Matéria, Memória e Máquina: A Política e a Poética do Olhar em ‘Factory of Disposable Feelings’ de Edson Chagas
A exposição individual ‘Edson Chagas: Factory of Disposable Feelings’ apresenta uma das mais recentes séries fotográficas de Edson Chagas (Angola, 1977), realizada no bairro do Cazenga, em Luanda, em Angola, entre 2017 e 2018. Tendo sido anteriormente exibida a solo apenas na Cidade do Cabo, na África do Sul, em 2019, a série ‘Factory of Disposable Feelings’ surge agora pela primeira vez em Lisboa numa nova configuração, incluindo imagens inéditas.
Esta série dá continuidade às indagações que singularizam a obra de Chagas, nomeadamente a atenção às relações vivenciais e afetivas que os sujeitos estabelecem com objetos e espaços quotidianos, contrariando rápidos ritmos de consumo através de um olhar desacelerado que perscruta em proximidade matérias, formas e texturas descartadas. Contudo, a série marca simultaneamente uma espécie de viragem, na medida em que, ao contrário de séries anteriores realizadas em vários espaços públicos urbanos a Norte e a Sul, vagamente identificados (as ruas e praias de Luanda, Veneza, Londres e Newport, etc.), nesta série, pela primeira vez, o fotógrafo concentrou-se nos espaços interiores e exteriores de uma arquitetura específica. Trata-se da Fábrica Irmãos Carneiro no Cazenga, em Luanda, uma antiga fábrica têxtil fundada no período colonial, que, pertencendo a uma família luso-angolana, continuou a laborar após a independência de Angola e durante as várias fases da guerra civil (1975-2002), produzindo lençóis, fraldas e uniformes militares, etc. Mais recentemente, foi redirecionada para a produção de utensílios agrícolas, tendo sido parcialmente abandonada.
Através da sua própria experiência corpórea e afetiva deste espaço, e de conversas não só com os seus donos, mas principalmente com os seus antigos trabalhadores, alguns dos quais se tornaram seguranças do edifício após o encerramento da fábrica, Chagas compôs uma espécie de retrato em sequência aberta, simultaneamente íntimo e dialógico, de um lugar múltiplo: situado algures entre as particularidades desta arquitetura e as dinâmicas alargadas do bairro, da cidade e do país; entre a história coletiva e a memória individual; entre a objetividade concreta da matéria e da máquina (tanto a fabril como a fotográfica) e a subjetividade da experiência e do olhar. A intensidade das vivências partilhadas pelos antigos trabalhadores impregnou de memória o espaço e os seus objetos, que, embora evidenciando perda, se transmutaram em arquivos afetivos excedendo poeticamente os limites do visível e do documentável.
O recurso ao close-up convida à observação pausada e atenta de condições materiais concretas: os detalhes das inscrições em portas, paredes ou tecido; as fraturas do desgaste; a fragilidade da queda e do abandono; a resistente solidez acumulada em aparente caos ou isolada sobrevivência; a tensão linear de fios interrompidos; a espera circular de rolos intactos; as curvas apagadas de cabos e máquinas; grades, portões e um decisivo vislumbre de céu; estruturas paradas evocando desejo de voo; expectantes geometrias de cor e poeira. Na verdade, a atenção ao detalhe própria do close-up é também o que lhe confere um pendor abstratizante; abstração essa que, por vezes, parece traduzir-se numa bidimensionalidade quase pictórica, logo contrariada pelo jogo de sombras e texturas a desvelar as variações de volume e matéria das diferentes superfícies no espaço. Sob este ângulo, os objetos parecem adquirir vida própria; enquanto ao espectador é oferecida a possibilidade poética de, tal como sucedeu ao fotógrafo, escutar o murmúrio imaginado das inúmeras histórias que tais objetos albergam. Na linha de várias cosmologias no âmbito das quais os objetos se recusam a habitar exclusivamente o domínio do inerte, do comercializável e do exibível, sendo animados de vida e tornando-se repositórios de espiritualidades e vivências, memórias e anseios, estes objetos excedem a narrativa da inutilidade e do despojo que lhes foi atribuída pelos insucessos da indústria e do comércio. Para além da singularidade relacional retratada em cada imagem, a estratégia serial também permitiu a Chagas reunir uma comunidade alargada de objetos em diálogo entre si.
Porém, entre matéria e memória (a memória inscrita na própria matéria e a matéria psíquica da própria memória), a máquina (fabril/fotográfica) não nos permite abstrair de Luanda, de Angola e da sua colocação no mundo. Ao perscrutar as particularidades desta fábrica, Chagas examinou os múltiplos tempos e espaços do presente angolano: os legados duradouros do período colonial (com mais de uma década de luta de libertação, 1961-1974), os sonhos falhados da pós-independência, a longa guerra civil durante e depois da Guerra Fria, o capitalismo oligárquico e a globalização, que, nas últimas décadas, inundou o país de mercadorias ocidentais e orientais; nomeadamente os têxteis que, provenientes da suposta ajuda ocidental ou da competitiva produção chinesa, aniquilam qualquer possibilidade de sobrevivência da indústria têxtil angolana. Contudo, ao passar tempo escutando os antigos trabalhadores, foi a estes e à sua visão pessoal da história que Chagas conferiu protagonismo e valor.
Símbolo do próprio país em suspenso e dos vários projetos de suposta modernidade e modernização que atravessaram a sua história, a fábrica abandonada nunca deixou de ser reocupada, reapropriada e reativada por um ativo labor de memória e desejo, incluindo as futuridades passadas e presentes que falta cumprir.
Informações sobre a exposição.