Arte e Artistas em Moçambique: falam diferentes gerações e modernidades (Parte 2)

Uma geração à procura de identidade artística

Passada uma primeira fase de euforia provocada pelo nascimento de um país que se libertava do colonialismo, ultrapassadas algumas dúvidas e tensões chegara um momento de reflexão e de aprofundamento da política cultural seguida. O que era a cultura moçambicana? Quais eram os seus componentes? O que era ser artista moçambicano? Reconhecia-se a presença e a coexistência de diferentes práticas artísticas incluindo as resultantes do relacionamento, nos dois sentidos, entre as práticas artísticas africanas e a arte moderna ocidental. Alertando para o risco de se cair na armadilha do nacionalismo cultural e impôr como limites da criatividade os valores legados pela tradição, Luís Bernardo Honwana, escritor e então Secretário de Estado da Cultura, afirmou que “a pintura de um Malangatana, de um Mankew são já e definitivamente pintura moçambicana por direito próprio, e sem que se possa jurar que a grande maioria do nosso povo domine minimamente o vocabulário pictórico desses nossos grandes artistas”1. Qual era o papel do artista? Ser um construtor do futuro, um questionador do presente, como entendia Honwana? Como o entendiam os artistas desta geração?

Alguns dos jovens artistas estavam interessados em buscar referências africanas mas também referências da arte internacional para alimentar as suas práticas artísticas individualizadas. Idasse Tembe (n.1955) não tinha pressa, queria conhecer mais artistas africanos, aprofundar o seu conhecimento dos artistas internacionais, ‘descobrir-se na arte e ir amadurecendo com a prática’.2 Victor Sousa (n.1952), no dizer de outro artista do seu tempo, ‘falava de uma forma diferente dos outros’, experimentava formas e técnicas, esquecia quase por completo as normas aprendidas e mostrava ‘uma pintura que não tinha nada a ver com o que estávamos habituados a ver’.3 Naguib (n.1955) considerava-se um cidadão do Mundo e achava que cada um interpretava a pintura como podia, como sabia e como entendia.4 Nesta fase do seu percurso, os pintores expressionistas eram uma referência marcante para pintar o que via e vivia no seu país. A partir da sede do antigo Núcleo de Arte, onde trabalhavam, os artistas procuraram, não sem tensões, criar uma associação que servisse os seus interesses e daí nasceu o actual Núcleo de Arte. Para todos eles este foi um período de reflexão e interrogação, de questionamento sobre o seu papel na sociedade que se ensaiava.

Uma nova guerra, interna, marcou profundamente o jovem país e o trabalho dos artistas. Viveu-se um contexto ainda muito marcado pela intervenção do Estado e alimentado pela necessidade de uma identidade cultural nacional. O incentivo à criação de associações (de fotógrafos, de escritores, de músicos, de artistas plásticos…) é uma característica deste momento. Mas este foi também um período marcado pela vontade de profissionalização da intervenção na área da cultura. Incentivar o aparecimento dos agentes e das instituições indispensáveis à criação e promoção das artes foi então uma prioridade posta em prática. Tinham sido poucas as instituições herdadas e mesmo essas tinham deixado de funcionar, haviam sido reorganizadas ou atravessavam dificuldades.

Trabalho (pormenor) de Bertina Lopes, 1960 (Colecção do Banco de Moçambique)Trabalho (pormenor) de Bertina Lopes, 1960 (Colecção do Banco de Moçambique)

Da experiência de formação que se pôs em prática nasceram as actuais escolas de ensino artístico, entre elas a Escola Nacional de Artes Visuais (1983) responsável por várias importantes mudanças no ambiente artístico principalmente da capital. Fizeram os cursos desta Escola (básico e médio) muitos dos artistas que hoje se dedicam à arte em Moçambique. Um pequeno número continuou os estudos superiores em várias partes do mundo (ex-URSS, ex-RDA, Cuba, mais tarde Brasil, África do Sul…). A formação superior em artes visuais, só recentemente foi considerada.5

Outras peças importantes do sistema das artes foram consideradas. A Loja-Galeria, uma empresa estatal dirigida por José Bragança, vocacionada para a promoção da arte e do artesanato, quer no mercado local quer internacional, desempenhou nestes anos difíceis um importante papel. Entre os diversos projectos que conduziu, conta-se o que foi realizado numa aldeia do planalto de Mueda, Cabo Delgado, no norte do país. Aí, nos primeiros anos da década de 80, escultores maconde tiveram oportunidade de trocar experiências com a artista suíça Maya Zurcher. Desta troca resultou a aprendizagem da xilogravura que suscitou o interesse de alguns escultores. Matias Ntundu (n.1948) foi um deles. Preocupou-se ‘em não imitar o trabalho de Maya’, mas sim em aprender a técnica e trabalhar a partir das suas próprias ideias. Este novo meio de expressão dava-lhe possibilidades diferentes da escultura ‘para exprimir situações vividas’. Nasceram assim numerosas xilogravuras mostrando o pagamento do imposto no período colonial, diferentes aspectos da vida da aldeia ou cenas da luta de libertação de que tinha sido parte. O trabalho dos escultores que tinham experimentado a xilogravura, foi divulgado em Maputo e em outros centros. Volvidos tantos anos, Matias Ntundu não desistiu e, a partir da sua aldeia, continua a praticar a xilogravura como o demonstra a sua última exposição realizada em Maputo, em 2010. Maya Zurcher também conheceu Reinata Sadimba (n.1945) em Cabo Delgado. Começava a destacar-se pelas suas habilidades no domínio da olaria, uma ocupação ‘tradicionalmente’ feminina que demonstrava na decoração das paredes de sua casa. Depois aventurou-se nas primeiras esculturas. Aos objectos tradicionais, por exemplo aos potes, acrescentou decorações e formas escultóricas. Em Maputo, para onde veio viver alguns anos mais tarde, tem feito um percurso singular no domínio da escultura cerâmica.

A guerra que Moçambique vivia dificultava as actividades da empresa Loja-Galeria e causava muitos problemas à sua actividade comercial. Deixar de intervir nos vários pontos do país, junto das cooperativas de escultores e de artesãos, e reorientar a sua actividade foi a solução. Voltou-se para a cidade, onde havia um crescente número de artistas, um mercado potencial e carência de serviços. Criou então um serviço especializado, Horizonte ArteDifusão (HAD), que desde 1986 a 1991 se dedicou a divulgar e a promover artistas. Com o HAD, Naguib, um dos artistas já referidos, realizou em 1986 a sua 1ª exposição individual (Grito de Paz). Inaugurava-se uma nova maneira de fazer exposições de arte no país. Naguib pintava então muito sobre a paz e sonhava, como achava que competia a um artista, que a paz um dia seria possível. Mas os seus temas e preocupações não paravam aí. Era também a afirmação do surgimento de uma nova geração de artistas. Seguiu-se um programa estruturado de exposições, com catálogos, com produção de vídeos, acompanhadas de debates e numerosas acções de formação, intercâmbio e aperfeiçoamento para os artistas. O HAD divulgou artistas como Bertina Lopes, Malangatana, Chissano, Samate, Mankew, Naftal Langa, Macamo, Sansão Cossa, Zaqueu, Jacob Estêvão, Paulo Come e tornou visíveis os novos criadores: Ídasse, Naguib, Simões, Govane, Vítor Sousa (Noba Ngay), Fátima Fernandes, Gilberto Cossa, Muando, entre outros. Abriu também espaço aos mais jovens através do concurso “Novos Talentos.”

Uma outra instituição se fazia desde há muito necessária. O Museu Nacional de Arte abriu ao público em 1989 depois de vários anos de tentativas. Neste processo organizou diversas exposições e outros projectos culturais. A ideia do museu nascera logo após a Independência. Lourenço Marques (a actual Maputo) não chegara a ter a Galeria de Arte tão desejada, mas apenas uma colecção e um espaço na Câmara Municipal. A exposição com que o museu abriu ao público suscitou debate sobre a arte e os artistas que nela deviam constar.6 Este debate, sempre actual, reflectiu as diferentes percepções sobre a modernidade, a arte moderna africana (moçambicana) e os artistas africanos (moçambicanos). Desde a sua abertura, com um orçamento muito limitado mas com diversos apoios, tem vindo a profissionalizar-se. Atrair um maior interesse pelo museu e pelas suas actividades tem sido outro dos seus objectivos.

Para além do museu, papel importante de promoção e divulgação tem cabido aos diversos centros culturais existentes que se foram estabelecendo (o primeiro foi o Centro de Estudos Brasileiros/CCBrasil-Moçambique, em 1989), a algumas empresas, bancos, a um pequeno número de coleccionadores que começam a assumir papel mais activo. A empresa Telecomunicações de Moçambique/TDM, por exemplo, começou a adquirir obras de arte nos anos 80. Tratava-se de um incentivo às artes plásticas e, ao mesmo tempo, uma forma de construir um património cultural e financeiro para a empresa. Com a criação de um fundo de aquisição de obras de arte e com a assessoria de Eugénio Lemos, começou a constituir-se uma colecção que foi mostrada ao público em 1991, numa iniciativa concebida como a edição nº 1 da Bienal de Artes Plásticas que continua a realiza-se até hoje. A edição realizada em 2007, a 9ª, mostrou uma selecção de obras de arte da colecção reunida até ao momento. Como tive oportunidade de escrever no catálogo dessa edição, é uma colecção importante, de transição, entre os ‘históricos’, Malangatana e Chissano em lugar central, e uma nova geração. Os artistas mais importantes e representando muitas das mudanças que estavam a acontecer, nos anos 90, estão presentes na colecção.

A iniciativa pertence aos artistas

Gradualmente, mudanças, a nível interno e fruto do contexto global, influenciaram as condições de produção e o discurso da arte em Moçambique, a partir da década de 90. Uma nova constituição foi aprovada em 1990, o Acordo Geral de Paz foi assinado em 1992 e em 1994 tiveram lugar as primeiras eleições gerais multipartidárias. Moçambique vivia, após longos anos de guerra, em paz. A arte não ficou alheia a este novo contexto criado no país e na região, em particular ao nascimento de uma nova África do Sul. Continuavam a ser limitados os recursos, o acesso a materiais de arte e a publicações, as oportunidades de promoção do trabalho dos artistas, os encontros de artistas ou a sua participação em exposições internacionais de arte. A cooperação na região ia conhecer uma nova fase. Até aí, para além de eventos como as exposições universais que envolveram alguns artistas e integraram exposições de arte, de algumas exposições mostrando a arte dos países da África Austral (nem sempre incluindo Moçambique) ou de arte moçambicana organizadas para celebrar datas ou determinados acontecimentos, apenas um pequeno número de artistas teve acesso a exposições e outros eventos artísticos realizados fora de Moçambique e nos principais centros artísticos.

Algumas alterações importantes neste cenário aconteceram por iniciativa de artistas. Os primeiros workshops internacionais de arte realizados em Moçambique7 foram uma delas. Expuseram os artistas participantes a novos materiais e técnicas, permitiram explorar diferenças e semelhanças e constituíram base de reflexão e inovação. A realização do primeiro workshop de Maputo, em 1991, por iniciativa de Fátima Fernandes (n.1955) e envolvendo diversos artistas (entre eles Vítor Sousa e Govane (n.1954), presentes na exposição realizada na Finlândia), propunha-se romper o isolamento nacional, conhecer outras realidades artísticas, principalmente na região da África Austral a viver mudanças políticas profundas, familiarizar-se com novas correntes estéticas mas também deixar para trás “a armadilha da avaliação da ‘arte africana’ como exótica.

Os artistas participantes no workshop de Maputo estavam conscientes das ideias estereotipadas existentes sobre a arte africana e dos riscos do exotismo sobre o seu trabalho e procuravam novos caminhos para si e para as gerações futuras. O artista senegalês Iba N’Diaye, reivindicando o seu direito a uma prática própria, subjectiva e individual, já tinha tomado posição sobre esta questão nos anos 70, dizendo: “Não tenho desejo de estar na moda. Alguns europeus, à procura de sensações exóticas esperam que eu lhes dê folclore. Recuso fazer isso-nesse caso existiria apenas em função das suas ideias segregacionistas sobre o artista africano.”8

Poucos duvidam hoje das muitas mudanças que se verificaram, e são visíveis os diferentes caminhos percorridos pelos artistas que viveram esse tempo. Caminhos que se interrogaram, que procuraram a mudança e o novo, caminhos que deram continuidade a outros já percorridos. Para além dos artistas de Moçambique, havia participantes da África do Sul e do Zimbabwe. Entre eles, Berry Bickle (n.1959). Não tendo marcado da mesma maneira os artistas participantes, os workshops que se sucederam (mais um em 1991, 1992), inspirados no modelo do Triangle Art Workshop, foram importantes, como o reconhecem vários artistas e a sua influência foi visível no trabalho que criaram a partir daí. Alguns artistas continuaram a participar nos workshops regionais/internacionais de arte que aconteciam em diversos países de África visando estimular a criatividade e encorajar a experimentação. As esculturas do artista moçambicano Dias Mahlate (n.1958), apresentadas na Galeria Nacional do Botswana em Gaborone resultado do workshop Thapong aí realizado em 1995, chamaram a atenção. A participação9 na I Bienal de Johannesburg em 1995 e em alguns dos eventos do Africa’95 realizado em Londres proporcionou a alguns artistas, sobretudo das gerações mais novas ou menos conhecidos, visibilidade e oportunidades de circulação. Deram a conhecer o seu trabalho em círculos onde se discutia sobre a arte moderna e contemporânea de África e tomaram contacto com novas propostas que aconteciam no mundo da arte internacional. Titos Mabota (n.1963) diz: “Faço uma arte livre, arte de espaço buscando o material do campo para mostrar na cidade. Exploro muito a corda, um componente que trouxe da Finlândia, onde estive junto de outros artistas colhendo outras formas de fazer a arte. Aliás, as pessoas exclamam pela grandeza de algumas obras minhas, mas as minhas nada são comparativamente às que são feitas no exterior e expostas em museus10.”

Internamente, os artistas beneficiavam de novos espaços de exposição (galerias e centros culturais), alguns deles também de sua iniciativa. Às vezes houve possibilidade de ver exposições de artistas de outros países trazidos pelos centros culturais. Passaram a organizar-se exposições e concursos regulares como a Anual do Museu Nacional de Arte (a partir de 199, a Bienal das TDM (a partir de 1991) e a Descoberta (iniciada em 1995) patrocinada pela Casa de Cultura do Alto-Maé.

Uma nova associação, a Arte Feliz, que integrava, entre vários outros jovens artistas, Bento Mukeswane (1965-1999) e Gemuce (n.1963), constituiu-se entre 1995-6. A associação defendia a liberdade de expressão artística e propunha-se estimular o desenvolvimento das artes plásticas no país e a sua projecção internacional. As suas actividades envolveram e marcaram os seus estudantes na Escola de Artes Visuais, onde ensinavam, e outros jovens que aspiravam a tornar-se artistas. Lourenço Pinto (n.1980) reconhece a influência do professor Bento Mukeswane e das suas aulas de desenho no seu trabalho. Para Gemuce (comunicação pessoal) tratava-se da afirmação de uma geração de artistas e da afirmação de novas expressões artísticas num contexto que consideravam fechado e hostil à mudança. No calendário publicado em 1998, reproduzindo obras de dez pintores e um ceramista, Petra Aschoff, referiu a ‘verdadeira explosão’ registada em Moçambique no domínio das artes plásticas. Já tinham até aí acontecido duas exposições anuais, abertas por convite, sem júri, apelando à responsabilidade da escolha de cada um. Apelar à liberdade da arte e à diferença talvez tenha sido a atitude que melhor caracterizou este grupo de artistas que se reuniu na Arte Feliz. Por isso convidaram desde Noel Langa, Vítor Sousa, Naftal Langa (n.1932), Govane a Ciro Pereira (n.1957), Saranga (n.1971), Carmen Muianga (n.1974) ou João Paulo Quehá (n.1975), entre muitos outros, de diferentes gerações e diversificadas práticas.

Em direcção a novas propostas

A denúncia do colonialismo, a euforia da independência, novamente a guerra e os seus horrores, a procura da paz, a liberdade pessoal de se expressar e de ser diferente tinham influenciado a produção artística das últimas décadas. Este tempo de construção da paz, de reconciliação, de construção do país, de novos e graves problemas, não ia ser diferente. A fragilidade do sistema artístico e os poucos recursos à disposição dos artistas, de instituições e demais agentes, influenciaram e/ou condicionaram o trabalho dos artistas de várias maneiras e ditaram muitas das suas escolhas e projectos. As respostas pessoais dos artistas foram variadas.

Mudanças no processo criativo individual que incluíram a adopção de novas formas de expressão artística e uso de novos materiais ou de materiais alternativos. Titos Mabota pode ser apontado como um dos artistas que percorreu esse caminho. Para além do desenho, da pintura, da escultura em madeira, começou a recolher materiais como jornais, sacos, cordas, ossos, cocos, missangas, para esculpir e produzir as suas esculturas. Alguns artistas usaram suportes diferentes dos que até aí estavam habituados a utilizar. Naguib, por exemplo, recorreu ao metal e à madeira como suporte para os seus óleos. Bela Rocha (n.1958) usou a seda. O uso da pedra, do mármore, do metal, da argila, a combinação dos vários materiais, incluindo materiais de segunda mão, trouxe novas propostas e animou mesmo a escultura em madeira que se repetia e parecia ter esgotado. O mesmo aconteceu como resultado do projecto de recolha e transformação de armas em objectos de arte que envolveu muitos jovens artistas do Núcleo de Arte. A realização de vários workshops envolvendo os artistas e o artista-professor sul-africano Andries Botha conduziu a interessantes propostas. Alguns dos trabalhos, produzidos quer individualmente, quer em colaboração, foram já amplamente divulgados. Kester (n.1966), Fiel (n.1972) ou Hilário Nhatugueja (n.1964) são, entre outros, nomes a reter. Destaco ainda Gonçalo Mabunda que, desde então, tem feito um percurso artístico diferenciado produzindo trabalhos de grandes dimensões, a lembrar o mestre, e experimentando outras direcções. A sua pesquisa de materiais para incorporar/produzir as suas esculturas há muito deixou as armas de lado.

A inexistência de materiais (caros/convencionais) ou de equipamentos apropriados não tem sido a limitação maior do desenvolvimento da produção artística mas sim a fragilidade da educação artística formal. Ao mesmo tempo, o trabalho desenvolvido pela Escola de Artes Visuais tem sido muito importante. A formação em Cerâmica, por exemplo, tem proporcionado amplas possibilidades de expressão. Celestino Mondlane/Mudaulane (n.1972) e jovens ainda mais jovens como Tsenane (n.1979) ou Titos Pelembe (n.1988) exploram criativamente a cerâmica abrindo novas possibilidades. O desenho (reanimado depois da Anual do Museu Nacional de Arte de 1998) e outras técnicas têm vindo a ganhar mais visibilidade e novos praticantes. A Malangatana, Shikhani, Ídasse, Miguel César (n.1957) e a poucos mais, juntaram-se muitos jovens entusiasmados pelo desenho. Um deles é Famós (n.1978), recorrendo desde há alguns anos a uma abordagem do desenho distinta da que é, em geral, praticada entre nós. A liberdade do desenho é também característica de Lourenço Pinto com as suas narrativas onde tudo parece acontecer ao mesmo tempo. 

Uma proposta nova para o contexto local apresentou Marcos Bonifácio Muthewuye (n.1972) quando, então bolseiro em Cuba, se apresentou em 1998 no Centro Cultural Franco-Moçambicano e chamou a atenção com uma performance inspirada no Mapiko dos maconde. Procurava um diálogo entre o tradicional e o contemporâneo, ainda hoje muito presente nos seus trabalhos mais recentes, combinando a sua experiência pessoal e as suas experiências de formação e reflexão que passavam também pelo que acontecia na Bienal de Havana. A performance continua a ser para si um meio privilegiado de expressão.

Para outros artistas, a saída do país em busca de oportunidades e de contactos com o mundo da arte quer para os países vizinhos quer para destinos mais longínquos foi uma resposta tal como a desistência, o isolamento, o recurso a meios de sobrevivência mais fácil. A criação de espaços próprios ou de galerias e a associação foram caminhos igualmente seguidos, com mais ou menos sucesso, por artistas de várias gerações à procura de promoção e afirmação. Neste processo alguns artistas tornaram-se mais conhecidos e obras suas foram adquiridas para colecções públicas e privadas no país e no exterior. A colecção do Museu Nacional de Arte, por falta de fundos, foi apenas acrescida de aquisições pontuais e com a colaboração de alguns artistas. Não se desenvolveu, como seria desejável, de forma sistemática e consistente. Apesar disso, o museu tem sido parceiro de importantes projectos artísticos e começa a ser percebido de maneira diferente pelas gerações mais novas.

Pode-se dizer que a abertura ao mundo dava os primeiros passos. Artistas de Moçambique não estiveram presentes nas principais exposições sobre arte contemporânea onde a presença de artistas africanos tem vindo a crescer. Malangatana foi a excepção em exposições documentais que mostram os seus trabalhos mais antigos.11 Mais recentemente, Titos Mabota e Gonçalo Mabunda têm sido incluídos. Há ainda a acrescentar a presença dos fotógrafos. Num país em que o fotojornalismo produziu nomes marcantes, alguns fotógrafos têm combinado o trabalho documental e a arte. Apesar desse facto, pode dizer-se que a interrogação da fotografia como meio e o questionamento dos limites e das possibilidades da representação fotográfica é uma prática recente. Uma nova geração de que fazem parte, entre outros, Luís Basto (n.1969), Mauro Pinto (n.1974) e Mário Macilau (n.1984) tem vindo a afirmar-se. A realização dos encontros internacionais de fotografia em Maputo desde 2002 proporcionou diversas oportunidades, apesar de tudo ainda pouco exploradas.

Escultura de Jerónimo Ndinywashwa, s.d. (Colecção do Museu Nacional de Arte)Escultura de Jerónimo Ndinywashwa, s.d. (Colecção do Museu Nacional de Arte)

Outros horizontes

Um número crescente de jovens, nos últimos anos, juntou-se às gerações mais velhas de artistas num espaço feito de escolhas individuais, de opções que se prosseguem tranquilamente, às vezes quase à margem, mas também de competição e de vontade de provocar rupturas. Foi neste contexto que surgiu o Movimento de Arte Contemporânea de Moçambique-MUVART. Integrando, entre outros artistas, Gemuce, Jorge Dias, Anésia Manjate (n.1976), Marcos B. Muthewuye, Ivan Serra (n.1978), Xavier Mbeve (n.1974), Vânia Lemos (n.1962), Carmen Muianga, foram onze os membros fundadores deste movimento. Em actividade desde os anos 90, alguns ex-membros da desaparecida Arte Feliz, decidiram juntar as suas experiências, formação e práticas diversas para incentivar a prática da arte contemporânea explorando novos campos de criação, renovando formas de expressão artística existente, alargando a diversidade da prática artística em Moçambique.12 A primeira exposição dos artistas do Movimento, foi realizada em 2003. Suscitou interesse e curiosidade por parte do público que a visitou, maioritariamente jovem ou interessado, mas passou praticamente despercebida nos jornais13. Num contexto em que não há crítica de arte regular e há poucos críticos, investigadores e comentadores, o silêncio não é de admirar. As propostas dos artistas são, regra geral, recebidas da mesma maneira, apenas como uma nota informativa, pela imprensa local. O caso do MUVART começou também assim, mas depressa se percebeu que este grupo de artistas podia fazer diferença, pela capacidade intelectual e organizativa. Recusando a ideia de “autenticidade” que muitos esperam/procuram no artista africano, abriam caminho a outras percepções sobre a identidade africana e alargavam (ou tornavam mais ténues) as fronteiras artísticas questionando o conceito de arte dominante. Recorriam a diferentes técnicas e processos expressivos para falar do nosso mundo, da nossa vida de todos os dias, de imagens e objectos que pertencem a todos, para intervir no mundo real, questionando e opinando.

Um ano depois, em 2004, prosseguindo o seu interesse em chamar a atenção para a multiplicidade de meios que os artistas têm à sua disposição, para a experimentação criativa e para as práticas artísticas contemporâneas, organizaram a primeira edição da Expo Arte Contemporânea Moçambique para a qual convidaram diversos artistas locais e de outros países. Um desafio corajoso e provocador num contexto artístico que, apesar de reflectir vitalidade e diversidade, não tem exposição à prática e à apreciação da arte contemporânea e olha, às vezes, com desconfiança, a diferença, o que “vem de fora”, o que não é “autêntico”, “outras” práticas e realidades artísticas. Contribuíram também para alargar a percepção sobre a complexidade da realidade artística de Moçambique. Uma realidade que inclui a produção de objectos “tradicionais”, a produção de objectos diversos, nos centros urbanos, destinados quer ao público local (urbano) quer aos turistas, a produção de objectos novos renovando e/ou desenvolvendo motivos e formas, a produção de objectos por artistas com formação académica, aprendendo sob orientação de um artista, seguindo ou não escolas e correntes artísticas ocidentais ou percorrendo caminhos próprios, vivendo nas cidades, participando em exposições destinadas a públicos locais de elite e ao mercado internacional de arte. Tornaram possível que mais artistas pudessem reivindicar caminhos próprios por si escolhidos tais como: inspirar-se na arte africana antiga, utilizá-la no seu processo criativo, afastar-se dela conscientemente, explorar temas novos e actuais, abrir-se a novas formas e materiais. Convidaram outros artistas a juntarem-se às exposições que organizaram. Desde Malangatana e Vítor Sousa, a Titos Mabota, Chocate (n.1974) e Falcão. A liberdade conceptual da arte contemporânea permitiu romper barreiras e estabelecer relações até aí não contempladas. O recurso aos objectos artesanais, as flores, as rendas e bordados, entre outros objectos, estão presentes no trabalho de Jorge Dias ou de Anésia. O vídeo foi apropriado por Gemuce, até aí pintor. As instalações, passaram a fazer parte da linguagem artística local, multiplicaram-se, recorrendo quase sempre a materiais simples ou recuperados.

As exposições internacionais de arte contemporânea continuaram a acontecer em Maputo (2006, 2008, 2010) rompendo o isolamento e reivindicando uma prática artística aberta ao mundo. Como professores que quase todos os membros do MUVART são, pela exposição e debate do seu trabalho, pelo exemplo, têm marcado o percurso de outros artistas. Mas como é o relacionamento dos artistas de Moçambique com o mundo da arte internacional? Alguma coisa mudou desde a intervenção do MUVART mas nem por isso tem sido menos complexo. Um pequeno número de artistas recebeu convites, mostrou o seu trabalho, ficou mais conhecido ou passou a ser representado por galerias internacionais A participação em feiras de arte contemporânea (Arte Lisboa 04, ARCO2006 ou ainda as possibilidades abertas pela JoburgArtFair desde 2008), em exposições como, por exemplo, Africa Remix, ou o interesse que certos coleccionadores internacionais demonstraram pelo trabalho dos artistas moçambicanos, sendo ou não parte do movimento, são sinais de mudança mas apenas pequenos passos.

Os últimos anos

Depois de um período mais intenso, os artistas do MUVART parecem ter tido necessidade de se voltar para si, continuar a sua procura individual, consolidar propostas próprias. Realizaram exposições individuais, Gemuce em 2009 e Jorge Dias em 2010, participam em colectivas ou projectos especiais como o das “Ocupações Temporárias”, prosseguem sonhos e ambições. Alguns parecem ter dado um tempo, Jorge Dias divide-se entre múltiplos afazeres. Dirige agora a Escola de Artes Visuais depois de anos como curador no Museu Nacional de Arte. O acompanhamento de artistas e a curadoria de exposições é alguma coisa que o apaixona, a escrita também. A sua voz faz falta num contexto onde praticamente não há críticos e onde há algum vazio resultado das mudanças ocorridas. Também porque, como diz, ‘o artista deve ser o primeiro a trazer contributos teóricos e conceptuais sobre o seu trabalho’. Ainda é cedo para avaliar o impacto das propostas do movimento de arte contemporânea na cena artística moçambicana mas a sua acção ampliou, indiscutivelmente, o campo artístico local. O recente desaparecimento físico de Malangatana, uma figura simbólica de uma geração marcante, fecha um ciclo e um tempo. Abre-se um ciclo novo.

Neste ciclo novo, imprevisível, porque os artistas são imprevisíveis, é possível, mesmo assim identificar algumas tendências. Num espaço mais aberto e mais preparado continuarão a procurar-se novas respostas para questões sobre a definição da arte africana contemporânea, o que é ser artista africano/moçambicano, a identidade africana, a identidade dos artistas individuais e as suas práticas. Parece haver possibilidades infinitas e artistas que não desejam ficar passivos. Artistas de todas as gerações e usando os meios com que se sentirem mais à vontade vão dar forma a este futuro próximo. A “tradicional” escultura em madeira está a ser desafiada por jovens escultores, alguns parte desta mostra, que reivindicam o direito a expressar a sua individualidade e modernidade. Até onde chegará Pekiwa (n.1977)? E Sónia Sultuane (n.1971) com a sua ousadia? O vídeo, um meio de expressão ainda pouco utilizado pelos artistas moçambicanos, dá passos seguros com Maimuna Adam (n.1984) como nos tem mostrado em exposições recentes. Esta jovem artista privilegia a fotografia na sua investigação artística mas é também uma apaixonada pela pintura. A pintura, que está hoje tão presente, tem muito caminho para percorrer, cabe a cada artista decidir sobre as possibilidades que lhe oferece. Sitoe (n.1967), o pintor, já iniciou este caminho. Vários outros também. A instalação “Mafalala Blues” de Camila de Sousa, apresentada em 2010, constituiu um avanço. Uma proposta conceptualmente forte aliando a pesquisa histórica e antropológica sobre o bairro, a fotografia, o vídeo, a música, a poesia.

As condições de apoio à produção artística estão longe de ser as desejáveis para este tempo novo que se inicia. É urgente reforçar o sistema de formação, as instituições culturais existentes e reajustar os modelos e políticas seguidos. Os apoios do Estado reduziram-se drasticamente e são dispersos e pouco consequentes os restantes. Às colecções existentes falta uma gestão profissional e uma política de aquisições adequada. Apenas os espaços de exposição parecem corresponder à actual produção artística. Aos centros culturais, ao Museu Nacional de Arte, a outros espaços e galerias abertos à realização de exposições como, por exemplo, o Núcleo de Arte, a galeria da Associação Moçambicana de Fotografia, o Mozolua ou a Mediateca do BCI, juntou-se a Kulungwana, Associação para o Desenvolvimento Cultural. Entre as suas múltiplas actividades, o espaço-galeria, com um programa regular de exposições diversificadas e outras actividades, tem vindo a criar um público interessado, a promover artistas locais, nacionais ou não, a juntar sinergias, a divulgar técnicas e processos artísticos. Um dos seus projectos recentes, “Colecção Crescente”, que integra esta exposição, dá voz a artistas de várias gerações e estimula o coleccionismo. Estimula também, pela oportunidade e pelo desafio do material e das dimensões, um número considerável de participantes que se inicia e todos os que ousam experimentar. Este espaço é ainda importante por outras razões. Por dar continuidade à diversificação e questionamento da prática artística em Moçambique, por dar visibilidade a uma realidade que é complexa e a artistas com diferentes projectos, por contrariar narrativas e discursos simplistas e homogeneizados sobre as artes e a cultura. Para, como disse Luís Bernardo Honwana há quase três décadas, não corrermos, novamente, o risco de cair na armadilha do nacionalismo cultural.

Se razões de ordem económica e de facilidade de deslocação aconselham a viagem da “Colecção Crescente”, algumas das razões atrás apontadas justificam a inclusão, nesta exposição, de outros artistas e de outras propostas. Em nome da diversidade das práticas artísticas já presentes em Moçambique e da multiplicidade que constitui a identidade do continente africano.

 

Este artigo foi dividido em duas partes. Para ler a primeira parte de “Arte e Artistas em Moçambique: falam diferentes gerações e modernidades” clique aqui.

  • 1. Luís Bernardo HONWANA, Domingo de 18 de Novembro de 1984.
  • 2. Tempo, n. 809, 13 de Abril de 1986, pp. 50-3.
  • 3. Nurdino Ubisse, apresentando a primeira exposição individual de Victor Sousa, em 1982, no Núcleo de Arte.
  • 4. Tempo, 17 de Junho de 1984, pp. 45-7.
  • 5. Em 2008 foi criado o Instituto Superior das Artes e Cultura.
  • 6. Abdias, Agostinho Mutemba, Bertina Lopes, Celestino Tomás, Chichorro, Chissano, Freire, Estevão Mucavele, Govane, Ídasse, Isabel Martins, Jacob Estevão, Macamo, Mankew, Malangatana, Moisés Simbine, Miguel Valingue, Naftal Langa, Naguib, Ndlozi, Oblino, Reinata, Samate, Shikhani, Victor Sousa são alguns dos artistas presentes na exposição permanente.
  • 7. O 1º workshop aconteceu em Maputo, por iniciativa de Fátima Fernandes, em 1991. Nesse mesmo ano aconteceu o Ujamaa Workshop I, em Pemba, e outros se seguiram nos anos seguintes.
  • 8. Citado por V.Y.MUDIMBE (1991) “Reprendre”. Enunciations and strategies in Contemporary African Arts. In Vogel, S. and Ebong, I.(eds), Africa Explores. 20th Century African Art. (pp. 276-287). New York: The Center for African Art.
  • 9. Os quatro artistas seleccionados foram: Alberto Chissano, Reinata Sadimba, Titos Mabota e Malangatana Ngwenya. Os curadores, Gilberto Cossa e Cidália Chissano.
  • 10. Titos Mabota, Moçambique Hoje revista cultural, Maputo, nº 55, de 2 a 8 de Março de 2001.
  • 11. Referimo-nos, em particular, à exposição The Short Century. Independence and Liberation Movements in Africa 1945-1994 que foi mostrada a partir de 2001 na Alemanha e nos EUA.
  • 12. O Movimento de Arte Contemporânea apresentou o seu Manifesto em 2003. Ver também entrevista de Gemuce a propósito do Movimento e da realização desta exposição, Notícias (Cultura) de 5 de Maio de 2004.
  • 13. Francisco Manjate referiu-se à exposição algum tempo depois, Notícias de 20 de Setembro de 2003.

por Alda Costa
Vou lá visitar | 11 Janeiro 2012 | África, África Austral, arte, arte contemporânea, arte moçambicana, arte moderna, artes visuais, escultura, Malangatana, moçambique, pintura, pintura moçambicana