Passa a bloody bola!

Filhos de Assassinos de Katori Hall

Tradução de Francisco Frazão

Fotografias de Carlos Teles, na Xina Lua (Portimão)

 

O presidente do Ruanda está a libertar os assassinos. Anos depois do genocídio tutsi, os perpetradores começam a regressar ao campo a conta-gotas, de volta às suas aldeias. Três amigos – nascidos durante o rescaldo sangrento do genocídio – preparam-se para conhecer os homens que lhes deram vida. Mas à medida que o dia do regresso se aproxima os rapazes são assombrados pelos crimes dos pais. Quem nos podemos tornar quando a violência é a nossa herança?

PANOS – palcos novos palavras novas 

Ruanda. Em breve. Um campo numa aldeia. Um jogo de futebol. Um grupo de rapazes a jogarem descalços é a primeira didascália de Filhos de Assassinos, uma das peças do PANOS –”palcos novos palavras novas” deste ano, um projecto da Culturgest que alia o teatro escolar/juvenil às novas dramaturgias, inspirando-se no programa «Connections» do National Theatre de Londres.

Existindo já há seis anos [1], o PANOS (que não é um concurso, mas um projecto!) conseguiu em pouco tempo criar pelas escolas de todo o país um tecido de gente habituada a fazer teatro de hoje com palavras de hoje – o que obriga necessariamente a pensar escolhas estéticas e concepções de teatro que nos sirvam hoje. E isto para lá do impulso (tão necessário) que dá à escrita para teatro e à renovação do reportório de textos para jovens em idade escolar. Todos os anos há peças novas escritas de propósito para serem representadas por grupos de teatro juvenil. Em geral duas encomendadas a escritores portugueses, e uma traduzida, comum ao programa «Connections».

Filhos de Assassinos 

Filhos de Assassinos, de Katori Hall, é a peça não portuguesa deste ano. Vale a pena ler o excerto que aqui se publica para perceber o tipo de desafios que o PANOS propõe a quem aceita participar. E para ficar a conhecer um excelente texto que nos dá ecos do genocídio do Ruanda passados quase vinte anos. É que vários prisioneiros completaram o programa nacional de reabilitação e vão regressar a casa.

Diz-nos na rádio (pela mão de Katori Hall) o Presidente do Ruanda:

 “O passado está encerrado e o futuro é agora. O Ruanda só pode caminhar para o futuro com todos os seus filhos. Podemos coexistir pacificamente nesta sociedade enquanto vizinhos. Já lá vão os tempos dos hutus e dos tutsis. Neste Ruanda, o novo Ruanda, somos um só.”

Mas dar o passado como encerrado implica sempre uma amnésia muito violenta onde sobrevivem narrativas quotidianas feitas de tensões e de preconceitos, tiranias antigas e gestos carregados. Isto para além do que ficou depois de um acontecimento tão violento como o genocídio do Ruanda - as mulheres violadas, o HIV, as cicatrizes, os filhos sem pai…

É dessas pequenas coisas e das vidas comuns destas pessoas que Katori Hall nos fala. E, por nos falar assim, por nos mostrar o que há de “banal” nisto tudo (e não falava Hanna Arendt da “banalidade do mal?”), enquadrando-o de maneira quase anedótica no contexto geral da dominação colonial e pós-colonial

INNOCENT Porque é que estás sempre a dizer “bloody”?

Bosco pára para pensar e olha para as mãos.

BOSCO É dever de todo o ruandês enquanto membro novinho em folha da Commonwealth Britânica usar os palavrões dos nossos irmãos.

INNOCENT Eu prefiro dizer “fuck” como os americanos.

BOSCO Bloody. Fuck. Não importa. Seria de esperar que ele estivesse feliz. Os nossos papás a voltar para casa e ele traz tudo de volta, aquela – aquela história –

INNOCENT Pensa só que há vinte anos estaríamos todos a falar francês.

BOSCO O francês é uma bloody treta. Hei-de agradecer ao presidente todos os dias por mudar a língua nacional para inglês.

INNOCENT Porquê?

BOSCO Para eu poder arranjar uma mulher americana.

INNOCENT Americana nenhuma vai querer casar contigo.

BOSCO Uma americana vê este belo espécimen africano e derrete-se toda e vai querer passar a ser uma bela afro-americana.

consegue fazer-nos sentir que a violência é também uma violência muito grande de género (de homens que violam mulheres, mas também de homens que mandam em casa), de velhas subjugações imperialistas, de antigas rivalidades modernamente ressuscitadas, de modelos de civilização. E como a história, por muito que tentemos, não se apaga assim à primeira.

E nisso a meta-narrativa de Filhos de Assassinos ecoa na nossa história de país pós-colonialista que teve uma ditadura de quase cinquenta anos. E nisso (a meu ver) as suas encenações foram tanto mais interessantes quanto a dramaturgia se orientou para o comum, para a linguagem simples, para a vida de todos os dias, e não em direcção a uma ideia exoticizada de África e do Outro, ou a uma melodramatização de pendor trágico dos acontecimentos retratados.

Como o PANOS tem o mérito de fazer com que um mesmo texto seja levado à cena no mesmo ano em mais de 10 encenações todas diferentes - cada uma correspondendo a uma escola ou grupo, houve de tudo. Ficam aqui alguns excertos que os grupos colocaram no youtube, alguns sem descrição:

 

Encenação: Jaime Pacheco, Produção: TnE - Teatro na Escola, Apoios: AEC, CMV, Culturgest (Panos) e Entretanto Teatro, CMV - Câmara Municipal de Valongo, AEC - Agrupamento de Escolas de Campo (Valongo, Porto) 

 

 

por Ana Bigotte Vieira
Palcos | 9 Julho 2011 | assassinos, Ruanda, teatro