Luanda é bonita

fotografia de Edson Chagasfotografia de Edson Chagas

You are missing some Flash content that should appear here! Perhaps your browser cannot display it, or maybe it did not initialize correctly.

No palco, feito esquina na noite de Luanda, um assalto. “Todos somos desconhecidos até nos conhecermos”, diz um texto no programa da peça “Tanta Asneira Para Dizer Luanda É Bonita”. 

Este é um bom mote para aquilo a que se assiste em cena: um desfiar de traições e fidelidades, enganos e desenganos, condenações e absolvições, culpas e desculpas. Fala-se da vida. Da “batalha do dia a dia nunca acaba, e à procura da nossa fezada vamos cometendo crimes contra a humanidade: em pequena escala e muitas vezes sem maldade”, lê-se, de novo, no mesmo texto.

fotografia de Malochafotografia de MalochaOs personagens Dadri (Hélio Taveira), Koluta (Yuri de Souza), Zito (Raúl do Rosário), Cláudia (Edusa Chindecasse) e Moxico (Orlando Sérgio) juntam-se pelos caprichos do destino, que os finta e, de assaltantes e assaltados passam a ser cinco amigos a beber um copo tranquilo na cidade que “de noite parece Nova Iorque e de dia Nova Dehli”. A crítica social está bem presente, na espuma das deixas dos actores. “Uns com duas e três mulheres, outros sem nenhuma, não sobra nada para mim?!”, diz um dos personagens. A plateia empolga-se. “Vamos lá a dividir a riqueza deste país”. A sala em euforia. “Ya, dizem que a guerra acabou”, um dos personagens. “A guerra agora é outra”, outro contrapõe. Debate-se matemática em algoritmos nacionais “Com quantos dólares se faz um roubo?”

E no meio disto: Luanda é assim tão bonita como diz o título da peça? “Luanda e os luandenses são bonitos, muitos vindos de outras províncias ou de outros países e essa é também uma das riquezas da cidade, continuar a crescer em número e na diversidade” diz Nuno Milagre, autor do texto da peça. Português, foi apresentado a Luanda há quase dez anos, naquela que foi “uma experiência muito forte”, e de onde saiu com a certeza de que “quem faz as cidades são os seus habitantes”.

fotografia de Malochafotografia de Malocha

Uma década depois, Luanda não cessa de o supreender: seja através das alterações físicas constantes e velozes que a cidade-mutante sofre, seja pela criatividade de quem a habita. Tudo provoca emoções fortes. “Luanda vive num excesso, para o bem e para o mal, e o excesso é sempre mais bonito que o equilíbrio”, afirma.

Orlando Sérgio, actor, Nuno Milagre, autor, Miguel Hurst, encenador. Cumplicidades forjadas em trabalhos anteriores, sedimentadas nos afectos artísticos. “Só trabalho com quem tenho cumplicidade”, diz o actor da série angolana “Makamba Hotel” (o Mauro Dias Branco). Durante as filmagens de um documentário sobre os caminhos de ferro de Benguela, Orlando Sérgio lançou o desafio a Nuno Milagre para escrever um texto para teatro. Projecto cozinhado com o objectivo de “festejarmos os 50 anos do Orlando, que hoje já tem 51 anos, é o kota da peça”, revela Miguel Hurst. Uma única condição apenas foi imposta por Orlando Sérgio: que se localizasse no espaço e na vivência de Luanda.

o encenador Miguel Hurst, fotografia de Malochao encenador Miguel Hurst, fotografia de MalochaO autor aceitou a encomenda. Foi então juntando as peças de um puzzle imaginário, à experiência pessoal “que nunca é suficiente para a criação, a nossa vivência é sempre limitada”, misturou o que se ganha na convivência com os outros. Neste caso, “as histórias que ouvimos dos outros, as makas e as alegrias, tudo isso é matéria que resulta nas peças do puzzle, missangas coloridas que se vão juntando num fio condutor”. A que se junta a observação quotidiana da vida da cidade e a constatação do indesmentível: “Luanda é uma mina de histórias a céu aberto”, adverte Milagre.

Ou “Luanda é um caldeirão de gente vinda das províncias e do exterior, ponto de encontro forçado pelas guerras que trespassaram o país”, acrescenta Hurst.

Com este manancial de matéria-prima foi sendo arquitectada uma comédia kaluanda passada entre a baixa e a ilha de Luanda. “Queremos falar sobre personagens que povoam a nossa noite. Fala-se sobre a hipocrisia da nossa sociedade, sobre a culpa que não assumimos, a culpa que sempre temos, sobre o fingimento, sobre o amor, a beleza visual da nossa cidade”, reflecte o encenador.

fotografia de Malochafotografia de Malocha

O texto de Nuno Milagre foi a primeira fase do processo, o ponto de partida, “um produto a duas dimensões”. Depois adicionaram-se os actores, o encenador, a luz, a cenografia, os figurinos, a música. O espectáculo depois da escrita. A apresentação em palco. A três dimensões mais o público. “O que o encenador e os actores trazem com seu talento e trabalho para o palco não soma só valor ao texto, multiplica o que existia”, diz Nuno, que assistiu à estreia no mês de Dezembro.

Na peça todos os personagens demonstram ter o “rabo preso”. Nuno Milagre defende que esta é uma realidade universal. “Todos temos telhados de vidro, mas estamos tão familiarizados com as nossas culpas e desculpas que é sempre mais fácil julgar os outros que olhar para dentro e fazer uma auto-crítica”. Os risos e as gargalhadas que despertam na plateia de quem assiste à peça fazem parte do confronto connosco próprios. A leitura é do próprio autor para quem “rir ao espelho é saudável”.

fotografia de Malochafotografia de Malocha

Pela segunda vez no mesmo ano, (a primeira tinha sido a propósito da peça “Monólogos da Vagina”) o encenador Miguel Hurst está a dirigir um grupo de actores no Nacional Cine-Teatro. “Para mim o teatro precisa de tempo, arranjei este ano uma disponibilidade que não tinha”. Esta exibição faz parte de um projecto novo, de nome Mukange, (que significa “máscara” em kimbundo), que pretende não só fazer teatro mas outras expressões artísticas.

É de elementar justiça dizer que esta peça foi levada ao palco também pela “carolice” e paixão dos intervenientes. Todos, artistas e técnicos, vivem o ofício em part-time, com horários limitados, falta de condições, a correr contra o tempo. “Temos de ter uma política cultural, o Estado tem de se chegar à frente”, exorta Miguel Hurst.

fotografia de Malochafotografia de Malocha

Enquanto isso, o encenador “contenta-se” como as forças que foi possível congregar: um elenco bombástico, técnicos talentosos, Fernando Alvim no cenário, Nástio e Keita Mayanda que trabalharam num “som exclusivo para não fugir à estética apresentada”. Sim, porque na peça assaltantes e assaltados acumulam funções enquanto produtores musicais e músicos “wannabe” e uma acção que decorre em Luanda tem de ter banda sonora a kuiar à assistência. “Kissangua, kissangua…kiss me…kissangua”, lança a voz de Nástio. Se não está a conhecer a letra desta música tem bom remédio, ir até ao Nacional Cine-Teatro/ Chá de Caxinde e perceber se é preciso “Tanta Asneira Para Dizer Luanda é Bonita”.

fotografia de Malochafotografia de Malocha

por Joana Simões Piedade
Palcos | 10 Janeiro 2012 | crítica social, luanda, Tanta asneira para dizer Luanda é bonita, teatro, vida