António Ole: Matéria Vital / Vital Matter

A organização do território é uma mera questão da natureza.

António Ole

 

António Ole: Matéria Vital / Vital Matter reúne obras de diversos períodos do multifacetado percurso artístico de mais de cinquenta anos de António Ole (Luanda, 1951). Realizadas em vários meios, da escultura à fotografia, do desenho ao vídeo, estas obras colocam em evidência a atenção que Ole tem dedicado à natureza e aos seus elementos e matérias vitais. A terra, a água, o fogo e o ar assumem aqui inúmeras formas que, no seu conjunto, convidam a uma percepção planetária e a uma consciência ecológica não só da coabitação, mas, sobretudo, da interdependência entre formas de vida humana e não humana (animal, vegetal, mineral) – assunto vital (vital matter), para cuja premência e urgência a própria realidade pandémica veio, mais do que nunca, alertar. A sobrevivência do humano no nosso planeta dependerá desta consciência profunda, aliada a formas de acção consequentes. As lições a aprender constituirão modos de desaprender a obsessão pelo desenvolvimento e pelo crescimento económicos e pela constante aceleração da produção e do consumo às custas do necessário equilíbrio ambiental. 

António Ole, Tríptico Molhado, 2013. Cortesia do artista e de Movart, Luanda e Lisboa.António Ole, Tríptico Molhado, 2013. Cortesia do artista e de Movart, Luanda e Lisboa.

Se, por um lado, a interpelação de Ole é planetária, por outro lado, as suas geografias afectivas em Angola e no continente africano não deixam de marcar presença, colocando uma série de questões fundamentais. Estando ambas as perspectivas – uma mais global, a outra mais continental, regional e local – intimamente interligadas na sua obra, neste contexto elas não podem deixar de remeter também para o facto de que as dinâmicas globalizadas de exploração (do trabalho) e de extracção (de recursos) têm ocorrido há vários séculos e com especial violência no continente africano. Convém não esquecer que o projecto colonial foi, acima de tudo, económico e que, como nos lembram vários teóricos africanos,  mais do que terminado, ele parece ter-se transformado e adaptado, adquirindo novas configurações após as independências e o culminar da guerra fria, com a cumplicidade de várias elites africanas. Tal projecto implicou igualmente processos epistemicidas, i.e. formas insidiosas de aniquilamento de conhecimentos, saberes, práticas, linguagens e espiritualidades, muitos dos quais, apesar de tudo, sobreviveram através de inúmeras estratégias de resistência dos dois lados do Atlântico. Tanto a dimensão extractiva como a epistemicida da modernidade ocidental e ocidentalizada tiveram consequências em termos ambientais, perturbando os equilíbrios materiais e espirituais dos ecossistemas, os seus ritmos e saberes, e assim fracturando ontologias e epistemes, modos de ser e conhecer. Como nos mostrou Ruy Duarte de Carvalho, outras formas de modernidade – a modernidade enquanto adaptação equilibrada do humano ao meio circundante – irrompem em resistentes modos de vida ancestrais;  enquanto o progresso se revela, não raras vezes, como sinónimo de morte. Na mesma linha, através dos traços do desenho, da colagem e do texto, Ole afirma que “a organização do território é”, ou deveria ser, “uma mera questão da natureza” (Alma & Circunstância III, 2016).

Munido de uma alargada e aguda consciência histórica do presente (sem a qual se extinguem os horizontes de futuro), e sem abdicar da universalidade (mondialité) inerente a um cosmopolitismo crioulo e da liberdade de experimentação estética com uma multiplicidade de meios e influências (que a sua biografia entre a África, a Europa e as Américas estimulou), a interpelação planetária de Ole nunca deixou de convocar em permanência a força epistémica, a riqueza cultural e espiritual, e as múltiplas modernidades e ancestralidades do continente africano, das suas inúmeras diásporas e, em particular, de Angola. Com uma obra marcadamente atenta aos ritmos e rostos, às matérias e construções, às superfícies e texturas urbanas – em especial, de Luanda, dos seus musseques e das suas ilhas –, desde cedo Ole observou também essa outra Angola tão dissemelhante da capital, as suas diversas paisagens e modos de vida. António Ole: Matéria Vital / Vital Matter desvela, precisamente, alguns desses outros ritmos e texturas, as matérias vitais para lá das paredes e da pele da cidade.

 

Informação sobre a exposição

por Ana Balona de Oliveira
Vou lá visitar | 14 Abril 2021 | António Ole, arte contemporânea angolana, Matéria Vital, pintura