Jogos Sem Fronteiras
Em 1965 o General Charles de Gaulle sugeriu a existência de uns jogos que reforçassem os recém reatados laços entre a França e a Alemanha. Inspirados nas competições de Verão entre cidades francesas (algumas das quais tinham lugar dentro de piscinas) os “Jogos sem Fronteiras” – a transmissão mais longa na história das co-produções televisivas – cedo se estenderam a mais países europeus, contribuindo assim para a construção de uma Europa que ainda hoje tenta “como sonâmbula”, através de um complexo mecanismo que oscila entre a vassalagem e o espelho, perfazer um bloco forte, capaz de contrabalançar os EUA, ao mesmo tempo que vai cimentando velhas crenças chauvinistas internas.
O carácter de espectáculo que constituía, no fundo, o leit motiv destes jogos, cujo grosso dos espectadores – essa “comunidade recém re-imaginada” que eram os europeus – era televisivo, estava bem patente na sua própria organização que pressupunha a existência de um apresentador e de uma equipa de filmagem de cada país participante: Eládio Clímaco, Ana Zanati ou Fialho Gouveia eram então para nós aquilo que Ettore Andenna e Marie-Ange Nardi eram para o público italiano ou francês, como se pode ver nos vários sites de saudosistas fãs dos JSF.
Assim, fazendo corresponder o jogo com o seu carácter lúdico a uma diluição das fronteiras internas de uma Europa que se queria simultaneamente competitiva e unida, os JSF – com as suas edições em desconhecidas cidades da província, que assim nos apareciam como a caricatura de um mundo do qual era urgente fugir a sete pés, com as suas correrias desesperadas para dentro de piscinas onde a produtividade equivalia ao número de bolas apanhadas, através da nossa improvisada fraternidade de sofá para com aqueles seres que, de T-shirt molhada, tentavam a todo o custo que o espectáculo não parasse e que a Europa avançasse – são a metáfora perfeita do vazio central que nós, estes europeus que somos, exibimos.
“Jogos sem Fronteiras” que apenas existem porque outro jogo (e muitos outros jogos a contra-corrente, gostamos de pensar) não conhece(m) fronteiras: o dinheiro circula; os desejos são exportados via satélite, cabo ou Internet, os produtos são fabricados ou chegam por terra ou pelo ar alterando paisagens, práticas, comportamentos, territórios - onde as pessoas são barradas - são rapidamente atravessados por ondas magnéticas, gasodutos e oleodutos, num movimento de Sul para Norte que corresponde ao percurso das matérias-primas, caminho inverso ao da circulação das pessoas. O espaço geográfico é não-linear e não-lógico, constituído por relações e redes, milhares de vezes mais complexas do que as linhas do Estado-Nação, simplificação extrema, máxima potência simbólica.
Tratar a multiplicidade, as interligações, a não-linearidade e a ilogicidade destes percursos de pessoas, de coisas e de práticas (nas quais as nossas próprias vidas se incluem) é a razão de ser do livro Jogos Sem Fronteiras* que, na sua maior ou menor coerência interna, abordam o tema das fronteiras num sentido lato – as fronteiras enquanto metonímia da “transformação do espaço produzida pelas deslocações das pessoas”, de que nos fala Úrsula Biemann.
Distanciamo-nos tanto de uma visão segmentária que trata os assuntos como compartimentos estanques (vendo “imigração”, “trabalho”, “repressão” ou “tecnologia” como temas que estão profundamente interligados), como de uma visão humanitária que olha para as migrações como um problema a que é necessário dar uma resposta mais ou menos justa. Entendemos a fronteira não como um sulco mas como um programa “cujo funcionamento investe e percorre todo o conjunto das relações sociais”, como uma polícia especializada em separar quem é de quem não é, como uma operação que está permanentemente a ser reactualizada no espaço, nas disciplinas, nos saberes e nos nossos próprios actos, como uma linha que nos atravessa a todos e de que é importante falar.
Assim, este conjunto de textos e de imagens corresponde a um esforço-gozo nosso em levantar estas questões sobre as quais sentimos a falta urgente de um discurso crítico feito com todas as ferramentas (da escrita, das ciências sociais, da literatura, do cinema, do teatro, da fotografia, mas, sobretudo e em primeiro lugar, das nossas vidas) – num movimento de dar a palavra (a mim, a ti, ao especialista, ao artista, ao migrante que és tu agora mas que ontem fui eu e vice-versa) em que se trata de opor histórias outras à massificação mediática que transforma tudo numa história só.
*editorial do livro Jogos Sem Fronteiras, edições Antipáticas, 2008 pode descaregar aqui