Retrospectiva, nome feminino

1.exibição de produtos (livros, obras de arte, inventos técnicos, filmes, etc.) de um artista, grupo ou movimento de determinada época, sublinhando a sua evolução

2. relato de acontecimentos decorridos num certo período

 

Para começar bebe-se um café.

Melhor, para começar combina-se beber um café e depois, já no local, fala-se

- do café,

- do dia,

- do ano,

- do que pode ser,

- do que é,

- do que podia ser,

- do que há-de ser,

- do que foi,

- disso tudo.

Se o café for dos bons, meia dúzia de coisas pode nascer, outra meia dúzia de coisas pode crescer, mas há sempre a questão dos meios de produção. Como fazer? Com quê? O quê? Para quem? Com que legitimidade? A partir de que posição?

Parece-me sintomático que a primeira acção de Raquel Castro e Mariana Tengner Barros tenha tomado lugar na horizontal, com as duas deitadas em plena Rua Augusta, sob o lema de “Stop and Think” – parar para pensar.

Dando corpo a uma proposição que tem tanto de imperativo (stop and think é uma ordem) como de experiencial (elas literalmente pararam), adoptar a posição horizontal no meio da rua é necessariamente colocar em causa o movimento geral, um certo ritmo de marcha, uma verticalidade dada por adquirida nas transacções do dia a dia, uma certa tirania do plano médio que vemos diariamente nos debates televisivos e que nos faz crer que o sujeito da democracia é o homem branco, de meia idade, filmado da cintura para cima, peito para a frente e cabeça erguida: falador, razoável. Um homem com um corpo cortado ao meio (sempre da cintura para cima), com esse meio corpo também cortado ao meio (da parte de cima apenas se vê a parte frontal), um homem com quarto de corpo, em suma – corpo esse a partir do qual realiza a actividade suprema da democracia: falar. E todos os outros corpos se constituem como irrepresentáveis porque irresponsáveis, ou irresponsáveis porque irrepresentáveis – o modo como a comunicação social inicialmente não soube o que fazer ou como apresentar os milhares de corpos deitados, sentados, a comer ou a dormir presentes nos acampamentos de Occupy Wall Street, Plaza del Sol ou Rossio é disso revelador, e o modo como ainda hoje continuam a não ser entendidos como sujeitos políticos, assustador.

Parar para pensar, portanto – mas faze-lo sem concessões, num espaço público que nos pertence de pleno direito: em plena Rua Augusta, de calções e ténis, com o à vontade e de quem não esconde nem mostra a feminilidade dos seus corpos precários colocados numa posição impossível à partida, a horizontal.

Mas voltemos à mesa do café e à questão dos meios de produção, tendo presente a posição impossível em que estes corpos (os da Raquel Castro e da Mariana Tengner Barros mas também os nossos, agora, em Lisboa, 2013) se encontram.

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here,

I wanna be happy here repetem Rach e Mama até à exaustão, numa espécie de transe invocativo que faz lembrar o pensamento mágico das crianças, ou as cantilemas que repetimos para nós próprios ao avançarmos no escuro. E é disso que se trata I wanna be happy here: assim, em inglês e tudo.

O sair para a rua de que a acção “Stop and Think” foi o início, devolveu às duas, devolvendo-nos a nós, uma cidade de Lisboa feita para inglês ver de que é exemplo a série “Bronzeado” onde Mariana e Raquel, in a refashioned way, se confundem com um Terreiro do Paço brand new, onde no lugar de Ministérios há pubs chamados “Ministério” e esplanadas demasiado caras para portugueses se sentarem. É esta Lisboa wannabe cidade criativa, esta Lisboa em processo de gentrificação a todo o gás, agora porto de cruzeiros de 15 andares e objecto de especulação imobiliária, com o centro destinado a “alugueres de curta duração”, que Rach e Mama espelham. Personagens excêntricas, falantes de inglês, elas incorporam, excedendo-os, os milhares de turistas que diariamente estão delighted with Lisbon, traçando-lhes os contornos e as limitações. Como os seus infindáveis álbuns de fotografias disponíveis no picasa nos dão a entender, Lisbon não é Lisboa e o Mouraria Fusion district parece a secção de comidas da feira de artesanato da FIL nos anos 90, mas em pior.

Da pobreza não das gentes, justamente, mas da posição impossível em que as suas/nossas vidas decorrem, nos fala também a série “Fila/Bicha”. Finanças, Centro de Emprego, Supermercado, Loja do Cidadão, Tabuleiro da Ponte, IC19… inumeráveis são os lugares onde se faz fila, se está na bicha. Se fazer esperar é apanágio do poder, não ter tempo parece ser característica de quem não tem nada. No entanto, e o trabalho de Mariana Tengner Barros e Raquel Castro provam-no bem, nunca ninguém se encontra realmente despossuído de tudo.

Quando menos se espera, a questão dos meios de produção reaparece em toda a sua força e devolve-nos à mesa do café. Se as ideias são a principal matéria prima de um trabalho cada vez mais categorizado como imaterial, os meios de produção estão connosco, em nós – o que, se por um lado acarreta consigo novas e menos transparentes questões em termos de direitos laborais (e pense-se no grau de atomização que a expressão “empresário de si próprio” acarreta), por outro lado pode dar lugar a gestos do-it-yourself potencialmente libertadores. Como se torna explícito no vídeo “Elevator Pitch”, único momento onde a dupla desmonta a sua relação com a instituição arte e o mercado de trabalho, este sair para a rua e esta opção pela performance-art são disso um exemplo. Eles constituem-se, a um tempo só, enquanto crítica a uma instituição onde não é fácil ter lugar (e relembremos que em 2012, ano em que grande parte destas performances foram feitas, os apoios pontuais não abriram), e onde os lugares que existem parecem estar, à partida, demasiado codificados para abarcar certas práticas mais experimentais. Disto é igualmente testemunho grande parte da série para youtube “casting” rodada em interiores.

Temos, portanto, um encontro num café, para começar, a que se seguem uma série de acções que levam a mais acções, que produzem documentação. Mariana Silva, a fotógrafa, é aqui uma figura essencial. Ela acompanha Raquel Castro e Mariana Tengner Barros nas suas saídas à rua e serve-lhes tanto de testemunha como de protecção. Nisto constitui-se como a terceira pessoa, o olhar de fora sem a qual a dupla não poderia ser apercebida enquanto tal, presença fundamental para enfrentarem uma Lisboa de rua de trato nem sempre fácil.

Acções que levam a acções, sendo que a primeira delas foi parar para pensar (“Stop and Think”) e a terceira, absolutamente falhada, uma tentativa de produzir imagens de uma auto-imolação (“Rocket Man”) da qual o fascinante seria justamente a capacidade de gerar mais e mais acções, acções de resistência. Em “Rocket Man” o que parece estar em causa é um fascínio quase infantil por aquilo a que E.P.Thompson chamou a “economia moral da multidão”, o modo como certas coisas as pessoas não aguentam: há qualquer coisa (uma “economia moral”) que as leva a revoltarem-se. Raquel Castro e Mariana Tengner Barros, fascinadas com o que a auto imolação do tunisino Mohamed Boazizi provocara no mundo e sentindo-se absolutamente encravadas num Portugal cada vez mais apertado pela austeridade, imaginam a sua obra e vida a ser pensada a partir do futuro e constroem uma ficção de auto-imolação. Mas corre mal, o fumo não rebenta a tempo, as fotos são pobres e a imagem não se presta a nenhuma leitura particular a não ser a de nos dar a ver um presente algures entre o urbano e o suburbano – sendo aí que reside a sua principal força.

Porque – e esta retrospectiva nisso é claríssima – não é no passado nem no futuro que estas ficções se jogam, mas no presente. É a partir do presente que elas devem ser entendidas. E é por isso – porque o presente é composto com o passado de que dispomos – que Raquel Castro e Mariana Tengner Barros se interessam pela tão pouco conhecida história da performance art em Portugal. Por isso a visitam: não para nela se inserirem, dotando-se assim de um qualquer glamour de que este tipo de práticas se revestiria, mas para a reivindicarem como nossa e dela extraírem uma potência de agir que nos sirva. Agora, no presente.

 

fotografias de Mariana Silva

 

Mariana Tengner Barros (9 de Dezembro de 1982) e Raquel Castro (9 de Dezembro de 1981) apresentam no Negócio/ZDB a sua primeira criação colectiva.
Unidas por uma necessidade de resistência contra o desencantamento fulminante, Mariana e Raquel assumem-se Wannabes™, dão o corpo ao manifesto, minam a cidade, lançam os foguetes e apanham as canas.

Uma Retrospectiva é uma exposição-performance que estreia/inaugura no dia 5 de Junho no Negócio/ZDB, e que tem apresentações a 6,7,8,12,13,14 e 15, sempre às 21h30.

 

 

por Ana Bigotte Vieira
Corpo | 5 Junho 2013 | arte performativa, corpo, restrospectiva