De corpo e alma - Ingrid Mwangi

Um corpo de mulher, negro e esguio, portentoso, deitado no chão, contorce-se em movimentos que denunciam sofrimento. Numa tela, é projectado o rosto de uma mulher que não se deixa ver, escondido através das mãos e do cabelo preto repleto de tranças.
 Ingrid Mwangi, foto de Pedro NicodemosIngrid Mwangi, foto de Pedro Nicodemos

O corpo e o rosto, utilizados em performances diferentes, são de Ingrid Mwangi, artista queniana que, através da pintura, fotografia, vídeo e performance, procura partilhar uma visão diferente do mundo. Um trabalho desafiante, inovador que, por vezes, chega a ser chocante.

A artista queniana esteve em Angola, em 2009, a propósito da inauguração do Instituto Goethe em Luanda, com a performance intitulada “Es Gangeni”.

O nome em zulu significa “lugar no escuro” num sentido místico,  conotando-se também com algo sujo, inaceitável. “Reajo, interpreto e questiono clichés e estereótipos com os quais já tive de lidar”, diz Ingrid Mwangi.

público com atitude
A artista, cuja obra tem sido mostrada em Luanda através da fundação Sindika Dokolo, apresentou-se no Cine-Teatro Nacional e foi um sucesso. “Sinto que a reacção do público angolano à minha performance foi viva, sem filtros e directa. Sei que o trabalho que apresento é muito estranho, a roçar o absurdo e que pode provocar reacções entre a surpresa e o choque”.

A recepção à sua arte nunca é igual. “Quando estou na presença de um público que não está tão saturado pelas ideias feitas sobre o que a arte deve ou não ser, a reacção acaba por ser mais espontânea e natural”. Para Ingrid, o público angolano “revelou uma atitude de grande abertura e de disponibilidade para aquilo que foi apresentado. É uma questão de compromisso que o público estabelece com os artistas. Penso que terá a ver com a própria história do país que faz com que não seja demasiado crítico, não tire conclusões precipitadas ou faça juízos antes de conhecer”. Pela primeira vez em Luanda, num périplo que durou cinco dias, Ingrid diz que “Luanda, tal como todas as cidades, é definida sobretudo pelas pessoas. Achei que eram muito abertas, simpáticas e disponíveis, com uma atitude descontraída que me entusiasmou”. Artista de vídeo e performer utiliza vários meios para expressar a sua mensagem desde técnicas experimentais com a voz, passando pela utilização e trabalho de texto, fotografia, vídeo e coreografia.
Ingrid Mwangi, Static Drift, 2001. Two chromogenic prints Ingrid Mwangi, Static Drift, 2001. Two chromogenic prints

 

filha de uma sociedade confusa
Nascida em Nairobi, Quénia, conta que nasceu numa “sociedade confusa. A minha geração teve algumas desilusões com a classe política e com a deterioração da esperança, que depois se transformou em medo”. Aos 16 anos, no conturbado período da adolescência, foi viver para a Alemanha. “Tornou-se uma grande questão, o facto de ser africana na sociedade alemã”.
Nessa altura, “o que fiz, ainda que involuntariamente, foi colocar a câmara à minha frente e tentar olhar de fora para a forma como os outros me vêem”. Próximo da idade adulta, cria uma consciência do corpo e de como é percebida pelo exterior. “Tudo isso influenciou e moldou o meu trabalho”. Mas não foi um processo fácil. “Estava muito confusa entre duas culturas e sem saber qual era o meu papel”. Um professor da escola de Arte e Novos Media, sugeriu-lhe que, sendo africana e negra, Ingrid devia encontrar nesses mesmos factores um ponto de partida. “Eu não queria trilhar por aí o meu percurso na arte, porque já tinha de lidar com o facto de ser negra e africana todos os dias, desde o momento em que acordo. E estava numa sociedade alemã que, creio, ainda não é verdadeiramente uma sociedade multicultural, integradora”. Mas a sugestão do professor vingou. Inevitavelmente, Ingrid acabou influenciada pelas contradições de pertença a dois mundos diferentes, evocando para o seu trabalho as vivências de uma sociedade em colisão.

Desta forma, temas como o racismo, a discriminação — seja pela cor da pele, posição social ou género — encontram lugar no trabalho de Ingrid Mwangi, que foi caminhando para a questão da violência, e das razões pelas quais vivemos em violência. A guerra e os media são agora temas recorrentes no seu trabalho. A determinada altura começou também a falar da força no feminino e da projecção das mulheres no mundo. Sobre isso defende que “não podemos fugir do nosso corpo. Foi doloroso, ao princípio, mas fui ganhando consciência que o meu corpo de mulher negra é, em si, uma afirmação. E comecei a trabalhar nesse aspecto”.
 

alter ego
Na Alemanha conhece Robert Hutter que, para além de marido e pai dos seus quatro filhos, é descrito por Ingrid com “o meu alter ego, a minha outra metade. Juntos criámos uma outra personalidade”. Com efeito, ambos alteraram o nome artístico e fazem questão de assinar Ingrid Mwangi Robert Hutter, a fusão da identidade artística de ambos.
“O nosso trabalho é um absorver dos impulsos que constituem a minha vida, utilizando aquilo que me emociona e me magoa. E depois criamos uma forma estética para apresentar aos outros. E ver como se podem relacionar e interagir com aquilo que é mostrado”, explica. Os dois possuem uma visão partilhada da vida e da arte. Como artistas têm a consciência de que “sem a outra pessoa eu não existiria desta forma. Isto é uma declaração do conhecimento inequívoco da nossa interligação e de como a interdependência entra nas nossas vidas”. Por um lado, uma mulher africana, negra, feminista. Por outro, um homem europeu, branco, alemão. “Faço um esforço para pensar em mim como Ingrid Robert. Porque não há nada em mim, ou que eu faça sem incluir o meu parceiro, os meus filhos, a minha mãe, todas as pessoas de quem dependo. É um exercício de inclusão por oposição à existência solitária do eu”.

Ingrid Mwangi, foto de Pedro NicodemosIngrid Mwangi, foto de Pedro Nicodemos

família inspiradora

Ingrid tenta explicar-nos a profundidade do trabalho a dois que realiza com Robert. A resposta mais simples e significativa, surpreendentemente, surge no ecrã do seu telemóvel. Uma foto com quatro crianças sentadas ao sol. Dois rapazes de 5 e 9 anos, de cabelos loiros, pele muito branca e olhos claros, intercalados com duas meninas gémeas de 14 anos, negras, esguias, belíssimas. Os quatro filhos de Ingrid e Robert são a demonstração da simbiose que procuram fazer.

“Vou todos os anos ao Quénia. Quero que os meus filhos tenham contacto com as suas raízes familiares”. O pai de Ingrid, político e empresário, morreu antes de saber até onde o trabalho artístico de Ingrid iria ser apreciado mundo fora. Apesar de, na sua família, o desejo de abraçar a carreira artística ser motivo de estranheza, Ingrid recorda um episódio que apazigua a desconfiança inicial. “Lembro-me de um dia, quando estava a estudar, mostrei um trabalho meu ao meu pai. Expliquei-lhe os conceitos e ele respondeu que tudo aquilo que eu procurava transmitir era muito político. Creio que, de alguma forma, percebeu que eu pertencia a uma geração que não teria de entrar na política, como ele, para mudar as coisas. Compreendeu que estava a experimentar uma forma diferente de chegar às pessoas e participar na mudança da sociedade pelo alertar das consciências. Mudar as coisas a partir do interior e pela arte”. Mesmo sem ter conhecido na plenitude o trabalho de Ingrid, o pai compreendeu as motivações e o objectivo último “fazer do meu trabalho um momento de despertar nos outros”.

 

a arte duma época de desconfiança

Ingrid Mwangi acredita que “a arte deve ter vários papéis, pode servir diversos objectivos e, ao mesmo tempo, não é obrigada a servir um objectivo específico. Penso que é essa a força da arte”. A artista defende que, através do trabalho artístico, é oferecida à sociedade uma visão do mundo alternativa à da ciência e religião, sendo os artistas indivíduos que libertam e elevam a sua mente de determinada forma, tentando relacionar aquilo que observam sem deixar de criar um espaço onde algo novo emerge.

“Mesmo sem ter uma agenda política concreta, o meu trabalho, porque é feito com base nos meus dois corpos, meu e do Robert, torna-se social, e aborda, forçosamente, temas humanos”, explica. Para Ingrid, o seu percurso na arte acompanhou o processo natural da vida.

“Quando nascemos vimos ao mundo cheios de ingenuidade, dispostos a confiar em terceiros. Não temos outra escolha. Isso prolonga-se durante a infância. Somos muito religiosos nesse sentido: aceitamos o que temos. A determinada altura na vida, na adolescência, saímos dentro desse cocoon (casulo) e conhecemos outros ambientes, outras pessoas e isso faz-nos questionar algumas coisas”.
“A determinado momento senti que não queremos mostrar que temos apenas problemas. Não quero ficar presa no medo. Quero fazer algo positivo. Temos de ser mais éticos, mais respeitadores do ambiente, por exemplo”. A artista luta também, através dos seus trabalhos muitas vezes perturbadores, contra o cepticismo. “Algumas pessoas são cépticas, não acreditam na autenticidade. Duvidam. Não confiam. Vivemos numa era de desconfiança que temos de eliminar”.

Ingrid Mwangi irá participar na II Trienal de Luanda, a decorrer de Setembro a Dezembro de 2010, num trabalho que passa pela pesquisa correntes políticas e ideológicas dos movimentos da não-violência.

Artigo originalmente publicado na revista Vidas, O País, Luanda 2009

por Joana Simões Piedade
Cara a cara | 15 Maio 2010 | feminino, Ingrid Mwangi, Quénia, racismo, violência