boa de panela e cabeça - a propósito da leitura que fiz de Lacuna, de Luz Ribeiro
Prefácio a Lacuna de Luz Ribeiro, peça vencedora do prémio literário Nova Dramaturgia Feminina organizado pela companhia Cepa Torta
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Forgetter.
Existe uma ferramenta digital na internet feita pela artista Isabel Brison que se chama Forgetter. Pode aceder-se aqui e o seu uso é muito divertido e elucidativo dos procedimentos da memória singular e colectiva. Trata-se de uma máquina para esquecer que, aplicada a um texto, dá a ver graficamente os procedimentos inerentes ao esquecimento, em particular, olvidar, entendido como descartar (fazendo o texto desaparecer completamente sem deixar rasto), e esquecer, entendido como obliterar deixando rasto (na forma, por ex., de espaços em branco, assinalando que se pressente a ausência do que se esqueceu). De certa forma, o prólogo do texto Lacuna, de Luz Ribeiro, propõe performativamente algo do mesmo género, dando a experimentar, em acto, modos de rasura, apagamento e obliteração, no caso, de um passado singular e colectivo, percepcionado no presente a partir do corpo dito que enuncia as palavras escritas pela autora.
É do nosso passado-presente colectivo que em diante se tratará.
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Apresentações.
Uma genealogia invisível, exacta e antiga, poética e actual, deu-me a conhecer a avó que protagoniza desta história. Eis como, enquanto leitora, a conheci:
a minha avó era muito amiga da lélia, da lélia gonzalez, se conheceram na universidade. uma história muito bonita, com todos os detalhes que ela merece e eu esqueço, mas do que lembro, minha avó não conheceu davis, mas foi ela que falou da angela pra mim a primeira vez. ela falava dos black panters com detalhes como se estivesse lá desde a fundação
O meu modo de fabular esta avó está assim desde o início modulado pela voz da neta, e é neste contexto que como leitora tento doravante dela fazer sentido: para um futuro outro - meu e dela - porque escritora e leitora/ouvinte avançam a par e passo, e é juntas que re-descobrem a avó, desencobrindo (e redimindo, talvez) um passado presente de exploração e miséria para que não mais seja possível. Mas não se trata somente de deitar culpas, ou da máquina activista a girar no vazio auto-complacente consigo própria e as suas boas intenções, trata-se antes de interligar vivência singular e imaginação-construção de um mundo outro e um tempo outro, aqui e agora, incluindo nisso uma escuta sensível do passado em termos que lhe sejam próprios e nos sirvam hoje.
eu acho que muito do discurso da angela davis é pautado na lélia, e ela mesma já falou da contribuição da lélia para os pensamentos dela, e aí que entra minha avó, parte dos pensamentos da lélia surgiram na mesa da cozinha dela, ainda jovens confabulando futuro. minha avó dizia que preparava sempre uma broa pra elas com chazinho de anis estrelado, que lélia amava, e que sua amiga era boa de discurso e ruim de cozinha, e que nem todo mundo era afortunada como ela. boa de panela e cabeça.
O humor e a delicadeza deste trecho preparam, a meu ver, a imensa violência estrutural de que o texto delicada e firmemente dá conta: a panela que ironicamente se opõe à cabeça, a cozinha como local de reunião política, o espaço confinado da casa como local de uma guerra civil planetária (extractivista, colonial, patriarcal, social, de género) que se prolonga e prolonga — e expande, ainda agora. Transcrevo-o porque me encantam os modos como realidade e fábula se emaranham. Fico presa aos detalhes da cena, sinto o cheiro do chazinho de anis, e nisto abrem-se possibilidades de compreensão e de luto, de companheirismo e de luta, ao mesmo tempo que se derrubam barreiras de classe e se esconjura a miséria, os vários tipos de miséria.
3.
O antídoto anti-invisibilidade: povo preto se cuide.
Perto do final de Lacuna pode ler-se
é o que dizem. estou sempre recomeçando esse texto
e, um pouco antes,
“a loucura é mais uma forma de o Homem perder a sua liberdade”
a frase é do Franz Fanon médico (Fanon era, à data, psiquiatra na Argélia e escreve esta frase em contexto de reflexão sobre a sua prática clínica): miséria, radicalização e exploração aparecem sempre em ligação com produção de subjectividade (como se produz um povo preto? qual o povo preto a haver para que se possa sair desta espiral de violência e exploração?) e, claro, saúde mental.
Li várias versões de Lacuna e acredito que mais venham a existir. Trata-se de um texto em fragmentos de que muito gosto - e reivindico aqui a possibilidade de gostar de um texto, gostar de algo, gostar de alguém, não o gosto do “bom gosto” ou do “mau gosto”, mas o gosto de me relacionar afectivamente com algo que admiro, com que sinto cumplicidade, que me interpela, me encanta, me estimula a reimaginar mundos e possibilidades do sensível, algo que abre o entendimento do mundo à sua complexidade. E que o faz de modo generoso e justo. Refiro as várias versões possíveis deste texto porque nada do que nele se trata se resolve ou fica para trás, antes requer um trabalho de atenção e cuidado. Trabalho esse que é, antes do mais colectivo e interseccional. Espero que esta edição e as encenações e versões cénicas que dela decorrerem contribuam para isso.