é como a presidente Dilma Roussef e as redes televisivas descreveram a população civil para justificar a violência policial) faz das manifestações brasileiras sem cair no tango da revolução espontânea, quase bêbeda, quase torpe, parece-me importante para pensar uma ideia de comum a partir do cruzamento de experiências individuais.

Vamos então abrir um corredor, uma microscópica vereda de necessidade. As manifestações no Brasil ainda nem começaram. Elas abrem os caminhos, redistribuem os ventos, busca-pólos de desejos, de caras anónimas. Paula é nome sem conteúdo. Paula é vândala e vendaval.

 

ENTREVISTA COM PAULA VÂNDALA KOSSATZ

Mas quando arrombaram a porteira da rua, muitos outros desejos se manifestaram. Falamos de desejos e não de reivindicações, porque estas podem ser satisfeitas. O desejo coletivo implica imenso prazer em descer à rua, sentir a pulsação multitudinária, cruzar a diversidade de vozes e corpos, sexos e tipos e apreender um “comum” que tem a ver com as redes, com as redes sociais, com a inteligência coletiva. 

Peter Pal Pélbart, texto publicado no Jornal “A folha de São Paulo” a partir das manifestações brasileiras.

Fala-nos um pouco do aparecimento das dezenas e dezenas de movimentos sociais no Brasil que encaminharam a explosão das manifestações de junho.

Na verdade, aqui no Brasil há uma grande falta de consciência política, sobretudo desde os últimos 30 anos, acho que desde o movimento da Diretas Já em 19851 não houve praticamente mobilizações fortes no país. Houve claro o impeachment do Fernando Collor de Mello2 mas ai houve uma grande mobilização representada pela Globo, não necessariamente uma mobilização “popular”. Então, a gente está há mais de 30 anos sem uma discussão política, uma discussão de rua, de ação, uma discussão “presencial”.

Por outro lado, há a tal da “crise da representatividade” que muita gente vem falando. Todo mundo sabe dela mas faz cara de paisagem, achando que está tudo bem, mas não está. O sistema executivo, legislativo e judicial brasileiros estão profundamente corrompidos.

O que une os movimentos sociais é isso mas na verdade o processo da sua vinda a público, sobretudo aqui no Rio,  começou muito claramente com a Copa do Mundo e as Olimpíadas e toda a onda de despejos pela cidade inteira, a privatização do Maracanã, toda a questão com os moradores daí. O conflito tornou-se muito forte. E na verdade desde o ano passado que a gente vinha fazendo muitas ações no Maracanã, até por conta dos movimentos dos índios Guarani-Kaiowá3.

Aí a coisa explodiu, ou seja, tornou-se uma luta contra essa cidade-modelo, essa cidade padrão que eles estão querendo desenhar para a Copa do Mundo, aumentando os preços da Zona Sul4, botando Unidades de Policia Pacificadora nas favelas5. Os movimentos civis juntaram-se contra esse Rio de Janeiro que, de um dia para o outro, virou mais caro que Nova York e Paris, sem qualquer tipo de serviço publico.

Como se desenrolaram as manifestações em Junho?

Em São Paulo, as manifestações começaram com o Movimento Passe Livre (que se rebelou contra o aumento dos transportes e defende a mobilidade livre dos cidadãos na cidade). Começou perguntando: que transporte é esse que nos querem dar?

Depois no Rio, aconteceu a Copa das Confederações e ai o Sérgio Cabral (governador do Rio de Janeiro) mexeu na paixão dos cariocas – que é o futebol – porque também mexeu no templo dos cariocas que é o estádio do Maracanã. Ao fazer dos ingressos para assistir um jogo de futebol custarem 250 reais, ele retirou aos cariocas o futebol. Assim, no dia 6 de junho no Maracanã, depois do que se passou em São Paulo com o Passe livre, no Rio teve todo o tipo de gente na rua, famílias, crianças, saíram para se manifestar. Saíram gritando contra tudo – “tem um bilião e meio para investir no estádio, mas não tem transporte! Não tem saúde! Não tem educação!”. Desceu a favela da Rocinha dizendo: “vocês querem fazer um teleférico novo mas a gente tá pedindo saneamento básico!”.

Era evidente para todos que HAVIA DINHEIRO, que o Brasil não era um pai pobre. Ou seja, ficou claro que o investimento na cidade é apenas para os estrangeiros que vêm à Copa do Mundo, e tudo na lógica de PPP, abreviatura para “parcerias publico-privadas”. E desde Junho, desde as grandes mobilizações até hoje,  tem ações na rua no Rio de Janeiro todo o “santo” dia, ninguém sai da rua! Aqui a situação é totalmente evidente….

Na verdade, passados praticamente 3 meses desde as grandes manifestações, eu tenho a sensação que no Rio é que podemos dizer que há uma “manutenção” e até “crescimento” dos movimentos de Junho. Todos os dias se houve falar de gente saindo às ruas, que o movimento não foi estagnado. Mas também todos os dias ouvimos falar de uma imensa violência policial.

 É. Mas a copa e as olimpíadas fizeram esse trabalho. E claro, o Rio é a CIDADE MARAVILHOSA! O mundo inteiro está de olhos postos nela porque o final da copa vai ser no Maracanã, para além de Copacabana e Ipanema, mulheres, caipirinhas, cerveja, carnaval, futebol… e é muito dinheiro investido!

E toda a sabe que no presente, o Brasil ainda é uma estrutura de ditadura que se governa para as elites, só que com a chegada dos Mega-eventos, ficou tudo muito mais exposto, sobretudo nas formas de repressão policial.  Por exemplo, os eventos mais violentos que saíram nas televisões a 16 e 17 de junho, não foram os primeiros, já no início do ano quando fizemos ações com os índios da Aldeia Maracanã6, fomos todos expulsos com bombas de gás lacrimogénio. E ninguém estava a fazer nada! Foi a primeira vez que eu recebi essas bombas de gás em cima, tomámos todos gás de pimenta na cara, eu, senhoras, crianças. Vi polícias disparando com balas de borracha. E naqueles dias eram poucas pessoas, umas 150 pessoas, nem sequer daria para dizer que representávamos uma ameaça.

Caetano Veloso Black blocCaetano Veloso Black bloc

E qual é tua sensação em relação ao futuro dessas mobilizações? Lembrei-me do Zizek numa entrevista sobre as manifestações na Turquia,  da primavera árabe ou do Occupy Wall Street, dizendo que estas demonstrações podem funcionar como uma “bebedeira” das populações que, no dia seguinte, acordam de ressaca e já não sabem como proceder.

Bom, parece-me que no Brasil agora, há claramente um paragem estratégica dos movimentos, pelo menos no que significa ir para a rua, uma paragem para pensar. Não vale a pena continuar a sair sempre para a rua sabendo que vamos lidar com um monte de polícia armada, despreparada, que vai partir para a bomba e a arma sem pensar. É como cutucar onça com vara curta!  E está também claro que o Governo não quer ouvir a nossa voz, somos “inimigos”, “criminosos”. Mas nós queremos que a sociedade civil continue em diálogo com a gente, e despertar os que ainda não se juntaram. E por isso estamos também reunindo todas a media independente que vem cobrindo os protestos e estamos a tentar criar formas de cooperação, coisa que até agora ainda não tínhamos conseguido

Porém, o caminho de crescimento ou decrescimento dos movimentos sociais é ainda incerto. Por exemplo, há uma tentativa de criminalização dos movimentos, por parte do Governo e da media, mas sabemos que não é bem assim. Teve toda a história dos Black bloc que ajudou, pois eles aparecem de cara tapada e destroem bancos.  Claro que na verdade, para mim, não funciona simplesmente destruir bancos em todas as manifestações, ou melhor, para mim, o recado ficou dado partindo bancos um par de vezes. Mas de que serve de que destruir bancos em todas as manifestações? Parece-me que agora os Black bloc terão que redefinir o seu discurso e ação, porque fica muito fácil para o governo e medias criminalizarem o seu movimento. Eles vão ter que dar um passo para a frente, porque o Governo engoliu-os.

Mas este processo de mobilização é um processo que, na verdade, ninguém sabe ainda onde vai parar, apenas sabemos que vai demorar anos. Não se vai resolver rapidamente, tipo em 2016! É um processo dos brasileiros, é um processo de consciencialização política. Hoje, por exemplo, pela primeira vez eu vou a um bar qualquer e vejo os meus amigos a falar de política. No ano passado eu queria mudar-me para Berlim porque estava simplesmente farta de ser a chata que só fala de política! (risos).

Portanto, é um caminho sem volta. Tem muita gente começando a pensar em política, seguindo um processo de aprendizagem de como pensar a cidade, relações e instituições. Tem gente de todos os lados, desde faculdades, associações, escola. E o Governo vai sendo atingido, ele teme os nossos avanços. Mas dizer que as mobilizações da população são acéfalas e sem foco no Brasil é fácil, porque Tudo é foco. TUDO! Saúde, transporte, congresso, corrupção geral, tudo é problemático no Brasil! Disseram que o Brasil melhorou nos últimos anos mas eu gostava que me dissessem onde. A população continua analfabeta. Entrem na Rocinha7 se quiserem saber mais!

Que características é que os movimentos precisam preservar na tua perspectiva? Estou a pensar nas polémicas recentes com alguns grupos de média e cultura livres que foram acusados por seu funcionamento interno, seguindo lógicas de organização capitalista, mesmo tendo introduzido uma moeda alternativa – o cubocard. Isso deu a maior polémica…..

Bom, eu acho que se pelo menos conseguirmos preservar a noção de que cada um faz segundo o que pode fazer, em vez de seguir um “fora” ou uma liderança já seria muito.  Não serve nem a verticalidade do poder antigo, nem a horizontalidade com a lógica do centro gravítico, com alguém no meio chamando à atenção.  Por isso, para mim não serve fazer parte de só um grupo, eu preciso transitar entre vários, passando informação entre eles.

E claro, é preciso ter uma certa paciência, gostar de micro-respostas, ir resolvendo pequenas questões. Talvez por isso seja tão imediata a reação de ir numa manifestação e tirar uma fotografia com smartphone e publicar na hora.

O brasil tem a tendência para preferir as soluções grandiosas mas eu acho que funciona melhor a escala pequena, e necessariamente ela afetará a escala maior. Não tem solução católica , ideal ou metafísica, eu mudo o mundo com duas mãos, até onde a minha voz alcança, os meus posts , os meus emails,  rede é esse trabalho de formiguinha. 

Este texto foi publicado na revista Jeux Sans Frontières, #2 (2015)

Jogos Sem Fronteiras encontra-se à venda na STET, A+A, Letra Livre, 111, Livraria Portugal, Livraria Barata e Livraria Pó dos Livros.

Website Informações e reserva: sansfrontieresjeux@gmail.com  

  • 1. “Diretas Já” foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas, que fez parte do processo de desmantelamento da ditadura no Brasil em vigor desde 1964.
  • 2. Movimento civil pelo pedido de impugnação de mandato do presidente Fernando de Collor em 1992. Nos primeiros 15 dias de mandato, Collor lançou um pacote econômico que levou o seu nome e que bloqueou o dinheiro depositado nos bancos de pessoas físicas e jurídicas. Embora inicialmente tenha reduzido a inflação, o plano trouxe a maior recessão da história brasileira. Collor foi acusado de corrupção e desvio de milhões dos cofres públicos.
  • 3. No texto que referi anterior da Vândala no facebook na altura das manifestações de junho podia ler-se: “No dia 23 de outubro de 2012 se iniciou um dos maiores e talvez o mais rápido movimento pelas redes sociais no Brasil: a defesa dos índios Guarani-Kaiowá. Foram atos por todo o Brasil que deram resultados quase que imediatos, levando-se em conta a cara de paisagem que o Governo faz para a sociedade branca, negra e indígena. A partir daí, tomei conhecimento da causa da Aldeia Maracanã e daí foi um passo para a questão do Complexo Maracanã, através do Comitê Popular da Copa, para a privatização do estádio…”
  • 4. Zona Sul: zona segura e de classe média do Rio de Janeiro.
  • 5. Unidade de Policia Pacificadora ou UPP são polícias destacadas para ocupar favelas do Rio de Janeiro. Conhecidas pelas suas operações como “milícias” de fundo corrupto, as UPP são responsáveis pela morte de várias pessoas nestes últimos 2 anos dentro das favelas, com o pretexto do controlo de tráfico de droga e do controlo da violência.
  • 6. Unidade de Policia Pacificadora ou UPP são polícias destacadas para ocupar favelas do Rio de Janeiro. Conhecidas pelas suas operações como “milícias” de fundo corrupto, as UPP são responsáveis pela morte de várias pessoas nestes últimos 2 anos dentro das favelas, com o pretexto do controlo de tráfico de droga e do controlo da violência.
  • 7. a Rocinha é uma favela do Rio de Janeiro

por Ritó aka Rita Natálio
Jogos Sem Fronteiras | 8 Abril 2016 | Brasil, manifestações, protestos políticos, REVISTA JSF#2