A propósito do espectáculo "O Olhar de Milhões" de Raquel Castro
Atreva-se ao Impossível
A música nunca interrompe, é o olhar de milhões que está em causa: as imagens vistas, as imagens mentais, as imagens imaginadas e imagináveis, as imagens ontem gloriosas hoje decadentes - e gloriosas por isso. São as imagens possíveis juntamente com as impossíveis, tudo para experienciar. So much fun! No desktop do computador é sempre manhã, na sala de refeições do cruzeiro é sempre hora de jantar de gala. O tempo é homogéneo e declina-se num espaço também ele homogéneo porque visto a partir de um exterior que é o do consumidor. Em curso uma batalha pela atenção: a atenção do outro, a atenção do próprio, a atenção de todos, de cada um, a toda a hora, 24/24 horas, 7 dias por semana, 365 dias por ano.
Há um exterior que permeia todas as relações e que as subsume a uma única lógica, a do consumo. E que o faz num ritmo de guerra. A reconversão da indústria de guerra em indústria de consumo na passagem dos anos 40 para os 50 deixa-o bem patente nos seus slogans declinados em modo imperativo. Ao alista-te! seguiu-se o adquire! e depois dele o transforma-te! e quando a produção mais e mais se via automatizada o diverte-te!, pois a principal produção – lógica de guerra mantida – eram já não apenas os produtos mas sobretudo os sujeitos (soldados?) capazes de os consumir, e capazes de tudo para o fazer (custe o que custar!).
Ora se o consumo é ele próprio um trabalho que é ele próprio uma guerra, não é de admirar que a situação adquira permanentemente tons de excepcionalidade e proliferem fronteiras entre os sujeitos, os territórios, as classes. “Viver ao máximo”, “atrever-se ao impossível”, “arriscar”, “ser único”, “pensar fora da caixa”, “destacar-se dos demais”… compõem um conjunto de situações para as quais não pode nem deve haver paralelo, sendo impossíveis de partilhar, porque absolutamente únicas uma vez que desenhadas on demand para o utilizador individualizado – i.e. para o consumidor que é pensado nos seus desdobramentos ad infinitum. E se tudo isto, de tão cansativo que é e de tanta ansiedade que provoca, faz ressaltar uma certa tonalidade afectiva infantil, um desejo meio primário de amar e ser amado, sempre e a toda a hora, por toda a gente (por esse olhar de milhões), interessa não confundir essa vontade de seduzir (ou de selfiexpressão), com a paz que se sente quando se ama e se é feliz, ainda que por instantes – barco de piratas, reservatório de imaginação.
É que quando por engano ou problema de sincronia a música alta pára por uns instantes fica um zumbido nos ouvidos. Nessas alturas dá para entender que a paz que se sente em falta não é assim tão distante da vontade de pôr termo à lógica de guerra que a máquina do consumo total acciona. Procuramos um armistício. A paz mas de outra maneira.